quarta-feira, 15 de outubro de 2014

ONTEM, HOJE E AMANHÃ




 ONTEM, HOJE E AMANHÃ (1964)

Durante os anos 60, intensificou-se a prática de produzir filmes em episódios. Sobretudo na Europa, nomeadamente em França e Itália. Depois a prática difundiu-se para outras latitudes. Nessa década, sobretudo no campo da comédia, surgiram muitas obras compostas por vários sketches, histórias independentes umas das outras, muitas vezes permitindo reunir diversos cineastas (o caso de “Rogopag”, por exemplo), outras vezes jogando com a multiplicação de personagens criadas pelos mesmos actores. Caso deste “Ontem, Hoje, Amanhã”, uma realização de Vittorio De Sica que, com base no trabalho de Sophia Loren e Marcello Mastroianni, agrupa três pequenas histórias onde os dois excelentes actores vivem apontamentos passados respectivamente em Nápoles, Milão e Roma, com resultados desiguais é certo, mas todos eles com alguma graça, um vislumbre de crítica social, e um esboço de quadro humano de uma época que se afastava já da Itália miserável e destruída do pós-guerra. Na verdade, a península transalpina, bem como quase toda a Europa Ocidental, vivia sob o que se chamaria então o “milagre económico”, por impulso do plano Marshall.
Todos os episódios de “Ontem, Hoje, Amanhã” partem de histórias com assinaturas prestigiadas. “Adelina”, o primeiro, que julgamos o mais interessante, melhor desenvolvido e onde os dois actores se afirmam plenamente, baseia-se numa ideia do dramaturgo Eduardo De Filippo, com adaptação de Isabella Quarantotti; o segundo, “Anna”, tem na base uma novela de Alberto Moravia, "Troppo Ricca", que foi desenvolvida para cinema pelo próprio, com colaboração de Cesare Zavattini, Bella Billa e Lorenza Zanuso; finalmente, o terceiro, ficou a cargo de Cesare Zavattini. São três “anedotas” do quotidiano em três ambientes sociais diversos que se caracterizam um pouco em função do seu enquadramento geográfico.
“Adelina” é tipicamente napolitano, popular, exuberante, excessivo. Adelina é uma vendedora de tabaco clandestino, “cigarros americanos, ingleses e suíços”, apregoa ela, e é multada por essa actividade. Como não paga a multa, nem tem móveis para serem arrestados, vê-se na contingência de ser presa, mas, como está grávida, não é levada pelos polícias que são obrigados por lei a esperar até seis meses depois do parto. O que leva Adelina a engravidar sucessivamente, perante a cumplicidade do bairro onde vive, com marido e uma ninhada de filhos que não pára de se reproduzir. O episódio prolonga um pouco o tom parabólico de “Milagre em Milão”, com a boa vontade e colaboração de todos para resolverem o problema desta poedeira inesgotável, que todavia consegue exaurir o marido. A composição das figuras é muito boa, Sophia Loren e Marcello Mastroianni estão como peixe na água, no seu elemento.
Na segunda história, com a industriosa cidade de Milão por cenário, Anna, mulher de um industrial milionário, aborrece-se de morte com belos vestidos, carros de luxo, e amantes que vai recrutando sucessivamente para matar o tédio. Marcello Mastroianni é apenas mais um, um intelectual com problemas de consciência. Dir-se-ia que Vittorio De Sica invade os terrenos de Michelangelo Antonioni e que Sophia Loren faz-se passar por Monica Vitti, com a sua solidão desesperada na paisagem industrial milanesa.
Finalmente, o terceiro sketch, “Mara”, tem por paisagem de fundo uma praça romana, e como protagonista uma desenvolta prostituta que recebe os clientes de luxo no seu apartamento nas águas furtadas de um edifício, paredes meias com um outro habitado por um casal de velhotes que têm consigo um neto seminarista que se deixa deslumbrar pelas curvas (e as rectas) da sedutora Mara, uma Sophia Loren imparável nos seus strip-teases.
São, como já se disse, apenas “anedotas” divertidas, polvilhadas por uma terna crítica de maus (e bons) costumes, onde se nota o dedo do realizador, através de alguns dos temas que são constantes na sua filmografia (a mulher, a sensualidade, a pureza das crianças, os ambientes populares, uma crítica não muito feroz ao poder do capital e à hipocrisia dominante, um elenco e uma equipa técnica perseverantes, etc.).
Deve acrescentar-se ainda que esta produção de Carlo Ponti tem uma envolvência musical muito interessante, da autoria de Armando Travajoli, o compositor habitual das obras de De Sica, e que apresenta uma excelente fotografia, a cores, de um mestre, Giuseppe Rotunno.
Mas, apesar de tudo o que se possa dizer em favor desta comédia italiana, há que ficar surpreendido com o Oscar que ganhou em 1965, na categoria de Melhor Filme em Língua não Inglesa. Entretanto, nos Globos de Ouro de 1964, recebeu o Prémio Samuel Goldwyn. Mas não foram estes os únicos grandes prémios que arrecadou. Nos BAFTAs ingleses, Marcello Mastroianni foi considerado o melhor actor, e, em Itália, coube-lhe o David di Donatello para Melhor Filme do Ano. Julgamos tudo isto algo excessivo para uma obra interessante, mas definitivamente menor no conjunto da filmografia de Vittorio De Sica.  

ONTEM, HOJE E AMANHÃ
Título original: Ieri, Oggi, Domani
Realização: Vittorio De Sica (Itália, França, 1964); Argumento: Isabella Quarantotti , Eduardo De Filippo, segundo história deste  ("Adelina") , Cesare Zavattini, Bella Billa, Lorenza Zanuso, Alberto Moravia, segundo história deste ("Anna", da novela "Troppo Ricca"), Cesare Zavattini ("Mara") ; Produção: Carlo Ponti; Música: Armando Trovajoli; Fotografia (cor): Giuseppe Rotunno; Montagem: Adriana Novelli; Design de produção: Ezio Frigerio; Gurada-roupa: Piero Tosi; Direcção de produção: Mario Abussi, Antonio Altoviti, Mario Di Biase; Assistaentes de realização: Luisa Alessandri, Nino Segurini; departamento de arte: Andrea Crisanti; Som: Ennio Sensi; Companhias de produção: Compagnia Cinematografica Champion, Les Films Concordia; Intérpretes: Sophia Loren (Adelina Sbaratti / Anna Molteni / Mara), Marcello Mastroianni (Carmine Sbaratti / Renzo / Augusto Rusconi), Aldo Giuffrè (Pasquale Nardella ("Adelina"), Agostino Salvietti - Dr. Verace ("Adelina"), Lino Mattera - Amedeo Scapece ("Adelina"), Tecla Scarano - Verace's sister ("Adelina"), Silvia Monelli - Elivira Nardella ("Adelina"), Carlo Croccolo - Auctioneer ("Adelina"), Pasquale Cennamo - Chief Police ("Adelina"), Tonino Cianci - ("Adelina"), Armando Trovajoli - Giorgio Ferrario ("Anna"), Tina Pica - Grandmother Ferrario ("Mara”), Gianni Ridolfi - Umberto ("Mara"), Gennaro Di Gregorio - Grandfather ("Mara"), etc. Duração: 118 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M12 anos.

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