LADRÕES DE BICICLETAS (1948)
Um
conceituado crítico de cinema norte-americano, Godfrey Cheshire, considera que
“Citizen Kane” (1941) e “Ladri di Biciclette” (1948) são as duas mais
importantes fontes de inspiração para o cinema moderno, e duas obras que abriram
o cinema a uma idade adulta. André Bazin, um dos mais importantes críticos de
cinema francês, anos antes, num estudo dedicado ao filme, desenvolvia mais ou
menos a mesma teoria. Na verdade, se analizarmos as listas dos 10 melhores
filmes de sempre que regularmente se estabelecem, sobretudo a partir da década
de 50, veremos que as conclusões se têm mantido muito semelhantes ao longo das
décadas. Estes dois filmes aparecem invariavelmente entre os primeiros lugares.
“Ladrões
de Bicicletas” data de 1948, dois anos depois de Vittorio De Sica ter realizado
“Sciuscia” (Engraxador de Sapatos”, outro dos filmes faróis do neo-realismo,
mas uns pontos a baixo da obra-prima que nos haveria de dar com “Ladri di
Biciclette”. Este é o oitavo título da filmografia deste actor-realizador e
testemunha bem o progressivo amadurecimento formal e a aprendizagem do
doseamento dramático da sua narrativa. Que o tornam um mestre indiscutível em
1948.
A
intriga central do filme é minimalista. Numa Roma saída há pouco da II Guerra
Mundial, um desempregado há dois anos, arranja finalmente um emprego como
colador de cartazes. O emprego municipal parece sólido, de futuro, mas impõe
uma condição: o empregado tem de possuir uma bicicleta própria para deambular
pela cidade, com escadote, cartazes e balde de cola. Para Antonio Ricci isso
não seria problema se a sua bicicleta não estivesse no prego. Mas Maria, a
esforçada e desembaraçada mulher, e o bem avontadado filho Bruno reúnem alguns
haveres em casa e conseguem a quantia necessária para recuperar a bicicleta. No
dia seguinte Antonio parte feliz para a sua primeira jornada de trabalho,
colando nas paredes das avenidas da cidade eterna sedutores cartazes de Rita
Hayworth, em “Gilda”. Num momento de descuido, porém, roubam-lhe a bicicleta e
o desespero instala-se na família. Antonio corre com o filho pelas ruas e
ruelas da vizinhança, à procura do ladrão. Acompanhamos a aflição e angústia
que crescem, o desânimo que se avoluma, a revolta que se instala, o acto de
vingança que falha, e finalmente pai e filho, de mãos dadas, continuam a
caminhar pela cidade. A pé.
Numa
Itália destruída pela guerra, onde a miséria e o pequeno delito crescem paredes
meias, esta não é uma história invulgar. Rara, todavia, é a sensibilidade
demonstrada a conduzir este enredo linear, e a fabulosa conjugação de factores
que fazem da obra um filme admirável. O argumento parte de um romance de Luigi
Bartolini, adaptado a cinema por uma equipa brilhante, comandada pelo grande
teórico do neo-realismo Cesare Zavattini, ao lado de Suso Cecchi D'Amico,
Vittorio De Sica, Oreste Biancoli, Adolfo Franci e Gerardo Guerrieri. Zavattini
trabalhou com De Sica em vários outros argumentos (inclusive no já citado
“Sciuscia”) e teve seguramente influência na forma como a narrativa se
desenvolve de forma extremamente inteligente, sem maniqueísmos fáceis, mas
reconstituído com justeza o clima humano e social daqueles tempos: entre os
bairros pobres e degradados e os estádios monumentais e as escadarias
imperiais, herança do fascismo mussoliniano, Antonio e Bruno não procuram
apenas reaver a sua bicicleta roubada, mas vão recuperando para o espectador os
fantasmas de um passado onde estão mergulhados. Todo o filme é de uma
delicadeza tocante e de uma secura de processos invulgar. Não há demagogia
fácil, nem slogans políticos ou sociais gritados aos sete ventos. Tudo é
discretamente apontado, deixando ao espectador formar as suas considerações. A
miséria existe, é visível, mas os armazéns do prego, atulhados de trouxas de
roupa dizem mais do que qualquer palavra. E dizem melhor. As obras de caridade
que oferecem as sopas aos pobres, fecham-nos nas igrejas, onde têm de assistir
à missa para poderem aceder depois à refeição porque se espera sofregamente. As
“Santonas” proliferam em terra de muita necessidade e desesperança. As filas de
aflitos em busca de uma palavra de esperança, tentam decifrar os enigmas da
vidente, deixando depois ficar uma nota de 50 liras, não nas mãos da santona,
que as não suja de dinheiro, mas na sua colaboradora mais próxima que organiza
a contabilidade da casa. Os estádios a abarrotar de entusiasmo são outro
reflexo deste tempo de incerteza, bem como as camionetas carregadas de adeptos
ou os comícios da desilusão.
“Ladrões
de Bicicetas” é, seguramente, um dos mais perfeitos exemplos do neo-realismo,
cumprindo todos os preceitos do movimento que eclodiu em Itália, ainda durante
o tempo do fascismo e da guerra, para se impor definitivamente mal esta
terminou. Os realizadores procuraram sair dos estúdios e ir ao encontro da
realidade das ruas e dos exteriores sem maquilhagem. Procuraram temas sociais,
fugindo á mentira e falsidade das comédias de “telefones brancos” e dos épicos
a glorificar o mare nostrum romano e a ideia de império. Trocaram-se os actores
de profissão por amadores de uma espontaneidade desarmante. A verdade é que os
estúdios estavam muitos deles destruídos e a maquinaria não abundava, assim
como faltava a película e a filmagem a cor se mostrava demasiado onerosa para
as diminutas posses de quem queria fazer os seus filmes. Entre as condições
existentes e a vontade de ultrapassar as necessidades e mostrar a realidade do
país, nasceu o neo-realismo que iria ter um período de ouro durante a década de
40 e se mostraria de uma influência determinante do futuro, não só no futuro
próximo do cinema italiano, em várias derivas do movimento, como
internacionalmente. Seria o neo-realismo a estar na base de um outro movimento,
a “nouvelle-vague” francesa, que iria surgir no final dos anos 50 e que se iria
expandir em diversas formas de “cinema novo” por todo o mundo.
Há,
no entanto, que não passar por cima de alguns equívocos que o movimento poderia
causar. Nem por ser filmado na rua, quase sem efeitos, recorrendo a actores não
profissionais, optando por temas sociais de grande actualidade, e tudo o mais
que recomendava o neo-realismo, nem por tudo isso os filmes eram menos
“construídos”, enquadrados, montados, até direccionados ideologicamente que
qualquer outro produto cinematográfico. O simples facto de enquadrar um assunto
é uma forma de manipular esse assunto. O neo-realismo não foi excepção, nem até
ao momento existiu alguma forma de ultrapassar esse dado. Criar é manipular. E
por vezes a manipulação que se ostenta é a mais sincera e a menos nociva, pois
que a de mais fácil verificação.
De
todos os modos o neo-realismo teve o condão de “limpar” o cinema de uma certa
tralha fascista e de mobilizar o olhar do espectador para uma realidade
diferente. Depois, a qualidade do olhar, a sensibilidade demonstrada, a emoção
colocada, o rigor ou a exaltação de que cada autor deu plenas provas ao longo
das suas carreiras, tudo isso iria influir na importância deste movimento.
Muitos realizadores vieram para a rua filmar, com actores amadores, mas nem
todos ficaram na história do cinema. Apenas os grandes motivaram esse interesse
e justificaram a influência futura. Uma das razões para o sucesso internacional
do neo-realismo deve-se à importância de se terem reunido num mesmo momento, em
redor de uma mesma ideia, nomes como os de Zavattini, De Sica, Rossellini,
Visconti, Fellini, Antonioni e alguns mais.
Voltando
a “Ladrões de Bicicleta” e, como atrás já referimos, há que referir a
conjugação de vários factores para tornar este título uma obra de eleição. Já
salientamos a importância do argumento, da escolha dos cenários naturais, a
sensibilidade e inteligência da realização, mas há ainda que referir a escolha
dos actores, sem os quais o filme teria sido outro. De Sica parece que terá
sido convidado para realizar a obra para o produtor David O’Selznick, imopondo
estre a condição de o mesmo ser interpretado por Cary Grant. De Sica preferiu
um operário de uma fábrica dos arredores de Roma, um desconhecido Lamberto
Maggiorani. Presentemente o filme vive muito do rosto deste homem, bem assi
como do fabulosos miúdo Enzo Staiola (Bruno Ricci), e de Lianella Carell (Maria
Ricci). Em todos estes casos o acaso teve a sua importância definitiva. É a
própria Lianella Carell quem conta que, sendo jornalista, foi um dia
entrevistar Vittorio De Sica, na altura em que este escolhia uma popular para
interpretar o papel de Maria. Quando a viu à sua frente, De Sica terá dito:
“Esta é Maria”, pedindo para a jornalista realizar um teste no dia seguinte.
Não sei se a entrevista se efectuou ou não, mas estava descoberta a magnífica e
laboriosa mulher de Antonio Ricci, que é, em grande medida, a alma deste filme,
onde as mulheres e as crianças ocupam um destacado lugar (como em quase toda a
obra deste cineasta). O facto de Antonio andar a colar cartazes de “Gilda” não
me parece acidental. De Sica pretendeu seguramente homenagear o cinema,
homenagear a mulher (ele que sempre teve uma aureola de sedutor galanteador),
ao mesmo tempo que colocava uma distância evidente entre este cinema pobre
italiano e o cinema da grande indústria de Hollywood.
LADRÕES DE BICICLETAS
Título original:
Ladri di Biciclette
Realização: Vittorio De Sica (Itália, 1948); Argumento: Cesare
Zavattini, Suso Cecchi D'Amico, Vittorio De Sica, Oreste Biancoli, Adolfo
Franci, Gerardo Guerrieri, segundo romance de Luigi Bartolini ; Produção:
Giuseppe Amato, Vittorio De Sica; al Música: Alessandro Cicognini; Fotografia
(p/b): Carlo Montuori; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Antonio
Traverso; Direcção de produção: Nino Misiano, Umberto Scarpelli; Assistentes de
realização: Luisa Alessandri, Gerardo Guerrieri, Sergio Leone; Som: Biagio
Fiorelli, Bruno Brunacci; Companhias de produção: Produzioni De Sica; Intérpretes: Lamberto Maggiorani
(Antonio Ricci), Enzo Staiola (Bruno Ricci), Lianella Carell (Maria Ricci),
Gino Saltamerenda (Baiocco), Vittorio Antonucci (o ladrão), Giulio Chiari,
Elena Altieri, Carlo Jachino, Michele Sakara, Emma Druetti, Fausto Guerzoni,
Giulio Battiferri, Ida Bracci Dorati, Nando Bruno, Eolo Capritti, Memmo
Carotenuto, Giovanni Corporale, Sergio Leone (estudante do seminário), Mario
Meniconi, Massimo Randisi, Checco Rissone, Peppino Spadaro, Umberto Spadaro,
etc. Duração: 93 minutos;
Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária:
M/6 anos; Estreia em Portugal: 20 de Novembro de 1950.
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