quarta-feira, 15 de outubro de 2014

LADRÕES DE BICICLETAS



LADRÕES DE BICICLETAS (1948)

Um conceituado crítico de cinema norte-americano, Godfrey Cheshire, considera que “Citizen Kane” (1941) e “Ladri di Biciclette” (1948) são as duas mais importantes fontes de inspiração para o cinema moderno, e duas obras que abriram o cinema a uma idade adulta. André Bazin, um dos mais importantes críticos de cinema francês, anos antes, num estudo dedicado ao filme, desenvolvia mais ou menos a mesma teoria. Na verdade, se analizarmos as listas dos 10 melhores filmes de sempre que regularmente se estabelecem, sobretudo a partir da década de 50, veremos que as conclusões se têm mantido muito semelhantes ao longo das décadas. Estes dois filmes aparecem invariavelmente entre os primeiros lugares.
“Ladrões de Bicicletas” data de 1948, dois anos depois de Vittorio De Sica ter realizado “Sciuscia” (Engraxador de Sapatos”, outro dos filmes faróis do neo-realismo, mas uns pontos a baixo da obra-prima que nos haveria de dar com “Ladri di Biciclette”. Este é o oitavo título da filmografia deste actor-realizador e testemunha bem o progressivo amadurecimento formal e a aprendizagem do doseamento dramático da sua narrativa. Que o tornam um mestre indiscutível em 1948.
A intriga central do filme é minimalista. Numa Roma saída há pouco da II Guerra Mundial, um desempregado há dois anos, arranja finalmente um emprego como colador de cartazes. O emprego municipal parece sólido, de futuro, mas impõe uma condição: o empregado tem de possuir uma bicicleta própria para deambular pela cidade, com escadote, cartazes e balde de cola. Para Antonio Ricci isso não seria problema se a sua bicicleta não estivesse no prego. Mas Maria, a esforçada e desembaraçada mulher, e o bem avontadado filho Bruno reúnem alguns haveres em casa e conseguem a quantia necessária para recuperar a bicicleta. No dia seguinte Antonio parte feliz para a sua primeira jornada de trabalho, colando nas paredes das avenidas da cidade eterna sedutores cartazes de Rita Hayworth, em “Gilda”. Num momento de descuido, porém, roubam-lhe a bicicleta e o desespero instala-se na família. Antonio corre com o filho pelas ruas e ruelas da vizinhança, à procura do ladrão. Acompanhamos a aflição e angústia que crescem, o desânimo que se avoluma, a revolta que se instala, o acto de vingança que falha, e finalmente pai e filho, de mãos dadas, continuam a caminhar pela cidade. A pé.
Numa Itália destruída pela guerra, onde a miséria e o pequeno delito crescem paredes meias, esta não é uma história invulgar. Rara, todavia, é a sensibilidade demonstrada a conduzir este enredo linear, e a fabulosa conjugação de factores que fazem da obra um filme admirável. O argumento parte de um romance de Luigi Bartolini, adaptado a cinema por uma equipa brilhante, comandada pelo grande teórico do neo-realismo Cesare Zavattini, ao lado de Suso Cecchi D'Amico, Vittorio De Sica, Oreste Biancoli, Adolfo Franci e Gerardo Guerrieri. Zavattini trabalhou com De Sica em vários outros argumentos (inclusive no já citado “Sciuscia”) e teve seguramente influência na forma como a narrativa se desenvolve de forma extremamente inteligente, sem maniqueísmos fáceis, mas reconstituído com justeza o clima humano e social daqueles tempos: entre os bairros pobres e degradados e os estádios monumentais e as escadarias imperiais, herança do fascismo mussoliniano, Antonio e Bruno não procuram apenas reaver a sua bicicleta roubada, mas vão recuperando para o espectador os fantasmas de um passado onde estão mergulhados. Todo o filme é de uma delicadeza tocante e de uma secura de processos invulgar. Não há demagogia fácil, nem slogans políticos ou sociais gritados aos sete ventos. Tudo é discretamente apontado, deixando ao espectador formar as suas considerações. A miséria existe, é visível, mas os armazéns do prego, atulhados de trouxas de roupa dizem mais do que qualquer palavra. E dizem melhor. As obras de caridade que oferecem as sopas aos pobres, fecham-nos nas igrejas, onde têm de assistir à missa para poderem aceder depois à refeição porque se espera sofregamente. As “Santonas” proliferam em terra de muita necessidade e desesperança. As filas de aflitos em busca de uma palavra de esperança, tentam decifrar os enigmas da vidente, deixando depois ficar uma nota de 50 liras, não nas mãos da santona, que as não suja de dinheiro, mas na sua colaboradora mais próxima que organiza a contabilidade da casa. Os estádios a abarrotar de entusiasmo são outro reflexo deste tempo de incerteza, bem como as camionetas carregadas de adeptos ou os comícios da desilusão.

“Ladrões de Bicicetas” é, seguramente, um dos mais perfeitos exemplos do neo-realismo, cumprindo todos os preceitos do movimento que eclodiu em Itália, ainda durante o tempo do fascismo e da guerra, para se impor definitivamente mal esta terminou. Os realizadores procuraram sair dos estúdios e ir ao encontro da realidade das ruas e dos exteriores sem maquilhagem. Procuraram temas sociais, fugindo á mentira e falsidade das comédias de “telefones brancos” e dos épicos a glorificar o mare nostrum romano e a ideia de império. Trocaram-se os actores de profissão por amadores de uma espontaneidade desarmante. A verdade é que os estúdios estavam muitos deles destruídos e a maquinaria não abundava, assim como faltava a película e a filmagem a cor se mostrava demasiado onerosa para as diminutas posses de quem queria fazer os seus filmes. Entre as condições existentes e a vontade de ultrapassar as necessidades e mostrar a realidade do país, nasceu o neo-realismo que iria ter um período de ouro durante a década de 40 e se mostraria de uma influência determinante do futuro, não só no futuro próximo do cinema italiano, em várias derivas do movimento, como internacionalmente. Seria o neo-realismo a estar na base de um outro movimento, a “nouvelle-vague” francesa, que iria surgir no final dos anos 50 e que se iria expandir em diversas formas de “cinema novo” por todo o mundo.
Há, no entanto, que não passar por cima de alguns equívocos que o movimento poderia causar. Nem por ser filmado na rua, quase sem efeitos, recorrendo a actores não profissionais, optando por temas sociais de grande actualidade, e tudo o mais que recomendava o neo-realismo, nem por tudo isso os filmes eram menos “construídos”, enquadrados, montados, até direccionados ideologicamente que qualquer outro produto cinematográfico. O simples facto de enquadrar um assunto é uma forma de manipular esse assunto. O neo-realismo não foi excepção, nem até ao momento existiu alguma forma de ultrapassar esse dado. Criar é manipular. E por vezes a manipulação que se ostenta é a mais sincera e a menos nociva, pois que a de mais fácil verificação.
De todos os modos o neo-realismo teve o condão de “limpar” o cinema de uma certa tralha fascista e de mobilizar o olhar do espectador para uma realidade diferente. Depois, a qualidade do olhar, a sensibilidade demonstrada, a emoção colocada, o rigor ou a exaltação de que cada autor deu plenas provas ao longo das suas carreiras, tudo isso iria influir na importância deste movimento. Muitos realizadores vieram para a rua filmar, com actores amadores, mas nem todos ficaram na história do cinema. Apenas os grandes motivaram esse interesse e justificaram a influência futura. Uma das razões para o sucesso internacional do neo-realismo deve-se à importância de se terem reunido num mesmo momento, em redor de uma mesma ideia, nomes como os de Zavattini, De Sica, Rossellini, Visconti, Fellini, Antonioni e alguns mais.

Voltando a “Ladrões de Bicicleta” e, como atrás já referimos, há que referir a conjugação de vários factores para tornar este título uma obra de eleição. Já salientamos a importância do argumento, da escolha dos cenários naturais, a sensibilidade e inteligência da realização, mas há ainda que referir a escolha dos actores, sem os quais o filme teria sido outro. De Sica parece que terá sido convidado para realizar a obra para o produtor David O’Selznick, imopondo estre a condição de o mesmo ser interpretado por Cary Grant. De Sica preferiu um operário de uma fábrica dos arredores de Roma, um desconhecido Lamberto Maggiorani. Presentemente o filme vive muito do rosto deste homem, bem assi como do fabulosos miúdo Enzo Staiola (Bruno Ricci), e de Lianella Carell (Maria Ricci). Em todos estes casos o acaso teve a sua importância definitiva. É a própria Lianella Carell quem conta que, sendo jornalista, foi um dia entrevistar Vittorio De Sica, na altura em que este escolhia uma popular para interpretar o papel de Maria. Quando a viu à sua frente, De Sica terá dito: “Esta é Maria”, pedindo para a jornalista realizar um teste no dia seguinte. Não sei se a entrevista se efectuou ou não, mas estava descoberta a magnífica e laboriosa mulher de Antonio Ricci, que é, em grande medida, a alma deste filme, onde as mulheres e as crianças ocupam um destacado lugar (como em quase toda a obra deste cineasta). O facto de Antonio andar a colar cartazes de “Gilda” não me parece acidental. De Sica pretendeu seguramente homenagear o cinema, homenagear a mulher (ele que sempre teve uma aureola de sedutor galanteador), ao mesmo tempo que colocava uma distância evidente entre este cinema pobre italiano e o cinema da grande indústria de Hollywood.


LADRÕES DE BICICLETAS
Título original: Ladri di Biciclette
Realização: Vittorio De Sica (Itália, 1948); Argumento: Cesare Zavattini, Suso Cecchi D'Amico, Vittorio De Sica, Oreste Biancoli, Adolfo Franci, Gerardo Guerrieri, segundo romance de Luigi Bartolini ; Produção: Giuseppe Amato, Vittorio De Sica; al Música: Alessandro Cicognini; Fotografia (p/b): Carlo Montuori; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Antonio Traverso; Direcção de produção: Nino Misiano, Umberto Scarpelli; Assistentes de realização: Luisa Alessandri, Gerardo Guerrieri, Sergio Leone; Som: Biagio Fiorelli, Bruno Brunacci; Companhias de produção: Produzioni De Sica; Intérpretes: Lamberto Maggiorani (Antonio Ricci), Enzo Staiola (Bruno Ricci), Lianella Carell (Maria Ricci), Gino Saltamerenda (Baiocco), Vittorio Antonucci (o ladrão), Giulio Chiari, Elena Altieri, Carlo Jachino, Michele Sakara, Emma Druetti, Fausto Guerzoni, Giulio Battiferri, Ida Bracci Dorati, Nando Bruno, Eolo Capritti, Memmo Carotenuto, Giovanni Corporale, Sergio Leone (estudante do seminário), Mario Meniconi, Massimo Randisi, Checco Rissone, Peppino Spadaro, Umberto Spadaro, etc. Duração: 93 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/6 anos; Estreia em Portugal: 20 de Novembro de 1950.

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