RETALHOS DA VIDA (1953)
“Retalhos da Vida” (L'Amore in Città) é uma obra invulgar que
surgiu no interior do movimento neo-realista italiano, concebida por um dos
chefes de fila desta corrente estética e ideológica, o argumentista e
realizador Cesare Zavattini (apoiado na iniciativa pelo jovem Marco Ferreri),
com a intenção de funcionar como obra manifesto desta corrente. O filme
apresenta-se como o número um de uma revista semestral cinematográfica,
"Lo Spettatore", que reúne no seu seio um grupo de seis trabalhos
“jornalísticos” sobre o amor numa grande cidade. Cada um desses trabalhos era assinado por um nome grande
da renascença do cinema italiano do pós-guerra, a saber: “L’Amore che si Paga”
(Carlo Lizzani), “Paradiso per Quattro Ore” (Dino Risi), “Tentato Suicidio”
(Michelangelo Antonioni), “Agenzia Matrimoniale” (Federico Fellini), “Storia di
Caterina” (Francesco Maselli e Cesare Zavattini), e “Gli Italiani si Voltano”
(Alberto Lattuada). A ideia era obviamente permitir um retrato
da sociedade italiana desse período histórico, particularmente dos residentes
na cidade de Roma, da vida sofredora da maioria dos seus habitantes, dos
pequenos e grandes dramas, das alegrias e das esperanças de um povo ainda muito
traumatizado pela ditadura fascista de Mussolini e a subsequente tragédia da II
Guerra Mundial. Há episódios de um dramatismo pungente, outros aparentemente
mais ligeiros, uns nostálgicos, outros irónicos, uns trabalhados em estilo de
quase pura ficção, a maioria esboçada em tom de inquérito ou reportagem. Há
muita ingenuidade na forma como se procura atingir uma realidade imaculada, não
encenada, quando afinal tudo é encenado e por vezes de forma que inquina
totalmente os resultados da proposta. Por exemplo, o episódio assinado por
Alberto Lattuada, “Gli Italiani si Voltano”, coloca um operador, de câmara na mão,
nas ruas de Roma, acompanhando as mulheres que passam pelos passeios. Assim se
procura demonstrar que os “italianos se voltam” sempre que vêem passar uma
mulher bonita e voluptuosa. Mas as reacções dos italianos que se voltam, muitas
vezes voltam-se mais para ver a câmara de filmar, e quem ela acompanha, do que
propriamente para olhar as espaventosas italianas. Acontece que, mesmo que a
câmara de filmar estivesse escondida (há quem afirme que este episódio foi um
dos antepassados da “Candid Camera”), pelo menos ela não estava suficientemente
oculta, pois há inúmeros transeuntes que se voltam manifestamente para ela, e
só depois para a mulher que é filmada. O que retira qualquer significado
sociológico ao registo, apesar de não lhe retirar um sabor muito latino.
Apesar do título ser “L'Amore in Città” (O Amor na Cidade,
tradução literal), fala-se muito pouco de amor, sequer de paixão, raras vezes
se afloram sentimentos, mas sim o olhar do desejo, a confirmação do interesse
sexual, ou as consequências trágicas da solidão, do desespero, do desengano.
Não querendo exaustivamente enunciar as características do
neo-realismo, é conveniente sublinhar algumas delas, para situar esta obra. O
neo-realismo nasce de considerandos e de situações diversas que se reúnem: o
cinema italiano foi, durante a época fascista, ou um cinema de propaganda do
sistema, ou um cinema de fuga à realidade. Os cineastas que estavam com o
fascismo, elogiavam-no, os que não estavam ou frontalmente se lhe opunham
tentavam trabalhar na sua arte nos limites das possibilidades sem se
comprometerem, criando um cinema “caligrafista”, de sofisticadas comédias de
“telefones brancos”, ou então adaptando obras literárias do século XIX, que
tinham muito pouco a ver com a realidade italiana dos anos 30 e 40, até final
da guerra. Quando se aproxima o fim da guerra e a possibilidade de falar de
temas proibidos até aí, o fascismo, a guerra, a resistência, o drama diário do
povo italiano, este foi o caminho. Mas a esta orientação ideológica (muito
condicionada pelos comunistas que tinham saídos vitoriosos da coordenação da
Resistência), outra se lhe juntou igualmente muito motivadora da escolha do
caminho. Após a derrota, a Itália estava completamente destruída, a indústria
cinematográfica não existia, não havia estúdios, não havia material técnico,
não havia actores e realizadores (alguns dos que havia ou estavam comprometidos
com o fascismo, ou envelhecidos, ou em fuga…), não havia capital para obras
sumptuosas. Da reunião destes dois factores, nasceu um cinema ideologicamente
não muito coerente, apesar da forte orientação marxista, mas que se podia
caracterizar por aspectos muito significativos para definir um movimento ou uma
corrente: filmagens fora dos estúdios, em exteriores ou interiores naturais,
pouco material técnico, uso quase exclusivo de película a preto e branco, quase
total ausência de actores profissionais, lançamento de uma nova geração de
cineastas, saídos da resistência intelectual e cultural ao fascismo, temas da
vida do dia-a-dia, assunção de uma voz nova nos ecrãs, o povo autêntico, sem
caracterização ou guarda-roupa especial. Esta foi a revolução imposta um tanto
pelas disponibilidades técnicas da época e do local, outro tanto pela
intencionalidade política, social, cultural e sobretudo cinematográfica.
Em 1945 surge “Roma, Cidade Aberta”, de Roberto Rossellini, que
inicia formalmente o movimento. Mas antes já tinham aparecido alguns
antecedentes, como “Bambini ci Guardano”, de Vittorio De Sica, “Ossessione”, de
Luchino Visconti, ou “Quattro Passi fra la Nuvole”, de Alessandro Blasseti,
todos de 1943. “L’Amore in Citta”, de 1953, aparece num momento em que o
movimento se começa já a esboroar. Procura como que reunir forças e esforços e
redefinir com mais precisão as linhas estéticas e ideológicas da corrente. Mas
não tem sucesso público (ainda que permaneça até hoje como um farol do
neo-realismo) nem consegue sequer iniciar uma publicação regular. "Lo
Spettatore" fica-se pelo número um. Representa, no entanto, uma ocasião
única na história do cinema italiano: olhando agora com o recuo do tempo para
esta obra, facilmente nos apercebemos que tenta reunir talento para um projecto
comum, numa altura em que cada um dos cineastas antologiados enceta já um
caminho muito pessoal que não os levará a atraiçoar o neo-realismo, mas acima
de tudo a serem sinceros consigo próprios e a seguirem percursos muito
pessoais. É o que irá acontecer sobretudo com Antonioni, Fellini, Risi,
Lattuada ou Masselli, enquanto Zavattini e Lizzani ficaram enredados nas teias
de uma época e não conseguiram ultrapassar a rígida ortodoxia vigente.
Curiosamente, muitos acusaram Risi de se deixar comercializar e de transformar
o neo-realismo em algo “rosa”. Hoje ele é um dos cineastas mais modernos e mais
actuais dessa geração. Soube respirar a atmosfera do seu tempo, compreender o
ar que se respirava e estabelecer com o público um diálogo que se mantém hoje
actual.
Olhando o filme, história a história, “Amore che paga”, de
Carlo Lizzani (11') é um inquérito sobre a prostituição na capital italiana, que
a censura proibiu na altura; “Tentato suicídio”, de Michelangelo Antonioni
(22') investigava igualmente casos de mulheres que haviam tentado o suicídio,
indagando razões e motivações, em cenários desolados que prenunciavam já os ambiente
de “A Noite”, “Eclipse” ou “O Deserto Vermelho”; “Agenzia Matrimoniale”, de
Federico Fellini (16') mergulhava numa viagem por um antigo palacete romano
arruinado, hoje com cada quarto ocupado por famílias pobres, escritórios, e uma
agência matrimonial, onde os “patrões” “colocam” mulheres em desesperadas
procuras de necessidade económica e solidão. Uma delas, que aceita casar com
quem quer que seja, desde que arrume a sua vida, é acompanhada pelo jornalista
de serviço numa dolorosa e poética viagem de profunda desolação, relembrando já
o universo de “A Estrada”; “Storia di Caterina” (27'), de Francesco Maselli e
Cesare Zavattini, baseia-se num caso verídico e é interpretada pela mulher que
viveu a história na realidade e que aqui revive os passos: grávida e abandonada
pelo homem que dela se serviu e pela família, tenta a sua sorte como criada em
Roma. Sem forma de se sustentar, a si e ao filho, dormindo ao relento e quase
nada tendo para comer, resolve abandonar o filho num descampado, onde é
recolhido e entregue num asilo dirigido por freiras. Não consegue resistir às
saudades e tenta recuperar o filho, o que a leva à prisão e a julgamento, donde
sai absolvida; de “Gli Italiani si Voltano” (14'), de Alberto Lattuada, já
falámos, ficando para fim o “Paradiso per Tre Ore”, de Dino Risi (11') que
sobrevive sem história, descrevendo o ambiente de um baile de bairro periférico
de Roma, frequentado ao domingo, durante “as três horas de paraíso”, por
criadas de servir e soldados, “arrebentas” e “pintas” à procura de conquistas
fáceis, secretárias “postas por conta” e outros protagonistas desta “crónica de
pobres amantes”. A câmara de Risi acompanha com humor e ternura o que vai
captando, atenta ao pormenor, ao gesto, ao olhar, criando um tecido de intensa
cumplicidade e sensualidade. Os actores não profissionais são excelentemente
conduzidos (ou apenas seguidos, mas com tacto e eficácia) e alguns deles
prenunciavam alguns dos heróis preferidos de Risi, de Gassman a Sordi, em pólos
opostos deste universo de arrivistas e temeratos. Juntamente com Fellini, os
melhores “Retalhos”, onde Antonioni e Zavattini se colocam ainda a bom nível.
Lattuada fará muito melhor ao longo da sua futura carreira. Boa a fotografia daquele
que se haveria de transformar num dos mestres da arte em Itália, Gianni Di
Venanzo.
RETALHOS DA VIDA
Título original: L’ Amore in città
Realização: Michelangelo
Antonioni (segmento "Tentato suicido"), Federico Fellini (segmento
"Un Agenzia matrimoniale'"), Alberto Lattuada (segmento "Gli
Italiani si voltano"), Carlo Lizzani (segmento "L’ Amore che si
paga'"), Francesco Maselli (segmento "Storia di Caterina"), Dino
Risi (segmento "Paradiso per 4 ore"), Cesare Zavattini (segmento
"Storia di Caterina") (Itália, 1953); Argumento: Michelangelo
Antonioni / segmento "Tentato suicidio"; Aldo Buzzi / segmentos
"Tentato suicidio", "Gli Italiani si voltano", "Amore
che si paga, L'" e "Paradiso per 4 ore"; Luigi Chiarini /
segmentos "Tentato suicidio", "Gli Italiani si voltano" e
"L’ Amore che si paga”, Federico Fellini / segmento "Un Agenzia
matrimoniale”, Marco Ferreri / segmento "Paradiso per 4 ore", Alberto
Lattuada / segmento "Gli Italiani si voltano", Luigi Malerba /
segmentos "Tentato suicidio", "Gli Italiani si voltano",
"L’ Amore che si paga" e "Paradiso per 4 ore", Tullio
Pinelli / segmentos "Tentato suicidio", "Un Agenzia
matrimoniale'", "Gli Italiani si voltano", "L’ Amore che si
paga" e "Paradiso per 4 ore", Dino Risi / segmentos "L’
Amore che si paga",e "Paradiso per 4 ore", Vittorio Veltroni /
segmentos "Tentato suicidio", "Gli Italiani si voltano",
"L’ Amore che si paga'" e "Paradiso per 4 ore", Cesare
Zavattini / segmentos "Tentato suicidio", "Gli Italiani si
voltano", "Storia di Caterina", "L’ Amore che si paga” e
"Paradiso per 4 ore"; Produção: Marco Ferreri, Riccardo Ghione,
Cesare Zavattini; Música: Mario Nascimbene; Fotografia (p/b): Gianni Di
Venanzo; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Gianni Polidori;
Maquilhagem:Raimondo Van Riel; Direcção de produção: Giuseppe Lo Prete, Alfredo
Mirabile; Assistentes de Realização: Aldo Buzzi Francesco Degli Espinosa, Otto
Pellegrini, Pier Paolo Piccinato, Gillo Pontecorvo, Luigi Vanzi; Departamento
de arte: Enrico Magretti; Som: Mario Messina, Giovanni Paris; Companhias de
produção: Faro Film; Intérpretes:
Rita Josa, Rosanna Carta, Enrico Pelliccia, Donatella Marrosu, Paolo Pacetti,
Nella Bertuccioni, Lilia Nardi, Lena Rossi, Maria Nobili, Antonio Cifariello
Giornalista, Livia Venturini, Maresa Gallo, Angela Pierro, Rita Andreana, Lia
Natali, Cristina Grado, Ilario Malaschini, Sue Ellen Blake, Silvio Lillo
(segmento "Un Agenzia matrimoniale'"), Caterina Rigoglioso (segmento
"Storia di Caterina"), Mara Berni, Valeria Moriconi, Giovanna Ralli,
Ugo Tognazzi, Patrizia Lari, Raimondo Vianello, Edda Evangelista, Liana
Poggiali, Marisa Valenti, Maria Pia Trepaoli, Marco Ferreri, Mario Bonotti
(segmento "Gli Italiani si voltano"), Luisella Boni, etc. Duração: 105 minutos; Classificação
etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): inexistente; Edição DVD:
Studio Canal (italiano com legendas em inglês).