sábado, 28 de fevereiro de 2015

PERFUME DE MULHER



PERFUME DE MULHER (1974)


Dino Risi era já neste período seguramente um dos mestres da comédia italiana e dos grandes cineastas transalpinos que o pós-guerra revelou. Curiosamente, só nos últimos anos a crítica internacional (estamos a referirmo-nos à crítica francesa e anglo-saxónica, aquela que aparentemente pautava os critérios de muito boa gente, um pouco por todo o lado, por esse mundo além) o “descobrira”. Em França, por exemplo, o ano de 1975 foi particularmente fértil para essa “revelação”. Estreia de alguns títulos nunca aí vistos (entre eles “Uma Vida Difícil”, por exemplo), reposição de outros (“A Ultrapassagem” é um caso), ao mesmo tempo que apreciam as suas obras mais recentes (“Em Nome do Povo Italiano”, “Sexo Louco”, “Perfume de Mulher”…). Este acontecimento vinha mostrar igualmente como, por vezes, a vilipendiada crítica portuguesa (alguma que se não regia, nem rege, por figurinos estrangeiros...) se encontrava bem no cimo da onda, chamando a atenção para obras e autores que só muito tempo depois seriam reconhecidos internacionalmente. Há já longos anos que alguns críticos portugueses se batiam com ardor pelo cinema rigoroso e sarcástico deste moralista de riso demolidor e finura de traço que tão modelarmente retratava uma sociedade ao longo de uma vasta e quase sempre honrosa carreira.
Fausto (Vittorio Gassman), ex-capitão de infantaria, retirado do activo na força da idade, em virtude de um acidente com uma bomba que lhe levou a vista e o braço esquerdo, vive sozinho, em Turim, unicamente sob os cuidados de uma velha tia. Cínico, duro, sarcástico, de uma agressividade permanente, Fausto, dissimula assim a amargura que a solidão provoca. O exército coloca ao seu serviço um jovem soldado que o irá acompanhar durante uma deambulação por algumas cidades italianas, viagem que terminará em Nápoles. Não será senão aqui que o espectador perceberá que esta viagem não é outra coisa senão uma despedida, um olhar retrospectivo para o que ficou para trás. Fausto, ferozmente agarrado à vida e aos seus prazeres, recusa toda a forma de piedade, sente sobretudo a falta das mulheres, do “belo sexo” que ele reconhece pelo “perfume”. Mas a arrogância não lhe permite aceitar qualquer outra forma de relação que não seja o amor que se compra nas ruas de Génova. Sara, uma rapariga que o ama desde muito antes do seu infeliz acidente, de quem Fausto guarda o retrato bem junto ao revólver, na sua mala de viagem, representa para ele o inaceitável: a abdicação, a humilhação, o aceitar de uma condição de dependência que sempre recusara até aí. Por isso, a sua viagem é, à partida, uma viagem sem regresso. O suicídio é a meta derradeira. Mas a coragem falta no último instante. O que altera por completo os dados do problema. Fausto cai em si e descobre a sua fraqueza e admite-a. Com desespero e raiva lança um grito final em busca de Sara. E ela aí está, companheira dedicada, pronta ao sacrifício. Amor?  


Uma das características do cinema de Dino Risi é ser um cinema de deriva, acompanhando pessoas em viagem em busca de si próprias, que esbarram com o seu auto-retrato descoberto ao espelho da vida e com o retrato “do outro”, que de início ignoram com um quase desprezo, mas a quem depois se afeiçoam.
 “Perfume de Mulher” coloca ao espectador várias questões curiosas. Primeiramente, na linha de um certo cinema americano que decorre “kerouakianamente” “na estrada”, este é o percurso de dois homens, bastante diferentes entre si, que ao longo de uma viagem se vão descobrindo um ao outro. Os laços que se estabelecem entre os dois não serão de amizade, mas de necessidade. Esses laços impõem uma convivência. Fausto, fanfarrão e senhor de si, vai conduzindo o jogo de bengala na mão e olhos vendados pela cegueira. Apesar desse “handicap” é ele ainda o guia. Pela experiência que demonstra, pela segurança que manifesta, pela invulnerabilidade que dir-se-ia possuir. O jovem Giovanni, entre a delicadeza e a inexperiência, entre a raiva e a piedade, é o contrário de Fausto, completando-o, todavia. Os dias que ambos vivem em comum serão outros tantos dias de experiência recíproca. No final, Giovanni parte, possivelmente mais forte, seguramente desencantado com a fragilidade revelada por Fausto.
Mas esta “viagem em Itália” é ainda pretexto para uma panorâmica rápida, mas cáustica, sobre a sociedade italiana, retratada em apontamentos breves, carregados de significado. Nas ruas, nas carruagens de comboio, nas salas de hotéis, nos terraços de Nápoles, um pouco por todo o lado vai surgindo o perfil de uma sociedade, olhada ora com acidez crítica, ora com a melancólica ternura de um poeta do quotidiano.
A figura de Fausto é, igualmente, um precioso manancial de referências críticas. Através dele escalpeliza-se com rigor e lucidez alguns mitos abertamente mediterrânicos, como o militarismo, o don-juanismo, o machismo “derrubador”, admiravelmente personificados pelo talento, aqui disciplinado, de Vittorio Gassman, num dos mais belos papéis da sua carreira.
Dino Rísi, por seu turno, oscilando perigosamente entre o grotesco e trágico, entre a comédia de costumes e “análise psicológica”, com subtileza e sensibilidade, mostra-se um cineasta perfeitamente amadurecido, na posse de todas as suas faculdades, dominando os meios expressivos de que dispõe, bem assim como os actores sob as suas ordens, Além de Gassman, são de referir, Alessandro Momo, que “Malícia” revelara e a morte precocemente levou (e que seria certamente um grande actor), e Agostina Belli, aliás belíssima.



PERFUME DE MULHER
Título original: Profumo di Donna ou Scent of a Woman ou Sweet Smell of Woman ou That Female Scent 
Realização: Dino Risi (Itália, 1974); Argumento: Ruggero Maccari, Dino Risi, segundo romance de Giovanni Arpino ("Il buio e il mare"); Produção: Pio Angeletti, Adriano De Micheli; Música: Armando Trovajoli; Fotografia (cor): Claudio Cirillo; Montagem: Alberto Gallitti; Design de produção: Lorenzo Baraldi; Guarda-roupa: Benito Pérsico; Assistentes de Realização: Claudio Risi; Companhias de produção: Dean Film; Intérpretes: Vittorio Gassman (capitão Fausto Consolo), Alessandro Momo (Bertazzi, chamado Ciccio), Agostina Belli (Sara), Moira Orfei (Mirka), Franco Ricci (Raffaele), Elena Veronese (Michelina), Lorenzo Piani, Stefania Spugnini (Cândida), Torindo Bernardi   Vincenzo), Marisa Volonnino (Ines), Carla Mancini, Alvaro Vitali (Vittorio), Sergio Di Pinto, Vernon Dobtcheff (Don Carlo), etc. Duração: 103 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais; Estreia em Portugal: 31 de Janeiro de 1976. 

EM NOME DO POVO ITALIANO



EM NOME DO POVO ITALIANO (1971)


“Em Nome do Povo Italiano” é outro dos melhores filmes que conhecemos de Dino Risi. Um filme verdadeiramente “popular”, no sentido que esta palavra pode ter de mais nobre e exigente, uma obra realizada efectivamente “em nome do povo italiano”, com tudo o que isso implica. Dino Risi mostra que um filme “popular” é um filme feito a pensar na promoção cívica e crítica do povo, não para o servir nos seus apetites mais baixos, mas para o promover a escalões intelectuais mais elevados. “Em Nome do Povo Italiano” é, isso mesmo, uma obra extremamente complexa, inteligente, corajosa, lúcida, verdadeiramente aberta a todos, jogando com figuras centrais e personagens marginais impecavelmente desenhadas, num traço satírico que a todos convence e cativa, Poderia, seguramente, fazer-se desta comédia um filme jurídico-político extremamente hermético e de difícil leitura. Mas aí, a obra perderia muito do seu vigor, e grande parte do seu impacto popular. Cedendo nalguns aspectos acidentais, Risi preserva o essencial e transporta-o a amplas plateias.
Vejamos, rapidamente, como poderemos pôr o acento no essencial (dado que o filme de Dino Risi, na sua aparente simplicidade, é, efectivamente, de uma grande complexidade). A chave para o filme encontra-se lapidarmente expressa logo nas duas sequências iniciais: uma, que define a escrupulosa acção de um magistrado que assiste à destruição de um imóvel construído fraudulentamente (UgoTognazzi); outra, que encerra, sob a fórmula de curriculum vitae, a existência e a actividade de um industrial que viaja no seu belo bólide encarnado e encontra assento um pouco por todo o conselho de administração de duvidosa actividade industrial (Vittorio Gassman). Irá perceber-se desde logo que o filme irá conjugar, mas em oposição, dois tipos humanos de aparecimento muito constante ao longo de toda a filmografia de Dino Risi: o arrivista vitalista que tudo e todos atropela na sua ânsia de lucro fácil e de rápida ascensão na social (imagine-se o mesmo Gassman, de “A Ultrapassagem”, alguns anos depois, agora num lugar decisivo do campo económico italiano) e o cidadão obstinadamente honrado que a sociedade transformou num homem azedo, mas que permanece puritanamente íntegro e escrupuloso no seu trabalho (tente ver-se o Alberto Sordi de “Uma Vida Difícil”, dez anos depois de ter dado aquela estrondosa bofetada no capitalista, um Sordi com um futuro cinzento, numa carreira de magistrado impoluto). Do cruzamento destas duas figuras nasce, não só um magnífico choque de dois belos comediantes (Gassman regressado ao seu melhor e Tognazzi superando-o ainda em discrição e justeza), como um processo à cidade, pleno de coragem e de acuidade. A investigação de Tognazzi leva-o a desenterrar o passado e a entrever as actividades ilícitas e fraudulentas de Gassman, e simultaneamente, por generalização imposta pela própria obra, se desvenda o retrato da sociedade italiana dos anos 70. Gota a gota, figura a figura (não descurando nunca o aparecimento, quase sempre justificado, de certas caricaturas típicas de um retinto humor “operático” italiano), a Itália dessa altura fica ali despida, frente aos olhos do espectador. Raivosamente, Risi distribuiu as suas bofetadas um pouco por todo o lado, da justiça à política, da alta finança à indústria, da construção civil ao cinema, do proxenetismo à televisão, dos “jornais de actualidades” à “dolce vita”... Mas, atenção, muitos e muitos são os filmes que distribuem alfinetadas e tudo deixam na mesma. Porque lhes falta uma coerência interna, porque lhes falta uma estrutura ideológica em que se baseia a crítica. Dino Risi nada deixa ao acaso. O que vemos em “Em Nome do Povo Italiano” é, efectivamente, um processo contra a cidade, contra a sociedade, contra a sociedade italiana (“esta sociedade”, diz-se no filme), que permite tais excessos e para eles encontra sempre maneira de perdoar, fazendo vingar o escapismo.
O filme vai ainda mais longe, depois de ter desafiado a cidade, o magistrado apanhou o industrial prestando falsas declarações que o comprometem no assassínio de uma prostituta. Poderá pensar-se o caso arrumado, mas eis que às mãos do advogado vêm parar os cadernos escolares da rapariga, onde esta confessa o suicídio. O magistrado hesita no destino a dar a esta prova de inocência neste crime, enquanto percorre uma cidade desocupada, com toda a gente a assistir (ouvir) uma partida de futebol decisiva: Itália-lnglaterra. Vai lendo um diário de uma feroz amargura, onde se intercalam as frases em inglês e a sua dramática tradução para o italiano. Vai assistindo à revelação do suicídio e descobre que a Itália ganhou. Para as ruas desce agora o povo, gritando “Viva a Itália!” e atravessando os ares com a bandeira tricolor. É a glória e a confessada inconsciência, é a vitória (e a derrota) de uma sociedade. Tognazzi vê, um pouco por todo o lado, o rosto de Gassman, ora padre, ora soldado fascista, ora meretriz, ora popular irado (que incendeia uns carros de matrícula inglesa). Das suas mãos, que apertam a prova da inocência do industrial, deixa cair um caderno que se vai “purificar” nas labaredas do carro em chamas. Gassman era todavia o responsável por muitas outras criminosas actividades. Um dos responsáveis pela Itália de hoje. O magistrado pode escolher e opta pelo que julga uma medida de saneamento. Sabendo, embora, que ela, por si só, a nada levava de concreto. Mas, por suas mãos, justiçou um homem corrupto. “Em Nome do Povo Italiano”. Poderá pensar-se que nada melhor do que fazer justiça de alguma forma, mesmo que pelas próprias mãos. Mas o gesto do magistrado nada mais representa do que a demonstração de quão doente está esta sociedade, onde à traficância de uns opõe a puritana justiça cega de outros. Magistrado e industrial estão afinal bem um para o outro. O seu frente a frente é o frente a frente de uma sociedade doente. Estamos em 1970, mas poderíamos estar muitos anos depois, na Itália de Berlusconi. Há sequências que dir-se-iam ter sido rodadas em 2007.
Magnificamente interpretado, dirigido com grande serenidade expositiva e com alguma complexidade (pela forma como se intercalam alguns curiosos flashbacks e ainda pelo depoimento directo, que escolheu para certos interrogatórios), “Em Nome do Povo Italiano” é, cinematograficamente, uma obra de grande modernidade narrativa, desenvolta, inquietante. Pode estar “datada” quanto aos cenários e ao guarda-roupa, mas é eterna na forma como discute ideias. Possuidor de um humor muito italiano, mas nem por isso menos rigoroso, este título revela uma inventiva diabolicamente eficaz quanto a processos: quando dois magistrados discutem nas escadarias do palácio de justiça, o incorruptível afirma “Eu sou um magistrado”, ao que o corrupto responde: “Eu também!”. Nesse preciso momento desaba grande parte do interior do palácio de justiça. O que irá obrigar à transferência dos tribunais para as casernas de um quartel.

EM NOME DO POVO ITALIANO
Título original: In Nome del Popolo Italiano ou In the Name of the Italian People
Realização: Dino Risi (Itália, 1971); Argumento: Agenore Incrocci, Furio Scarpelli; Produção: Edmondo Amati; Música: Carlo Rustichelli; Fotografia (Cor): Alessandro D'Eva; Montagem: Alberto Gallitti; Design de produção: Luigi Scaccianoce; Guarda-roupa: Enrico Sabbatini; Direcção de produção: Maurizio Amati, Piero Lazzari; Som: Franco Bassi, Bruno Brunacci; Production Companhias de produção: International Apollo Films; Intérpretes: Ugo Tognazzi (Mariano Bonifazi), Vittorio Gassman (Lorenzo Santenocito), Ely Galleani (Silvana Lazzarini), Yvonne Furneaux (Lavinia Santenocito), Michele Cimarosa (Casciatelli), Renato Baldini (Cerioni), Pietro Tordi (Professor Rivaroli), Maria Teresa Albani, Alfredo Adami, Rossella Bergamonti, Francesco D'Adda, Marcello Di Falco, Checco Durante, Edda Ferronao, Mario Maranzana, Paolo Paoloni, Enrico Ragusa, Franca Scagnetti, Simonetta Stefanelli, Claudio Trionfi, Franco Angrisano, Gianfilippo Carcano, Vanni Castellani, Piero Nuti, Franca Ridolfi, etc. Duração: 103 minutos; Classificação etária: M/12 anos; Distribuição em Portugal: inexistente; DVD: Studio Canal / Cinema all’ Italiana (original italiano, com legendas em francês).

FILMES EM EPISÓDIOS: OS MONSTROS (1963), OS NOVOS MONSTROS, VEJO TUDO NU (1969)



OS MONSTROS (1963), 
OS NOVOS MONSTROS, 
VEJO TUDO NU (1969)


As décadas de 60 e 70 do século passado foram uma época onde, sobretudo nas cinematografias europeias, particularmente nas francesa e italiana, se desenvolveu um tipo de filmes em episódios (em “sketches”), assinados por um mesmo realizador ou agrupando vários autores. Houve filmes e episódios para todos os gostos, mas aparecerem sobretudo muitas comédias. Dino Risi foi um dos introdutores deste tipo de filmes segmentados, com “I Mostri” (OS MONSTROS), uma co-produção ítalo-francesa de Mario Cecchi Gori, de 1963, com argumento de Agenore Incrocci, Ruggero Maccari, Elio Petri, Dino Risi, Furio Scarpelli e Ettore Scola. Dois monstros sagrados, Vittorio Gassman e Ugo Tognazzi, protagonizaram os diversos episódios. O filme conheceu um tremendo sucesso de público e de crítica e justificou sequelas directas, como “I Nuovi Mostri”, em 1977, e uma série de outras, das mais diversas proveniências.
O original de 1963 continha 20 episódios, e todo o filme, como já o dissemos, era dirigido por Dino Risi. Os episódios, recordados aqui de forma sucinta, eram "L'Educazione Sentimentale" (um pai que “educa” o filho querido a se desenrascar na vida, não olhando a nada nem a ninguém, a não ser ele próprio), "La Raccomandazione" (um actor de grande prestígio, de nome Gassman, que recomenda ao director de uma outra companhia um colega em desgraça, mas que acaba por impor outro em seu lugar, por forma a ver-se livre de um peso extra na sua tabela de ordenados), "Il Mostro" (uma foto para a posteridade, “à la minute”, de um homem que se vê rodeado por dois polícias verdadeiramente “monstruosos”, quando ele próprio é apontado como o “monstro” que matou cinco filhos e se fechou em casa), "Come un Padre" (um jovem descobre que a mulher, com quem casara há três meses, lhe é infiel e vai ter, de noite, com o melhor amigo para lhe contar o sucedido. Este ouve, desconfia das “certezas” do marido enganado, aconselha-lhe calma, antes de o enviar de volta a casa. Quando regressa à sua cama, confidencia à mulher do amigo, que ali se encontra, que no dia seguinte vai jantar a casa dela), "Presa dalla Vita" (uma velhota, muito velhota, é literalmente raptada para ser figurante durante a rodagem de um filme, durante a qual é atirada à água de uma piscina. É necessário repetir: 13ª take), "Il Povero Soldato" (um soldado é chamado à cidade para reconhecer o corpo da irmã assassinada. Descobre que ela era prostituta e que mantinha actualizado um diário onde anotava todas as visitas a clientes. O soldado, compungido pela dor, vai vender o diário ao jornal que mais der pelos escândalos da inditosa mana), "Che Vitaccia" (num bairro da lata um família vive em dificuldades. O marido chora-se pela vida difícil que leva, com a mulher doente, de cama, mas arranja tempo e dinheiro para ir ao estádio gritar pelo seu clube), "La Giornata dell'Onorevole" (um deputado da Democracia Cristã, que dorme num convento, é instado por um camarada de partido a retardar o reconhecimento de uma informação que anularia um negócio de um correligionário, o que o político faz de forma particularmente eficaz e sem “sujar as mãos”), "Latin Lovers" (dois “latin lovers” na praia “galam” todas as mulheres que lhe passam pela frente, mas acabam de mãos entrelaçadas), "Testimone Volontario" (uma testemunha oferece–se voluntariamente para depor num julgamento, e acaba na prisão, por causa da sua sede de verdade e justiça), "I Due Orfanelli" (dois órfãos pedintes), "L'Agguato" (um polícia que se esconde por detrás de um quiosque de venda de jornais para autuar cada carro que pára para comprar um jornal) , "Il Sacrificato" (um D. Juan que se despede de uma amante, “sacrificando-se por ela”, pelo “seu futuro”, pela “vida que está a perder”, segundo as suas palavras, para logo a seguir a trocar por outra, novinha em folha), "Vernissage" (a compra de um novo carro um Fiat 600, para a família, que é inaugurado por uma prostituta de rua), "La Musa" (reunido o júri literário, a “Diva” argumenta em defesa de um medíocre romance, mas de um jovem autor que ela bem conhece de noites passadas em conjunto), "Scende l'Oblio" (um casal bem instalado na vida assiste a um filme onde os nazis dizimam prisioneiros encostados a um muro. O marido refere que é “um muro como este” que quer a vedar a sua casa), "La Strada è di Tutti" (enquanto peão, o comportamento é um, quando ao volante de um pequeno carro pratica-se a antítese), "L'Oppio dei Popoli" (enquanto o marido assiste vidrado à televisão, a mulher recebe no quarto o amante de ocasião), "Il Testamento di Francesco" (um padre que prega a humildade e a simplicidade no pequeno ecrã e que se aperalta na caracterização da TV para aparecer “em beleza”)  e "La Nobile Arte" (a humilhação dos últimos dias dos grandes pugilistas que se arrastam à procura de um derradeiro combate).   Alguns destes episódios são pequenas obras-primas de miniaturista, outros são curtas anedotas de sucinto desenvolvimento e de curto alcance. Há os grotescos e os ternos, os violentamente críticos e os de mão leve, há alguns interpretados de forma magistral e os vividos com certa graça. Há mesmo um travesti de Gassman.
Há, sobretudo, retratos de uma certa fauna italiana (mas não só, não só!) que restituem uma panorâmica (parcial, deformada, claro, ou não se tratasse de “monstros”!) de algumas das taras da sociedade italiana do “boom económico” dos anos 50 e 60, mas que se irá manter (e reproduzir-se, para mal dos nossos pecados!) nos anos seguintes.
Ugo Tognazzi (“L'Educazione Sentimentale", “Il Mostro", "Come un Padre", Il povero soldato", "La giornata dell'onorevole", "Latin lovers", "Testimonio Volontario", "L'Agguato", "Vernissage", "Scenda l'Oblio",  "L'Oppio dei Popoli", "La Nobile Arte") e Vittorio Gassman ("La raccomandazione", "Il mostro", "Presa dalla vita", "Che vitaccia", "Latin lovers", "Testimonio volontario", "La musa", "I due orfanelli", "Il sacrificato", "La strada è di tutti", "Il testamento di Francesco" e "La nobile arte") eram os protagonistas. Por vezes notáveis.


“I Nuovi Mostri” (OS NOVOS MONSTROS), de 1977, dividia a direcção por três dos maiores autores da comédia italiana: além de Dino Risi, apareciam ainda colaborações de Ettore Scola e Mario Monicelli, e o argumento era da responsabilidade de Agenore Incrocci, Ruggero Maccari, Giuseppe Moccia, Ettore Scola e Bernardino Zapponi. Os principais actores eram Alberto Sordi, Vittorio Gassman, Ugo Tognazzi e Ornella Muti, e a obra era composta por 14 episódios na sua versão original, reduzida a 12 na versão que correu mundo. A importância desta obra foi tal que chegou a ser nomeada para o Óscar de melhor filme de língua estrangeira.
Os 14 episódios da versão original estavam assim divididos: dois dirigidos por Mario Monicelli ("Autostop", com Ornella Muti e "Pronto Soccorso", com Alberto Sordi); sete rodados por Ettore Scola ("L'Uccellino della Val Padana", com Ugo Tognazzi; "Il Sospetto", com Vittorio Gassman; "Cittadino Esemplare", com Vittorio Gassman; "Sequestro di Persona Cara", com Vittorio Gassman; "Come una Regina", com Alberto Sordi; "Hostaria!", com Vittorio Gassman e Ugo Tognazzi e ainda "Elogio Funebre", com Alberto Sordi). Finalmente, Dino Risi realiza cinco episódios: "Con i saluti degli amici", "Tantum ergo”, com Vittorio Gassman, "Mammina e mammone", com Ugo Tognazzi, "Pornodiva" e "Senza parole", com Ornella Muti.
Organizando-se, tal como o anterior filme da série, em torno de vários episódios colados uns aos outros sem aparente relação, a não ser aquela que o próprio título sugere, “novas monstruosidades sociais italianas”, “I Nouvi Monstri” oscila de novo entre a anedota mais ou menos inconsequente e o conto de ressonâncias trágicas ou patéticas que a simplicidade de processos, a qualidade da interpretação (Alberto Sordi está sensacional nesta obra, sobretudo em "Pronto Soccorso") e a intencionalidade crítica tornam irrecusáveis. Apesar de irregular tanto na densidade de cada episódio, na sua duração, no seu desenvolvimento, como nos seus propósitos, este é um filme que, tal como o anterior, oferece uma curiosa galeria de tipos e de situações que se impõem facilmente e justificam amplamente a visão. "Pronto soccorso", de Comencini, é uma pequena obra-prima, "Mammina e Mammone", com Ugo Tognazzi, "Pornodiva", ambos de Dino Risi, são excelentes apontamentos de um universo demente, "Come una Regina", com Alberto Sordi, "Hostaria!", com Vittorio Gassman e Ugo Tognazzi e ainda "Elogio Funebre", com Alberto Sordi, os três de Ettore Scola, são outros tantos momentos de um doloroso burlesco que joga com o que há de mais trágico e de mais sórdido na alma humana.


Outro dos filmes em episódios assinado inteiramente por Dino Risi é “VEJO TUDO NÚ”, de 1969, com participação de Nino Manfredi em todos os sketches, que abordam a obsessão sexual que se apoderou da sociedade ocidental por essa época de “flower power” e de “make love not war”. O sexo está presente em cada olhar. “La Diva” é a própria Sylva Koscina que socorre um ferido numa estrada e que o leva ao hospital, onde provoca tamanho rebuliço que o ferido morre sem tratamento, mas ela consegue reunir à sua volta todos os médicos e enfermeiros de serviço. Em “Processo a Porte Chiuse' um rústico, que abusa sexualmente de uma galinha, defende-se da acusação, sublinhando a irresistível sedução da franga. “Ornella” reúne travesti e homossexualidade num jogo de esconde-esconde; “Il Guardone” retrata um “voyeurista” tão obcecado com corpos nus que se excita com o seu próprio rabo reflectido num espelho e que toma pelo de uma mulher; “L'Ultima Vergine” reúne uma mulher solitária e um empregado da companhia de telefones que ela toma por um tarado sexual; “Motrice Mia” é um dos episódios mais célebres e aborda o caso de um fetichista com comboios que atinge o orgasmo quando eles lhe passam por cima, quando se encontra estendido entre os carris. Bom chefe de família, transmuda-se todas as noites, à mesma hora. Finalmente, “Vedo Nudo” ou a história de um publicitário que não consegue ver qualquer mulher senão nua, à força de as fotografar sempre assim. O sexo a dominar a mente de toda a gente, como consequência sobretudo de uma sociedade de consumo que tudo vende, criando necessidades extras através de um marketing impositivo.
Dino Risi foi, dos autores transalpinos, um dos que melhor simbolizaram um certo espírito da comédia popular italiana. Ao dizermos popular, queremos referir ser ela simultaneamente um reflexo do próprio povo (das suas características, virtudes e defeitos), e um produto facilmente perceptível pelas plateias de todas as origens sociais. De onde o êxito de crítica e de público que muitas das suas obras tiveram ao longo da sua extensa actividade. Dino Risi teve ainda a vantagem, que alguns outros colegas seus nem sempre atingiram, de ser um autor de um humor enraizado no povo, mas de expressão subtil, denunciando uma sensibilidade elegante e requintada, o que se sente bem, quer ao nível dos “décors” escolhidos, quer ainda na delicadeza e suavidade da sua câmara, na forma como ela se movimenta e enquadra os actores.

OS MONSTROS
Título original: I Mostri
Realização: Dino Risi (Itália, França, 1963); Argumento: Agenore Incrocci, Furio Scarpelli, Elio Petri, Dino Risi, Ettore Scola, Ruggero Maccari, Ettore Scola, Ruggero Maccari; Produção: Mario Cecchi Gori; Música: Armando Trovajoli; Fotografia (p/b): Alfio Contini; Montagem: Maurizio Lucidi; Design de produção: Ugo Pericoli; Decoração: Arrigo Breschi; Guarda-roupa: Ugo Pericoli; Maquilhagem: Gustavo Sisi, Otello Sisi; Direcção de produção: Pio Angeletti, Umberto Santoni; Assistentes de Realização: Vana Caruso; Som: Fausto Ancillai, Guido Ortenzi; Companhias de produção: Fair Film, Incei Film, Montfluor Film, Dicifrance; Intérpretes: Ugo Tognazzi / Il padre (segmento "L'Educazione sentimentale") / (carabiniere / segmento "Il mostro") / Stefano (segmento "Come un padre") / Battacchi (segmento "Il povero soldato") / L'onorevole (segmento "La giornata dell'onorevole") / latin lover (segmento "Latin lovers") / Pilade Fioravanti (segmento "Testimonio volontario") / il vigile (segmento "L'agguato") / Impiegato (segmento "Vernissage") / Spettatore (segmento "Scenda l'oblio") / Marito (segmento "L'oppio dei popoli") / Guarnacci (segmento "La nobile arte"); Vittorio Gassman / (segmentos "La raccomandazione", "Il mostro", "Presa dalla vita", "Che vitaccia", "Latin lovers", "Testimonio volontario", segmentos "La musa", "I due orfanelli", "Il sacrificato", "La strada è di tutti", "Il testamento di Francesco", "La nobile arte"), Lando Buzzanca / Luchino (segmento "Come un padre"); Marisa Merlini / Paola Fioravanti (segmento "Testimone volontario"), Rika Dialina / Anna (segmento "Il Sacrificato"), Michèle Mercier / Maria (segmento "L'opio dei popoli"), Ricky Tognazzi / Paoletto (segmento "L'educazione sentimentale"), Franco Castellani / Paolo (segmento "La Raccomandazione"), Maria Mannelli / Olimpia (segmento "Presa dalla vita"), Mario Laurentino / Nino (segmento "Il povero soldato"), Angela Portaluri / Ersilia (segmento "Che vitacchia"), Yacinto / Yaria Aristide (segmento "La Giornata dell'onorevole"), Franco Caracciolo / Zenone (segmento "La giornata dell'onorevole"), Carlo Kechler / Nino (segmento "La giornata dell'onorevole"), Ugo Attanasio / Lamberto (segmento "La Giornata dell'onorevole”), Luciana Vincenzi / Gina (segmento "Latin lovers"), Carlo Bagno / Gianni (segmento "Testimone volontario"), Daniele Vargas / Salvatore (segmento "I Due orfanelli”), Mario Cecchi Gori / Automobilista (segmento "L’ Agguato"), Françoise Leroy / Giuliana (segmento "Il Sacrificato"), Sal Borgese / Umberto (segmento "La musa"), Jacques Herlin / Lachapelle (segmento "La musa"), Maria Luisa Rispoli / Flavia (segmento "Scenda l'oblio"), Marino Masé / amante (segmento "L'oppio dei popoli"), Riccardo Paladini / Luigi (segmento "Il Testamento di Francesco"), Mario Brega (segmento "La Nobile arte"), Nino Nini / Enrico (segmento "La nobile arte"), Ottavia Panunzi (segmento "La nobile arte"), Lucia Modugno / Clara Antinori (segmento "La Nobile arte"), etc. Duração: 115 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais.

VEJO TUDO NÚ
Título original: Vedo Nudo
Realização: Dino Risi (Itália, 1969); Argumento: Fabio Carpi, Jaja Fiastri, Ruggero Maccari, Dino Risi, Bernardino Zapponi; Produção: Pio Angeletti, Adriano De Micheli; Música: Armando Trovajoli; Fotografia (cor): Alessandro D'Eva, Erico Menczer; Montagem: Alberto Gallitti; Design de produção: Luciano Ricceri; Guarda-roupa: Ezio Altieri; Maquilhagem: Iolanda Conti, Michele Trimarchi; Direcção de produção: Hermes Gallippi, Antonio Mazza; Assistentes de Realização: Adriano Incrocci; Som: Vittorio Massi, Mario Morigi, Ludovico Scardella; Companhias de produção: Dean Film, Jupiter Generale Cinematográfica; Intérpretes: Nino Manfredi (vários papaeis), Sylva Koscina, Véronique Vendell (Manuela), Umberto D'Orsi (Federico), Daniela Giordano (Luísa), Nerina Montagnani, Bruno Boschetti, Marcello Prando, Guido Spadea, Enrico Maria Salerno, Luca Sportelli, John Karlsen, etc. Duração: 105 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais. 

UMA VIDA DIFÍCIL



UMA VIDA DIFÍCIL (1961)


Há filmes que marcam a nossa vida bem para lá do seu significado cinematográfico. “Uma Vida Difícil”, estreado em Portugal no início da década de 60, na sala do cinema Império, é um desses casos. Estávamos num período difícil da ditadura salazarista no nosso país. Na noite da estreia, uma ruidosa salva de palmas acompanhou uma das cenas capitais da nova comédia de Dino Risi. Depois de hora e meia de enxovalho, Silvio Magnozzi (Alberto Sordi), o jornalista protagonista deste filme, abre caminho entre os convidados de uma festa de Vips romanos, dirige-se a um sobranceiro e arrogante gestor de negócios obscuros, daqueles em que a Itália foi pródiga nos conturbados tempos do pós-guerra, e, com uma chapada bem aplicada, enfia o figurão nas águas da piscina. Ouvia-se então uma estrondosa salva de palmas por parte de centenas de frustrados espectadores portugueses que, há muitos anos, esperavam por fazer o mesmo, sem o poderem sequer pensar alto. Nas “matinées” e “soirées” seguintes, diz quem viu, o fenómeno repetiu-se. “Una Vita Difficile” ficava a figurar assim nos anais da história de resistência política de Portugal. Aquela bofetada que Alberto Sordi lançava na cara de um burgesso “comendador” era a bofetada de um Portugal inteiro na face de uma ditadura odiada. Um filme era assim mais do que um filme. Mas era-o porque este filme se assumia, antes de ser uma provocação social, como uma excelente obra cinematográfica, uma obra de arte que permaneceria na memória e no coração de muitos.
Creio que, definitivamente, esta é a primeira obra-prima de Dino Risi (a que se iriam juntar “A Ultrapassagem” e “Perfume de Mulher”). O filme é um documento magnífico da história da Itália, entre os dias que antecedem o fim da II Guerra Mundial e o início da década de 60, entre um período de muito sofrimento e muita esperança numa profunda transformação na sociedade italiana e uma época de total desilusão para os utópicos e de muita frieza e calculismo para os homens de negócios que viram na indecisão dos tempos o convite a especulações de lucro imediato. Enquanto alguns dos que haviam lutado anteriormente contra o fascismo se “moldavam” às tendências dominantes, enquanto outros mudavam de casaca e se afeiçoavam a novos “ideais”, muitos continuavam a recusar dobrar-se ao que pareciam ser as forças do destino, e continuavam teimosamente a lutar por utopias sociais. O jornalista Silvio Magnozzi, que integrara a resistência no combate ao fascismo mussoliniano, que fora feito prisioneiro, que escrevera panfletos e ajudara em acções guerrilheiras, terminada a guerra manteve-se sob a mesma bandeira. Continuou a lutar com a sua máquina de escrever, nas redacções de jornais, mas também com a sua voz em reuniões nos cafés e em manifestações políticas partidárias.


Cercado pela subserviência galopante, vendo os amigos e os antigos camaradas a cederem lentamente aos caprichos de uma sociedade cada vez mais individualista e egoísta, onde o lucro fácil se transforma na única meta a atingir, Magnozzi sofre, tanto mais que, em sua própria casa, a mulher compreende cada vez menos a sua obstinação numa vida de penúria. Magnozzi é uma mistura de timidez e de arrogância militante, capaz de pequenas cobardias, dissimuladas humilhações, ou de grandes gestos teatrais, sem todavia assumir uma postura muito coerente, apesar de nunca renegar princípios e valores em que acredita. Mas, a partir da altura em que a mulher o abandona, Magnozzi fica transtornado, oscila eticamente e, para a reconquistar, aceita submeter-se ao poder ascendente de uma classe de construtores civis e traficantes de armas que ascendem ao capitalismo triunfante e às suas benesses. Servilmente, passa a ser o relações públicas de um desses comendadores de aviário que sente mesmo um certo prazer em curvar a espinha (e moldar a dignidade) de um daqueles que anteriormente haviam jurado não abdicar de uma certa conduta social e política. O normal nestes casos: quem trai gosta de se ver rodeado de outros traidores, se possível ainda mais traidores do que ele, para se sentir massa da mesma massa e ficar tudo “em família”.


O percurso da Itália entre duas décadas é dado de forma invulgarmente eficaz. Com a serenidade de escrita e a eficácia narrativa de sempre, Dino Risi descreve um época, um tempo histórico, não visto tanto pelos grandes momentos “históricos”, mas pela vida do dia-a-dia e pela análise de uma mentalidade e de um modo de vida que progressivamente vai resvalando e adulterando características. Neste aspecto, a colaboração de Alberto Sordi é particularmente influente, pois o trabalho do actor e prodigioso de sensibilidade, de acutilância, num registo dificílimo que se pode definir num desenho de personagem trágico-cómico que só um intérprete especialmente dotado consegue manter num termo justo, sem descambar em algo de vulgar, grosseiro ou piegas. Alberto Sordi é simplesmente brilhante, ajudando Dino Risi a desenvolver uma obra que conta com sequências inesquecíveis: o jantar em casa de uma família monárquica que espera os resultados de um referendo sobre “República ou Monarquia” é absolutamente genial, pela forma como a caricatura é contida nos limites do razoável, sendo, no entanto, cáustica; a já referida cena da festa do comendador, que termina com a bofetada justiceira, é de antologia; a tormenta psicológica por que passa Magnozzi, após a separação da mulher (excelente Lea Massari, diga-se), obriga-o a persegui-la de restaurante em restaurante, de bar em bar, até culminar com uma épica bebedeira que leva o jornalista a invectivar todos os carros que passam na estrada, acusando o carro de ser o símbolo da rápida promoção social e da profunda decadência moral dos italianos. Uma outra sequência merece referência, tendo o cinema como centro de atenção e de crítica. Por esta altura, o cinema transalpino caracterizava-se por filmes históricos, os chamados “peplums”. Silvio Magnozzi vai procurar na Cinecittá, num intervalo de filmagens, um conde amigo da mulher, que caíra em desgraça e sobrevive como figurante em filmes de romanos e cristãos. O jornalista quer vender um argumento ao realizador Blasetti, mas o mais interessante na sequência é assistir-se igualmente à decadência do próprio cinema italiano, que se deixa contaminar por essa volúpia do lucro fácil e do “gosto do grande público”. A cena é divertidíssima, e Dino Risi, que era acusado de ser um cineasta que trocara a seriedade pelo humor, e tornara “rosa” o “neo-realismo”, “vinga-se” aqui, ainda por cima criando uma obra-prima de uma qualidade e perenidade que muitos dos seus detractores nunca conseguiram. Visto hoje em dia, “Uma Vida Difícil” não tem uma ruga e espanta pela modernidade e pela acuidade: as sociedades apenas se tornaram mais do mesmo.

UMA VIDA DIFICIL
Título original: Una Vita Difficile

Realização: Dino Risi (Itália, 1961); Argumento: Rodolfo Sonego; Produção: Dino De Laurentiis; Música: Carlo Savina; Fotografia (p/b): Leonida Barboni; Montagem: Tatiana Casini Morigi; Design de produção: Mario Chiari; Direcção artística: Mario Scisci; Guarda-roupa: Lucia Mirisola; Maquilhagem: Giuliano Laurenti; Assistentes de Realização: Vana Caruso, Franco Montemurro; Som: Biagio Fiorelli, Enrico Moreal; Companhias de produção: Dino de Laurentiis Cinematográfica; Intérpretes: Alberto Sordi (Silvio Magnozzi), Lea Massari (Elena Pavinato), Franco Fabrizi (Franco Simonini), Lina Volonghi (Amelia Pavinato), Claudio Gora (Commendador Bracci);  Antonio Centa (Carlo), Loredana Cappelletti (Giovanna), Mino Doro (Gino Laganà), Daniele Vargas, Borante Domizlaff, Paolo Vanni, Edith Peters, Valeria Manganelli, Salvatore Campochiaro, Bruna Perego, Alfonsina Cetti, Piera Pichi, Carlo Kechler, Nina Honenlohe-Oehringen, Kraft Honenlohe-Oehringen, Enzo Casieri, Leo Monteleoni, Antonio Marrosu, Alfredo Lucifero, Carolyn De Fonseca, Alessandro Blasetti, Vittorio Gassman, Silvana Mangano, Umberto Raho, Franco Scandurra, Renato Tagliani (estes últimos, não creditados), etc. Duração: 118 minutos; Classificação etária: M/12 anos; Distribuição em Portugal: inexistente; DVD: Studio Canal / Cinema all’ Italiana (original italiano, com legendas em francês). 

O VIÚVO ALEGRE


O VIÚVO ALEGRE (1959)


“Il Vedovo”, de 1959, é uma das primeiras obras importantes de Dino Risi, que se afasta um pouco da linha da comédia rósea e se instala nos terrenos da comédia dramática de forte componente social que o irá caracterizar a partir daí. Com argumento de Fabio Carpi, Sandro Continenza, Dino Risi, Rodolfo Sonego e Dino Verde, partindo de um caso da actualidade (o chamado “caso Fenaroli”, um milionário milanês que fez assassinar a mulher através de um gang assalariado), “O Viúvo Alegre” tem como protagonista um industrial pouco hábil nos negócios, Alberto Nardi (Alberto Sordi), casado com uma milionária, Elvira Almiraghi (Franca Valeri), mulher fria e ríspida, que nutre por ele um evidente desprezo e o trata publicamente nunca acima de “cretino”. Alberto fracassa sucessivos negócios, que a mulher desistiu já de suportar economicamente, pelo que os tempos estão conturbados e os elevadores construídos na firma de Nardi não avançam senão aos repelões. Nardi, uma fulgurante interpretação de Alberto Sordi, a preparar-se já para a sua genial composição em “Uma Vida Difícil”, sente-se humilhado, mas vai procurando disfarçar o trauma, até que um dia a mulher é dada como uma das vítimas de um acidente de comboio. Toda a vida de Alberto se modifica, assumindo o papel de herdeiro de vultuosas quantias e sendo por isso reverenciado por quem horas antes o ignorava ou desprezava. O velório de um cadáver que ainda não foi encontrado transforma-se na vingança secreta de uma vítima que enfim assume a sua liberdade económica e social. Mas o corpo da mulher, que se julga já cadáver, não aparece na morgue como seria o desejo de Alberto Nardi, mas bem vivo (e impositivo como sempre), no seu próprio velório. O industrial fica prostrado, mas começa a engendrar uma nova forma de se livrar da inoportuna “ressuscitada”. Mas nem tudo corre como o previsto, sobretudo a um gestor que se distingue precisamente pelo falhanço dos seus empreendimentos.


O filme adquire uma ambiência pesada e soturna, de acordo com o tema, mas a sátira impõe-se e o clima é sustentado a um nível muito bom, quer através da fotografia num denso preto e branco com a assinatura de Luciano Trasatti, quer através das interpretações que potencia o tom pecaminoso e patológico da intriga. Dino Risi, não abdicando de uma escrita serena, elegante, discreta, funcional, vai criando um estilo muito pessoal, que se concretizará de forma brilhante nas obras que se aproximam e que marcam o seu melhor período de criador e de moralista da sociedade italiana do pós-guerra. Um moralista de costumes, que nunca aceita a beatice hipócrita, mas procura sobretudo criticar, pelo riso, as monstruosidades e as injustiças que uma sociedade cega pela ambição económica e o facilitismo na promoção social promove desavergonhadamente.

O VIÚVO ALEGRE
Título original: Il Vedovo 
Realização: Dino Risi (Itália, 1959); Argumento: Fabio Carpi, Sandro Continenza, Dino Risi, Rodolfo Sonego, Dino Verde; Produção: Edgardo Cortese, Cino Del Duca, Elio Scardamaglia; Música: Armando Trovajoli; Fotografia (p/b): Luciano Trasatti; Design de produção: Piero Filippone; Decoração: Riccardo Domenici; Guarda-roupa: Gaia Romanini; Maquilhagem: Cinzia Bonanni; Telemaco Tilli; Direcção de produção: Piero Lazzari; Assistente de Realização: Lù Leone; Som: Giuseppe Serafini; Companhias de produção: Cino del Duca, Paneuropa; Intérpretes: Alberto Sordi (Alberto Nardi), Franca Valeri (Elvira Almiraghi), Livio Lorenzon (Stucchi), Nando Bruno (tio de Alberto), Ruggero Marchi (Carlo Fenoglio), Gastone Bettanini, Mario Passante, Enzo Petito, Nanda Primavera, Rosita Pisano, Alberto Rabagliati, Mario Cianfanelli, Carlo Di Maggio, Ignazio Dolce, Consalvo Flirt, Angela Luce, Ignazio Leone, Eugenio Maggi, Paola Patrizi, Gigi Reder, Luigi Riccardi, Artemide Scandariato, Leonora Ruffo, Andrea De Pino, Enzo Furlai, Sylva Koscina, Luigi Leoni, Antonio Pignatelli, etc. Duração: 87 minutos; Classificaçãoetária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: inexistente; DVD: SNC Les Maitres Italiens (Original italiano, com legendas em francês). 

O CASTIGADOR


O CASTIGADOR (1960)

“Il Mattatore”, com argumento de Age(nore Incrocci) e (Furio) Scarpelli, Ruggero Maccari, Sandro Continenza, Sergio Pugliese e Ettore Scola, marca o encontro de Dino Risi e Vittorio Gassman, enquanto realizador e actor (ambos já se haviam cruzado em “Anna”, de Alberto Lattuada, onde Dino Risi era um dos argumentistas). Encontro que se irá prolongar por muitos anos e muitos filmes (quinze obras dirigidas por Dino Risi e protagonizadas pelo actor) e que irá render bons frutos a ambos. Algumas das películas assinadas pelos dois foram sucessos indiscutíveis de público e crítica, assinalam algumas das obras-primas de ambas as filmografias, conquistaram importantes prémios e asseguraram a glória eterna dos dois nomes.
“Il Mattatore” é Gerardo Latini (Vittorio Gassman), um pobre diabo que sonha ser actor de vaudeville, mas nunca ultrapassa a condição de rabulista sem talento, sobrevivendo de expedientes, que o levam a aceitar partilhar um golpe, que o conduzirá directamente à cadeia. Preso, é atrás das grades que aprende as artimanhas do ofício, com um tal Chinotto (o fabuloso Peppino De Filippo). Quando ambos se encontram em liberdade, a camaradagem da “escola” faz o resto e põe em execução os planos engendrados “lá dentro”. Gerardo, que no palco nunca conseguira ser convincente, na arte de burlar os mais fracos e os mais desatentos é um perito, o que permite a Vittorio Gassman construir um conjunto de figuras verdadeiramente de antologia, que vão estar na origem de vários filmes em episódios, sub género da comédia italiana em que o cinema transalpino será fértil, ao longo das décadas de 60 e 70. A acção do filme começa precisamente na actualidade (do filme) quando Gerardo Latini volta a casa e discute com a mulher Annalisa a melhor forma de oferecer um presente sem ultrapassar as possibilidades do orçamento familiar. Pouco depois do jantar, alguém bate à porta tentando vender um objecto em prata, cujo preço vai descendo de degrau em degrau até se tornar desejável. Mas aí o vendedor troca o objecto verdadeiro pela sua caixa vazia e vai embora, julgando ter praticado mais um golpe. Acontece que Gerardo conhecia esse e muitos outros golpes e descobre a careca ao traficante, que afinal reconhece como antigo camarada de cela na prisão Regina Coeli. O reencontro permite a Gerado um flash-back sobre o que o levou à cadeia, a forma como caíra como um patinho num golpe falhado em que ele ficara no terreno para arcar com as culpas e cumprir quatro anos de cativeiro, mas também de aprendizagem de maus costumes. Chinotto, o “Artista” de mãos ágeis, acabaria por se tornar seu associado.
Rodado em Milão, “O Castigador”, produzido por Mario Cecchi Gori, não será já do melhor Risi, nem sequer do melhor Gassman, que se excedem em “A Ultrapassagem”, “Novos Monstros” ou em “O Perfume de Mulher”, para só falar de alguns títulos mais sonantes. Existem cenas bem conseguidas, mas outras arrastam-se um pouco, muito embora a presença de Peppino De Filippo seja um “plus” não negligenciável. Vittorio Gassman, por seu lado, foi uma escolha óbvia, já que por essa altura interpretava o papel de “Il Mattatore” num programa de televisão que o popularizava e lhe permita uma multiplicidade de papéis que o filme de Dino Risi potencia. Curiosamente, foi um dos raros filmes de Dino Risi, desta época, a ser seleccionado para um grande festival internacional, precisamente o Festival de Berlim.

O CASTIGADOR
Título original: Il Mattatore ou L’ Homme aux cent visages ou Love and Larceny
Realização: Dino Risi (Itália, França, 1960); Argumento: Sandro Continenza, Agenore Incrocci, Ruggero Maccari, Sergio Pugliese, Furio Scarpelli, Ettore Scola; Produção: Mario Cecchi Gori; Música: Pippo Barzizza; Fotografia (p/b): Massimo Dallamano; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Giorgio Giovannini; Decoração: Arrigo Breschi; Guarda-roupa: Marisa D'Andrea, Romolo Martino; Maquilhagem: Marcella Cecchini; Direcção de produção: Gianni Cecchin; Assistentes de Realização: Lù Leone; Som: Mario Amari, Umberto Picistrelli; Companhias de produção: CEI Incom, Maxima Film Compagnia Cinematográfica, S.G.C.; Intérpretes: Vittorio Gassman (Gerardo Latini), Dorian Gray (Elena), Anna-Maria Ferrero (Annalisa Rauseo), Mario Carotenuto (Lallo Cortina), Alberto Bonucci (Gloria Patri), Fosco Giachetti (General Benito Mesci), Luigi Pavese, Nando Bruno, Linda Sini, Piera Arico, Aldo Bufi Landi, Enrico Glori, Salvatore Cafiero, Mario Scaccia, Armando Bandini, Mario Frera, Peppino De Filippo (Chinotto), Armando Annuale, Gianni Baghino, Enzo Cerusico, Dina De Santis, Pier Ugo Gragnani, Ignazio Leone, Enzo Petito, Andrea Petricca, Mimmo Poli, Walter Santesso, Gisella Sofio, Erminio Spalla, Vincenzo Talarico, etc. Locais de rodagem: Milão, Lombardia, Itália; Duração: 95 minutos;  Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais.


A ULTRAPASSAGEM


A ULTRAPASSAGEM (1962)

“Il Sorpasso” é definitivamente uma das obras-primas da cinematografia italiana e um dos grandes filmes de Dino Risi, que consegue com esta comédia atingir um nível de qualidade estética e de significado temático mais do que evidentes. Transformou-se num filme de culto. De resto, define plenamente um estilo e um pensamento que têm a ver unicamente com um “autor”. Há vários temas que começam a impor-se como constantes na obra deste cineasta: a viagem como iniciação, a estrada como cenário, o carro, forma de promoção social, mas também local privilegiado de confissões, o aldrabão fala-barato em oposição ao idealista tímido, a dispersão de personagens populares (o mesmo actor em diversos registos, ou diversos actores compondo uma galeria de tipos, que podem coexistir ou não na mesma obra), a crítica contundente à Itália do pós-guerra, aquela que ficou conhecida como a do “milagre económico”, a que deserdou a esquerda da utopia, a que reabilitou a direita vencida na guerra, promovida pela reconstrução (por isso aparecem tantos construtores civis nos seus filmes, quase invariavelmente na qualidade de traficantes de influências e corruptos profissionais). Sobretudo começa a impor-se um olhar descomprometido para com a realidade social italiana (mas não só), onde não se salva quase ninguém, onde apenas se olham com alguma simpatia pequenos meliantes. Mas, curiosamente, há uma enorme compreensão humana para também quase toda a gente. Dino Risi critica, por vezes com violência, mas nunca propõe a “pena capital” (óbvia forma metafórica de me referir a um humanismo latente no olhar do cineasta e às magníficas composições dos seus actores de eleição, que, por serem tão magníficos, nunca deixam de inspirar alguma simpatia, mesmo quando procedem das formas mais vis). Dino Risi critica pelo riso a “humana condição”, sem grandes esperanças de transformações, mas com a serena tranquilidade de quem sabe que, apesar de tudo continuar a ser como é, vale a pena intervir pela arte, pela crítica, pelo desenho da crise.


Com argumento de Ettore Scola, Ruggero Maccari e Dino Risi, este é um filme lendário, rodado em 1962, que funciona admiravelmente como panorâmica de observação mordaz e crítica da sociedade italiana destes anos de retoma económica, de despreocupada e súbita prosperidade que, vinda depois da privação da guerra, cria igualmente uma atmosfera de leviandade e arrivismo desnorteados. As privações provocadas pelo fascismo e pela ocupação alemã, as lutas da Resistência, a vitória dos Aliados e a paz trouxeram consigo um conjunto de esperanças e de utopias que cedo cederam perante os comportamentos do dia-a-dia, quer da direita mais reaccionária, que se “moderniza” e se refunda, quer da esquerda mais extrema, que se emburguesa ou se radicaliza, em ambos os casos perdendo e pé e isolando-se da realidade. O que fica deste contexto é uma sociedade sem valores, materialista, consumista, pensando apenas na promoção social, no lucro a todo o preço, no desenrascanço. O automóvel é, nesta situação, um elemento essencial que funciona como símbolo. Uma novidade, como símbolo de uma democratização generalizada. Um símbolo de status. É Dino Risi quem o afirma: “A Itália da guerra é a terra da bicicleta ou dos que andam a pé, depois veio a “motorina” (motorizada, a Lambreta) e por fim “la macchina”, o fabuloso automóvel.”
O filme passa-se no feriado de 15 de Agosto, em Roma. O “ferragosto”, assim se denomina o dia, comemora a assunção da Virgem Maria. A capital fica deserta, não há vivalma, nas ruas quase não circulam viaturas, todas as lojas fecham. Mas Bruno Cortona (Vittorio Gassman) é uma excepção e circula no seu Lancia Aurelia B24 Sport, pelas ruas de Roma, com a celeridade de uma piloto de Fórmula 1. Como veremos ao longo do filme, não tem nada que fazer, mas o que não tem a fazer faz depressa. Anda sempre em busca de alguma coisa. Nesta altura, procura um telefone, pára na berma da estrada para beber, olha para uma janela de um andar defronte e descobre um jovem estudante de direito, a quem pede para ligar para o número tal e perguntar por Marcela, informando-a que está atrasado, mas vai chegar. Outra constante na sua vida: estar atrasado para chegar não se sabe onde, mas anunciar que vai chegar. Roberto Mariani (Jean-Louis Trintignant), que prepara exames para Setembro, e não vê senão livros de estudo, e a ausência de uma bela vizinha, sem saber no que se mete, convida Bruno a subir. É muito mais simples ser ele mesmo a telefonar. Nada a fazer. Bruno assenhoreia-se da situação, toma conta de Roberto, que, meio adormecido numa onda de um transbordante vitalismo, acaba por embarcar numa extenuante viagem pelas estradas da Itália, abrindo deste modo o filme a uma “road movie”, que iria inclusive influenciar directamente (e confessadamente) o “Easy Rider”, de Denis Hopper e Peter Fonda…


Já agora, para se perceber as características da personagem, um pequeno apontamento. Bruno telefona a Marcela, que não atende. Bruno protesta: “Que vão para o inferno! Idiotas! Combinámos encontrarmo-nos às 11 horas, é meio-dia e já não estão!”
Que Roberto é “o aluno”, ficamos a saber desde logo, na sua apresentação. Mas não sabíamos ainda que o iniciador é Bruno, que o levará pelos perigosos caminhos do viver perigosamente, de uma forma sedutora, é óbvio, mas fundamentalmente arriscada, pondo em risco a sua própria vida, mas também a dos outros, de uma maneira egoísta, irresponsável, absurda. No início dos anos 60, nas estradas italianas, conduz a 120, ultrapassa sem qualquer precaução, agride verbalmente os outros automobilistas, brinca com peões, motoristas e ciclistas, instala-se um pouco por todo lado como se a casa fosse sua (inclusive na casa da sua ex-mulher que tem para com ele uma atitude muito semelhante à que os espectadores lhe dedicam: alguma simpatia, alguma compreensão para o miúdo que não cresceu, e que se mantém mimado vida fora, até uma altura em que a idade não perdoa já). O carro é aqui o elemento de referência, tem colado no painel de comandos um retrato de Brigite Bardot, o “sex simbol” europeu destes tempos, com uma bela inscrição de um moralismo machista: “Sê prudente, que te espero em casa!” Quando ultrapassa um ciclista, Bruno grita-lhe: “Compra uma Vespa!”, para logo a seguir completar o raciocínio: “O ciclismo não me interessa, é a antiestético, engrossa as coxas. Prefiro bilhar ou cavalos…”
As “boutades” de Bruno não têm fim. Passam por três padres alemães, a contas com um furo num dos pneus do automóvel. A uma pergunta de Bruno, um dos jovens sacerdotes responde em latim, Bruno não percebe, Roberto traduz: “Eles perguntam se temos um macaco.” “E como se diz que não temos?”, pergunta Bruno. Roberto responde: “Num habemus...” Bruno vira-se para os alemães e, no seu melhor latinório, faz-se compreender: “Num habemus macaco, ciao!”, e parte a toda a velocidade.


Quando surge a canção de Domenico Modugno, Bruno refere-se a um filme de Antonioni (O Eclipse), dizendo que esta música tem “aquela coisa, a solidão, a incomunicabilidade, e aquela outra coisa que está na moda, a alienação, como nos filmes de Antonioni.” Pergunta a Roberto se viu “O Eclipse”? Antes que Roberto diga o que quer que seja, Bruno opina, decisivo: “Eu dormi o tempo todo, foi uma bela soneca. Muito bom realizador, esse Antonioni!” (recorde-se que Dino Risi e Antonioni se estrearam em “Páginas da Vida”, de Zavattini).
Enquanto o carro vai circulando pelas estradas de Itália, a banda sonora vai registando alguns dos “hits” desses anos, mostrando também neste registo sonoro a descontracção e ligeireza da sociedade italiana. Encontramos canções e vozes que marcaram um período, o que também é uma das características do cinema de Risi. “Quando, Quando, Quando”, de Tony Renis e Alberto Testa, na voz de Emílio Pericoli, “St. Tropez Twist”, de Cenci-Faiella, “Per un attimo”, de Luigi Naddeo, “Don’t Play that Song” (You Lied), de Ahmet M. Etergun e Betty Nelson, as três cantadas por Peppino di Capri, “Giani”, de Tassone–Cássia, na voz de Miranda Martino, “Vecchio Frak”, de e na voz de Domenico Modugno, ou “Pinne Fucili Occhiali”, de Rossi-Vianello,  na interpretação de Vianello. Mas é, sobretudo, “Guarda come Dondolo”, igualmente de Rossi-Vianello, na voz de Edoardo Vianello, que dá o tom ao filme e o faz recordar musicalmente.
Esta viagem por Itália vai sendo pontuada por paragens que nos permitem conhecer melhor os protagonistas que se servem quase sempre da viagem no carro para estreitar relações e melhor se conhecerem um ao outro. Mas é quando param em casa da ex-mulher que se percebe algum do passado e muitas das frustrações e fracassos de Bruno, e é nessa altura igualmente que se descobre a filha de Bruno, e as relações entre os pais e ela, a sua atracção por um comendador bem servido de liras e de idade; é quando Roberto redescobre a casa dos tios, onde passou grande parte da sua meninice, que se compreende a sua timidez, a ignorância da vida, os pequenos traumas da sua adolescência. É, no restaurante, onde dá de caras com o patrão que o contratou e que o descobre na boa vida em vez de estar a trabalhar, que vem ao de cima o outro lado da personalidade de Bruno, a sua cobardia, o fala-barato, o desenrascanço. Que todavia não se detém perante nada e parte para a pista de dança com a mulher do patrão, a quem seduz (e por quem é descaradamente seduzido).
Curiosidades sobre a realização desta obra: Alberto Sordi foi o primeiro actor pensado para o principal papel, mas como estava contratado em exclusivo pelo produtor Dino De Laurentiis, Dino Risi teve de optar por Gassman. Com Alberto Sordi, certamente que a densidade do personagem seria diferente. Diferente também poderia ter sido o final da obra, com Roberto a matar Bruno (o que parece chegou a estar na ideia de Risi), mas este final não foi sequer rodado por razões de orçamento.
Este é um filme que denuncia um quase completo pessimismo do cineasta para com a humanidade, por igual. Não há personagens positivas (felizmente Dino Risi não seguia a filosofia do realismo soviético!), há apenas subtis gradações que vão da mediocridade de uma existência cinzenta até à hipocrisia mais brutal de exploradores sem escrúpulos, passando pela vitalismo patético de quem foi apanhado numa engrenagem suicida (ou assassina) e não consegue sequer tempo para parar e pensar. Nesta sociedade onde o que conta é “ultrapassar” e passar à frente, as consequências acabam por ser sempre trágicas.


A ULTRAPASSAGEM
Título original: Il Sorpasso ou The Easy Life

Realização: Dino Risi (Itália, 1962); Argumento: Dino Risi, Ettore Scola, Ruggero Maccari, Ettore Scola, Ruggero Maccari; Produção: Mario Cecchi Gori; Música: Riz Ortolani; Fotografia (p/b): Alfio Contini; Montagem: Maurizio Lucidi; Design de produção: Ugo Pericoli; Guarda-roupa: Ugo Pericoli; Maquilhagem: Gustavo Sisi; Direcção de produção: Pio Angeletti, Umberto Santoni; Assistentes de Realização: Guglielmo Ambrosi; Departamento de arte: Enrico Fiorentini; Efeitos Especiais: Aurelio Pennacchia; Companhias de produção: Incei Film, Fair Film, Sancro Film; Intérpretes: Vittorio Gassman (Bruno Cortona), Catherine Spaak (Lilly Cortona), Jean-Louis Trintignant (Roberto Mariani), Claudio Gora (Bibi), Luciana Angiolillo (mulher de Bruno), Linda Sini (Tia Lídia), Franca Polesello, Barbara Simon, Lilly Darelli, Mila Stanic, Nando Angelini (Amedeo), Edda Ferronao, Luigi Zerbinati (comendador), Bruna Simionato, etc.; Locais de rodagem: Roma, Castiglioncello, Livorno, Toscânia, Itália; Duração: 105 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais; Estreia em Portugal: 4 de Dezembro de 1964.