“Sciuscià”, de 1946, é o primeiro grande filme realizado por Vittorio De Sica, que, dois anos depois, nos daria a sua primeira obra-prima, “Ladrões de Bicicletas”. Mas Vittorio De Sica tinha atrás de si, como actor, uma carreira já de algum conforto, tanto no teatro como no cinema. Desde muito novo que se tornara um actor carismático em comédias ligeiras, até que em 1940 inicia o seu trajecto como realizador, prolongando atrás das câmaras o mesmo tipo de filmes: “Rosas de Sangue” (1940), “Maddalena... Zero in Condotta” (1940), “Uma Rapariga às Direitas” (1941), “Un Garibaldino al Convento” (1942), ou “As Portas do Céu” (1945). Nos inícios da década de 40, encontra Cesare Zavattini, argumentista e crítico, o grande teórico do neo-realismo, e estabelece com este escritor uma colaboração que vai dar os seus frutos nos anos imediatos e se estenderia depois ao longo de toda a vida de ambos. Em 1944, “I Bambini ci Guardano” é já um reflexo desse trabalho conjunto, a que se seguem “Sciuscià” (1946), “Ladrões de Bicicletas” (1948), “O Milagre de Milão” (1951), “Humberto D” (1952) ou “Estação Terminus” (1953), para só citar os melhores exemplos desta época.
“Sciuscia” é bem um exemplo típico do que se entendeu por
neo-realismo nesta primeira fase, ainda durante os anos 40. Continuando a
acompanhar protagonistas muito jovens, uma tendência que já se esboçara em “I
Bambini ci Guardano” e iria continuar em “Ladrões de Bicicletas”, o filme
centra a sua atenção num grupo de miúdos que sobrevive nas ruas de Roma, logo
depois do término da II Guerra Mundial, tendo como precário emprego ser
engraxador de sapatos, sobretudo das botas dos soldados norte-americanos então instalados
no país.
Roma é, portanto, o cenário, corre o ano de 1945. Giuseppe
(Rinaldo Smordoni) e Pasquale (Franco Interlenghi), engraxadores de sapatos, em
inglês “shoe shine”, donde a corruptela italiana de “sciuscià”, vão fazendo
pela vida e economizando algumas liras para comprarem um cavalo, sonho de
ambos. Claro que não é só a profissão de engraxadores que lhes permite ter esse
sonho. Vão fazendo biscates, alguns mais clandestinos que outros, como a venda a
uma vidente de cobertores roubados, o que os leva à prisão. Um dos traficantes
adultos que está por detrás desta venda ilícita é irmão de Giuseppe. Este facto
impede-os de denunciaram os comparsas, quando são apanhados, julgados e
condenados a uma pena num reformatório-cadeia. Antes, porém, ainda têm tempo de
comprar o cavalo que não chegam, no entanto, sequer a gozar, pois o animal fica
com o tratador que o vai alugando, enquanto os miúdos se encontram atrás das
grades. Separados, colocados em celas diferentes, são assim manipulados pela
polícia até um deles ceder e denunciar os restantes traficantes. Sobem as acusações
de traição e, de peripécia em peripécia, o drama acaba em tragédia.
Esta estrutura melodramática serve na perfeição a De Sica
para oferecer uma vasta panorâmica sobre a pobreza e a ausência de valores que
se expandem por uma Itália miserável que procura sobretudo sobreviver, lançando
mão de expedientes vários e oferecendo as crianças como escudos frágeis para
adultos sem escrúpulos. O que mais choca é a forma como a amizade cúmplice de
Giuseppe e Pasquale é destruída, como a inocência da dessa juventude é
adulterada, como a dedicação que existe entre ambos é torpedeada e devastada.
Por detrás deste retrato, vislumbra-se a sociedade italiana saída da guerra,
desde o dia-a-dia nas ruas, até à vida no interior de uma cadeia para crianças,
das casas de videntes à economia paralela que se estabelece sempre em tais
casos. Há um entrelaçar de acusações equivocas ou falsas e de consequências
mais ou menos previsíveis que colocam o filme do lado da metáfora social e da
alegoria poética que transformaram a obra num exemplo e numa referência do
movimento que então começava a emergir em Itália.
Os rostos são os do povo anónimo, ainda que um ou outro
desses actores, recrutados no meio da massa indiscriminada, possa ter vingado
no futuro como actor profissional – é o caso de Franco Interlenghi (Pasquale),
que se manteve até 2010 como intérprete de dezenas e dezenas de obras, depois
da sua estreia em “Engraxador de Sapatos”. Voltaremos a vê-lo, por exemplo, em
“Os Inúteis”, de Fellini, e “O General Della Rovere”, de Rosselllini.
O filme surpreendeu as plateias da época, tendo mesmo ganho um Oscar Honorário, em 1948, prémio que seria o percursor do Oscar depois instituído para “Melhor Filme em Língua não Inglesa”. Mas o sucesso em Itália começou por ser nulo. Este desejo de “descrever e denunciar a realidade social utilizando exteriores reais e actores não profissionais” (Jaques Lourcelles), obrigou o produtor Paolo W. Tamburella a vendê-lo por tuta e meia para França e para os EUA, onde o êxito seria evidente. Como acontece tantas vezes, os italianos viram-se obrigados a descobrir as qualidades da obra à posterior.
Vittorio De Sica explicou, tempos depois, a génese desta
obra nas seguintes palavras: “A experiência da guerra foi determinante para
todos nós. (…) Procurávamos libertarmo-nos dos nossos erros, olharmo-nos olhos
nos olhos, dizer a verdade, descobrir o que eramos realmente, e procurar a
salvação. Creio que “Sciuscià”, filme que nasceu desta necessidade, marcou o
fim das minhas realizações comerciais”. Daí em diante De Sica encontra a sua
própria voz, assumindo-se como um dos chefes de fila do neo-realismo, um
movimento que andou paredes meias com o entusiasmo comunista que então
imperava, mas que evidenciou uma multiplicidade de caminhos diversificados,
desde o catolicismo progressista, de Fellini ou Rossellini, ao marxismo mais
ortodoxo de Guiseppe De Santis ou Luciano Emmer, ou ao não muito militante de
Visconti, Passando pela solidão metafisica de Antonioni, ou pela comédia de
costumes de Dino Risi, Monicelli, Germi, entre muitos outros.
SCIUSCIÀ,
ENGRAXADOR DE SAPATOS
Título original:
Sciuscià
Realização: Vittorio De Sica (Itália, 1946); Argumento: Sergio
Amidei, Adolfo Franci, Cesare Giulio Viola, Cesare Zavattini; Produção: Paolo
William Tamburella; Música: Alessandro Cicognini; Fotografia (p/b): Anchise
Brizzi; Montagem: Niccolò Lazzari; Design de produção: Ivo Battelli, Giulio
Lombardozzi; Direcção de produção: Nino Ottavi; Assistentes de realização: Elmo
De Sica, Argi Rovelli, Umberto Scarpelli, Armando W. Tamburella; Som: Tullo
Parmegiani; Companhias de produção: Societa Cooperativa Alfa Cinematografica; Intérpretes: Franco Interlenghi
(Pasquale Maggi), Rinaldo Smordoni (Giuseppe Filippucci), Annielo Mele
(Raffaele), Bruno Ortenzi (Arcangeli), Emilio Cigoli (Staffera), Pacifico
Astrologo, Maria Campi, Antonio Carlino, Angelo D'Amico, Francesco De Nicola,
Enrico De Silva, Claudio Ermelli, Leo Garavaglia, Antonio Lo Nigro, Antonio
Nicotra, Anna Pedoni, Gino Saltamerenda, Irene Smordoni, Peppino Spadaro, Mario
Volpicelli, etc. Duração: 93
minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação
etária: M/12 anos; Estreia em Portugal: 20 de Novembro de 1950.
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