O MILAGRE DE MILÃO (1951)
"Miracolo a Milano" resulta de uma nova
colaboração entre de Sica e Zavattini, desta feita adaptando um romance deste
último ("Totò il buono"). Trata-se de uma curiosa variante do
neo-realismo, pois apesar de tudo se passar na mais pura e desabrigada
realidade social italiana do após guerra, o tom não é realista, mas parabólico.
Na verdade, como o próprio título indica, estamos hipoteticamente no campo do
milagre, com o aparecimento na Terra de um bebé, Totò, que é adoptado pela
velha Lolotta, quando descoberto no meio das couves da sua pequena quinta.
Tratado como um filho, Totò revela-se um ser diferente de todos os outros. Mais
tarde, por morte de Lolotta, a criança é entregue a um orfanato, donde sai adulto
(no plano imediatamente seguinte, uma excelente elipse temporal). Apesar de
viver na maior miséria, passar as maiores privações, coexistir com os maiores
dramas, nunca apaga do rosto um sorriso, nunca desespera, procura sempre
ultrapassar as dificuldades e encontrar uma solução. Não só para si, como para
todos os que o rodeiam. E quem o rodeia são pobres miseráveis, sem nada a que
se agarrarem, mas por vezes egoístas e mesquinhos. Totò a todos se mostra
prestável, a todos ajuda, a todos incute uma esperança desmedida no amanhã.
Totò gosta de viver e gosta de saber os seus semelhantes o mais felizes
possível.
Para isso transforma radicalmente o bairro da lata onde
vive, “urbaniza-o”, cria ruas e sistematiza as tarefas, dá nomes educativos às
ruas e praças, ajuda cada pessoa como pode, e certamente que o seu sorriso
permanente é uma das mais preciosas benesses. É contagiante e propaga-se pelo
bairro, desencadeando reacções em cadeia. Até ao dia em que o baldio abandonado
onde se encontra o bairro da lata se transforma numa apetecível jazida de
petróleo, que desperta a cobiça dos capitalistas habituais que aparecem em
bando, rodeados de polícias, para reivindicarem o terreno e expulsarem os miseráveis
que ali habitam. Mas aí a parábola torna-se mais contundente. A velha Lolotta,
que entretanto tinha já, literalmente, viajado para os anjinhos, regressa com
uma miraculosa pomba branca que faz realmente milagres. Nem sempre muito bem
compreendidos pelos caprichosos mendigos que solicitam os mais descabidos
prodígios. Se De Sica e Zavattini atingem com a sua crítica os poderosos que
não recuam perante nada para multiplicarem o seu lucro, não é menos verdade que
não hesitam em reprovar a falta de realismo desses pobres que gostam de
ostentação e de luxo, e cuja principal ambição parece ser tornarem-se iguais
aos capitalistas que combatem.
Impressionante é a lucidez da estrutura narrativa e o tom
de quase comédia musical que por vezes se instala no filme e nos contagia a
nós, espectadores. Esta é uma daquelas obras que procuram difundir a bondade e
a fraternidade social, e consegue-o de uma forma que diríamos ingénua e pura,
mas que atinge plenamente a ambição inicial. Sai-se do filme revigorado, tonificado
pela presença desse espantoso Francesco Golisano que interpreta a personagem de
Totò, uma daquelas figuras que nunca mais se esquecem e que os puros de
espírito não deixarão seguramente de perseguir ao longo da vida. A lição de
solidariedade, ao contrário do que possa parecer a uma primeira vista, ganha
consistência e vigor por se expressar em forma de parábola, onde o “milagre”
afinal é algo de profundamente humano e possível de alcançar: basta reunir
esforços, acreditar na razão que nos assiste e lutar por ela. Podem dizer que
não é voando sobre os céus de Milão, montado em paus de vassoura, que os
problemas sociais se resolvem, mas é seguramente com o espírito amável, mas
firme, de Totò, com a sua perseverança e alegria, com a sua generosidade aberta
ao próximo, que muitos conflitos se podem dissolver na força da comunidade.
De Sica não foge à realidade dilacerante de uma cidade
destruída pela guerra e por dificuldades económicas insustentáveis. A realidade
que “Milagre em Milão” apresenta é desesperante e é o retrato vivido por Itália
depois de terminada a onda megalómana e destrutiva do fascismo mussoliniano.
Para derrotar esse monstro que assassinou vidas e esventrou cidades temos a
inocência do olhar, a delicadeza do gesto, a ingenuidade da palavra de Totò que
parece desconhecer o mal, a ganância, a vaidade, a violência de quem a ele se
opõe. Totò vislumbra, para lá da triste e cinzenta realidade que o cerca, uma
sociedade nova, fraterna, solidária, humana nos seus melhores momentos. É
verdade que os pobres com quem Totò se cruzam são, na sua generalidade, maus,
invejosos, ignorantes, egoístas, traidores. Mas o protagonista, uma personagem
ideal, produto de um óbvio “milagre”, opõe-se a esta situação e procura
projectar um novo horizonte. Será na fraternidade, na generosidade, na
cumplicidade que se poderá construir o futuro. Eis como o “milagre” se pode
ligar a algum pensamento marxista-leninista, já que muita da base do
neo-realismo se encontra associado a uma teoria comunista da arte. Zavattini era
comunista e De Sica, embora nunca o tenha sido, ao que se sabe, terá funcionado
como “compagnon de route”.
O tom de comédia que critica habilmente usos e costumes,
que vão da avidez dos milionários ao
racismo dos pobres, da mesquinhez de Rappi, que trai companheiros por um casaco
com gola de pele e um chapéu alto (um dos brilhantes trabalhos do Paolo Stoppa,
um actor já nessa altura com uma prodigiosa carreira dispersa pelo teatro e
pelo cinema, um dos raros profissionais a integrar o elenco do filme) à inveja
de uns quantos e à ostentação de outros, esse tom de comédia é muito bem
desenvolvido por De Sica, com recurso sobretudo a uma lirismo austero e a uma
interpretação refreada e contida. Este tipo de parábola poderia desencadear uma
vaga de mau gosto insuportável, mas tanto De Sica como os seus cúmplices
conseguem o “milagre” de manter o filme num ritmo e numa toada que não só
suporta bem as peripécias narradas, como as sustenta num nível deliciosamente
bem-humorado, sem nunca perder a perspicácia crítica.
O realismo descarnado de “Ladrões de Bicicletas” cede
aqui perante o maravilhoso e o poético, conseguindo, no entanto, ambas as obras
participarem de um mesmo olhar, de uma mesma sensibilidade, de uma mesma
inocência e pureza.
O MILAGRE DE MILÃO
Título original:
Miracolo a Milano
Realização: Vittorio De Sica (Itália, 1951); Argumento: Vittorio De
Sica, Suso Cecchi D'Amico, Mario Chiari, Adolfo Franci, Cesare Zavattini,
segundo romance deste último ("Totò il buono"); Produção: Vittorio De
Sica; Música: Alessandro Cicognini; Fotografia (p/b): G.R. Aldo; Montagem:
Eraldo Da Roma; Design de produção: Guido Fiorini; Direcção artística: Guido
Fiorini; Guarda-roupa: Mario Chiari; Direcção de produção: Carmine Bologna,
Nino Misiano, Umberto Scarpelli; Assistentes de realização: Luisa Alessandri,
Umberto Scarpelli; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Bruno Brunacci;
Efeitos especiais: Enzo Barboni, Ned Mann, Václav Vích; Companhias de produção:
Ente Nazionale Industrie Cinematografiche (ENIC), Produzioni De Sica; Intérpretes: Emma Gramatica (a velha
Lolotta), Francesco Golisano (Totò), Paolo Stoppa (Rappi), Guglielmo Barnabò
(Mobbi), Brunella Bovo (Edvige), Anna Carena (Marta), Alba Arnova, Flora Cambi,
Virgilio Riento, Arturo Bragaglia, Erminio Spalla, Riccardo Bertazzolo, Checco
Rissone, Angelo Prioli, Giuseppe Berardi, Gianni Branduani, Enzo Furlai, Jerome
Johnson, Renato Navarrini, Egisto Olivieri, Luigi Ponzoni, Piero Salonne, Jubal
Schembri, Walter Scherer, Giuseppe Spalla, etc. Duração: 100 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do
Castelo Filmes; Classificação etária: M/12 anos; Estreia em Portugal: 15 de
Janeiro de 1952.
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