O neo-realismo italiano iniciou-se com um belíssimo
conjunto de obras, donde se destacam “Roma Citta Aperta”, de Rossellini (1945),
“Riso Amaro”, de De Santis (1946), “Paisa”, de Rossellini (1946) e “Ladri di
Biciclette”, de De Sica (1948), entre outras. O próprio De Sica, para lá do
citado “Ladrões de Bicicletas”, já inscrevera outras obras suas nesta corrente,
como “Scuisciá” ou “Milagre de Milão”, abordando temas como o desemprego, a
juventude, a marginalidade, o papel da mulher, a ocupação e o pós guerra, até
chegar a “Umberto D” (1952), que alguns consideram a obra maior deste autor,
preferindo-a mesmo a “Ladri di Biciclette”. Creio que nesta película a dupla De
Sica-Zavattini condensa muito das suas preocupações, tendo desta feita como
figura central Umberto D., um velho reformado, que traz consigo todos os
problemas da velhice, numa sociedade traumatizada pela guerra e por tudo o que
ela carrega. O filme é dedicado ao pai de Vittorio De Sica, de nome Umberto De
Sica, e o título da obra não deixa de associar o protagonista do filme ao pai
do realizador, o que este mesmo confirmou em entrevistas, afirmando que muitas
das questões apresentadas pelo seu filme foram inspiradas em situações vividas
no seu agregado familiar, quando ele ainda era jovem e assistia às dificuldades
enfrentadas pela família.
Umberto D., o protagonista, é um reformado que procura
manter todas as aparências de dignidade possível, numa época extremamente
difícil da história de Itália, acabada de sair da II Guerra Mundial. Sem
família próxima, vive em Roma, num modesto quarto alugado, num andar
propriedade de uma locatária sem grandes escrúpulos e sem nenhuns problemas de
consciência. Umberto D. tem como únicos companheiros um cão que ele acarinha o
melhor que pode e uma jovem, criada da senhoria, que faz do velho seu
confidente. No fundo, são três cúmplices que fazem da infelicidade uma ligação
emocional e uma âncora que os agarra à vida e a alguma possível esperança. Mas
os tempos estão maus, e o velho empregado de escritório, de cujo trabalho ainda
guarda alguma roupa e a compostura necessária, vai tropeçando nos escolhos que
uma sociedade ingrata para com a velhice lhe vai colocando, um após outro, no
caminho.
Há em “Umberto D.” os mesmos princípios que nortearam
todo o neo-realismo inicial, uma narrativa de rua, despojada de efeitos
dramáticos, povoada por actores não profissionais (o extraordinário Carlo
Battisti, que interpreta Umberto D, era um professor universitário reformado,
que nunca representara em cinema), onde os problemas sociais sobressaem, mas há
igualmente um salto em frente, numa nova perspectiva humana. O enquadramento
psicológico do personagem central, a sua solidão tremenda, só disfarçada pela
companhia de “Flick”, o seu fiel cão, e as conversas com a criada Maria,
levam-nos já para um novo patamar de realismo, que se irá desenvolver,
sobretudo com Rossellini e Antonioni, na década de 60.
Umberto Domenico Ferrari é uma personagem complexa,
diversificada, não tem a aparência do bom velho com quem todos simpatizam à
primeira, nem nada faz para sê-lo. Ele é um homem idoso, que já deixou o
emprego há uns tempos, mas que procura esconder a humilhação de ser cada vez
mais pobre, de a sociedade o afastar da vida com arrogância. Chega a tentar estender
a mão à caridade, mas arrepende-se de imediato. Coloca Flick de chapéu na boca
à espreita que nele caia uma moeda, mas também aí desiste. Recorre à sopa dos
pobres, onde tenta dar de comer também ao seu cão, colocando o prato escondido
debaixo das pernas, para não ser surpreendido pela instituição que não quer
caninos na sala. Sente-se o desgosto de Umberto quando vê o seu modesto quarto
esventrado pela senhoria que o quer ver pela porta fora, pois há dois meses que
se atrasa na renda. Umberto descobre-se descartável, mais do que isso: sente
que é um peso de que muitos se querem ver livres. Nem mesmo numa manifestação
de reformados que protestam o seu desagrado se sente incorporado. Ele está a
mais, é um ser fora de tempo, de um tempo que é de outros, de jovens com
futuro, de empreendedores sem escrúpulos, de um “milagre económico” que lhe
dizem que está a ser atrasado por culpa sua. A hora é de arrendar quartos, à
hora, a casais adúlteros, fazer dinheiro de qualquer forma. Umberto Domenico
Ferrari é o empecilho que tem de esperar à porta de casa que outros se sirvam
da sua cama. Umberto e Flick irmanam-se nessa “vida de cão”. Por isso se
compreende ainda melhor a cumplicidade que entre ambos se estabelece. Será,
porém, Flick a salvar Umberto. Até quando?
Neste aspecto, “Umberto D.” data de 1952, mas é um filme
intemporal. Podia ter sido rodado hoje, em Portugal, nos EUA, na Rússia, na
China ou nos países nórdicos (basta ler a literatura actual de qualquer desses
países, para se verificar que sobre este tema muito se já disse, mas muito se
precisa ainda de fazer). Nalguns casos, existe mesmo um retrocesso, quer nas
medidas de apoio, quer no sentimento generalizado das pessoas. No caso de
Portugal, onde curiosamente se proíbe a eutanásia, a verdade é que são alguns
governantes a propor a “extinção” dos velhos, improdutivos, e que só causam
embaraços à segurança social. As pessoas que morrem sozinhas, em velhas casas e
quartos sombrios, e são descobertas dias, meses, anos depois, são sintomáticas
desse abandono. O filme de De Sica é um testemunho dramático, trágico, dessa
existência sofrida e inglória, que cada vez mais faz pensar no suicídio. No
pós-guerra em Itália, como hoje em dia em Portugal, onde esse acto de desespero
é visto por muitos, infelizmente cada vez mais, como um gesto libertador de um
dia a dia opressivo e aberrante.
Admiravelmente conduzido, com um rigor de olhar, uma
sensibilidade, uma ternura sem nada de meloso, “Umberto D.” sobrevive sem uma
ruga, colocando o nome do seu autor entre os maiores da sétima arte. Tão
intensa como “Ladrões de Bicicletas”, a obra tem em Carlo Battisti (Umberto
Domenico Ferrari) e Maria Pia Casilio (Maria, a empregada) dois actores
admiráveis, fotografados com uma exigência moral invulgar pela câmara de G.R.
Aldo. Uma obra-prima absoluta.
HUMBERTO D
Título
original: Umberto D.
Realização: Vittorio De Sica (Itália, 1952); Argumento: Cesare
Zavattini; Produção: Giuseppe Amato, Vittorio De Sica, Angelo Rizzoli; Música:
Alessandro Cicognini; Fotografia (p/b): G.R. Aldo; Montagem: Eraldo Da Roma;
Design de produção: Virgilio Marchi; Decoração: Ferdinando Ruffo; Direcção de
produção: Nino Misiano, Roberto Moretti; Assistentes de realização: Luisa
Alessandri, Franco Montemurro; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Ennio
Sensi; Companhias de produção: Rizzoli Film, Produzione Films Vittorio De Sica,
Amato Film; Intérpretes: Carlo
Battisti (Umberto Domenico Ferrari), Maria Pia Casilio (Maria, a empregada),
Lina Gennari (Antonia Belloni), Ileana Simova, Elena Rea, Memmo Carotenuto,
Alberto Albani Barbieri, Pasquale Campagnola, Riccardo Ferri, Lamberto
Maggiorani, De Silva, etc. Duração:
89 minutos; Distribuição em Portugal: Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia
em Portugal: 18 de Março de 1953.
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