quarta-feira, 15 de outubro de 2014

SCIUSCIÀ, ENGRAXADOR DE SAPATOS



 SCIUSCIÀ, ENGRAXADOR DE SAPATOS (1946)


“Sciuscià”, de 1946, é o primeiro grande filme realizado por Vittorio De Sica, que, dois anos depois, nos daria a sua primeira obra-prima, “Ladrões de Bicicletas”. Mas Vittorio De Sica tinha atrás de si, como actor, uma carreira já de algum conforto, tanto no teatro como no cinema. Desde muito novo que se tornara um actor carismático em comédias ligeiras, até que em 1940 inicia o seu trajecto como realizador, prolongando atrás das câmaras o mesmo tipo de filmes: “Rosas de Sangue” (1940), “Maddalena... Zero in Condotta” (1940), “Uma Rapariga às Direitas” (1941), “Un Garibaldino al Convento” (1942), ou “As Portas do Céu” (1945). Nos inícios da década de 40, encontra Cesare Zavattini, argumentista e crítico, o grande teórico do neo-realismo, e estabelece com este escritor uma colaboração que vai dar os seus frutos nos anos imediatos e se estenderia depois ao longo de toda a vida de ambos. Em 1944, “I Bambini ci Guardano” é já um reflexo desse trabalho conjunto, a que se seguem “Sciuscià” (1946), “Ladrões de Bicicletas” (1948), “O Milagre de Milão” (1951), “Humberto D” (1952) ou “Estação Terminus” (1953), para só citar os melhores exemplos desta época.
“Sciuscia” é bem um exemplo típico do que se entendeu por neo-realismo nesta primeira fase, ainda durante os anos 40. Continuando a acompanhar protagonistas muito jovens, uma tendência que já se esboçara em “I Bambini ci Guardano” e iria continuar em “Ladrões de Bicicletas”, o filme centra a sua atenção num grupo de miúdos que sobrevive nas ruas de Roma, logo depois do término da II Guerra Mundial, tendo como precário emprego ser engraxador de sapatos, sobretudo das botas dos soldados norte-americanos então instalados no país.
Roma é, portanto, o cenário, corre o ano de 1945. Giuseppe (Rinaldo Smordoni) e Pasquale (Franco Interlenghi), engraxadores de sapatos, em inglês “shoe shine”, donde a corruptela italiana de “sciuscià”, vão fazendo pela vida e economizando algumas liras para comprarem um cavalo, sonho de ambos. Claro que não é só a profissão de engraxadores que lhes permite ter esse sonho. Vão fazendo biscates, alguns mais clandestinos que outros, como a venda a uma vidente de cobertores roubados, o que os leva à prisão. Um dos traficantes adultos que está por detrás desta venda ilícita é irmão de Giuseppe. Este facto impede-os de denunciaram os comparsas, quando são apanhados, julgados e condenados a uma pena num reformatório-cadeia. Antes, porém, ainda têm tempo de comprar o cavalo que não chegam, no entanto, sequer a gozar, pois o animal fica com o tratador que o vai alugando, enquanto os miúdos se encontram atrás das grades. Separados, colocados em celas diferentes, são assim manipulados pela polícia até um deles ceder e denunciar os restantes traficantes. Sobem as acusações de traição e, de peripécia em peripécia, o drama acaba em tragédia.
Esta estrutura melodramática serve na perfeição a De Sica para oferecer uma vasta panorâmica sobre a pobreza e a ausência de valores que se expandem por uma Itália miserável que procura sobretudo sobreviver, lançando mão de expedientes vários e oferecendo as crianças como escudos frágeis para adultos sem escrúpulos. O que mais choca é a forma como a amizade cúmplice de Giuseppe e Pasquale é destruída, como a inocência da dessa juventude é adulterada, como a dedicação que existe entre ambos é torpedeada e devastada. Por detrás deste retrato, vislumbra-se a sociedade italiana saída da guerra, desde o dia-a-dia nas ruas, até à vida no interior de uma cadeia para crianças, das casas de videntes à economia paralela que se estabelece sempre em tais casos. Há um entrelaçar de acusações equivocas ou falsas e de consequências mais ou menos previsíveis que colocam o filme do lado da metáfora social e da alegoria poética que transformaram a obra num exemplo e numa referência do movimento que então começava a emergir em Itália.
Os rostos são os do povo anónimo, ainda que um ou outro desses actores, recrutados no meio da massa indiscriminada, possa ter vingado no futuro como actor profissional – é o caso de Franco Interlenghi (Pasquale), que se manteve até 2010 como intérprete de dezenas e dezenas de obras, depois da sua estreia em “Engraxador de Sapatos”. Voltaremos a vê-lo, por exemplo, em “Os Inúteis”, de Fellini, e “O General Della Rovere”, de Rosselllini.


O filme surpreendeu as plateias da época, tendo mesmo ganho um Oscar Honorário, em 1948, prémio que seria o percursor do Oscar depois instituído para “Melhor Filme em Língua não Inglesa”. Mas o sucesso em Itália começou por ser nulo. Este desejo de “descrever e denunciar a realidade social utilizando exteriores reais e actores não profissionais” (Jaques Lourcelles), obrigou o produtor Paolo W. Tamburella a vendê-lo por tuta e meia para França e para os EUA, onde o êxito seria evidente. Como acontece tantas vezes, os italianos viram-se obrigados a descobrir as qualidades da obra à posterior.
Vittorio De Sica explicou, tempos depois, a génese desta obra nas seguintes palavras: “A experiência da guerra foi determinante para todos nós. (…) Procurávamos libertarmo-nos dos nossos erros, olharmo-nos olhos nos olhos, dizer a verdade, descobrir o que eramos realmente, e procurar a salvação. Creio que “Sciuscià”, filme que nasceu desta necessidade, marcou o fim das minhas realizações comerciais”. Daí em diante De Sica encontra a sua própria voz, assumindo-se como um dos chefes de fila do neo-realismo, um movimento que andou paredes meias com o entusiasmo comunista que então imperava, mas que evidenciou uma multiplicidade de caminhos diversificados, desde o catolicismo progressista, de Fellini ou Rossellini, ao marxismo mais ortodoxo de Guiseppe De Santis ou Luciano Emmer, ou ao não muito militante de Visconti, Passando pela solidão metafisica de Antonioni, ou pela comédia de costumes de Dino Risi, Monicelli, Germi, entre muitos outros.

 

SCIUSCIÀ, ENGRAXADOR DE SAPATOS
Título original: Sciuscià
Realização: Vittorio De Sica (Itália, 1946); Argumento: Sergio Amidei, Adolfo Franci, Cesare Giulio Viola, Cesare Zavattini; Produção: Paolo William Tamburella; Música: Alessandro Cicognini; Fotografia (p/b): Anchise Brizzi; Montagem: Niccolò Lazzari; Design de produção: Ivo Battelli, Giulio Lombardozzi; Direcção de produção: Nino Ottavi; Assistentes de realização: Elmo De Sica, Argi Rovelli, Umberto Scarpelli, Armando W. Tamburella; Som: Tullo Parmegiani; Companhias de produção: Societa Cooperativa Alfa Cinematografica; Intérpretes: Franco Interlenghi (Pasquale Maggi), Rinaldo Smordoni (Giuseppe Filippucci), Annielo Mele (Raffaele), Bruno Ortenzi (Arcangeli), Emilio Cigoli (Staffera), Pacifico Astrologo, Maria Campi, Antonio Carlino, Angelo D'Amico, Francesco De Nicola, Enrico De Silva, Claudio Ermelli, Leo Garavaglia, Antonio Lo Nigro, Antonio Nicotra, Anna Pedoni, Gino Saltamerenda, Irene Smordoni, Peppino Spadaro, Mario Volpicelli, etc. Duração: 93 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/12 anos; Estreia em Portugal: 20 de Novembro de 1950.

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