quarta-feira, 15 de outubro de 2014

AS DUAS MULHERES

 
 
DUAS MULHERES (1960)
 
 
Rodado em 1951, “Umberto D.” terá sido o último filme neo-realista da dupla De Sica-Zavattini, se optarmos pela designação mais restritiva do conceito neo-realista. Depois, ambos aparecem ainda nas obras posteriores do mesmo cineasta, em “Stazione Termini” (Estação Terminus, 1953), já com vedetas internacionais, como Jennifer Jones ou Montgmery Clift, em “L’Oro di Napoli (O Ouro de Nápoles, 1954), onde cintilam já as vedetas italianas da altura, algumas reveladas durante os anos 40, como Sophia Loren, Silvana Mangano, o próprio Vittorio De Sica, ou em “Il Tetto” (O Tecto, 1956), apesar de tudo o mais de acordo com o receituário neo-realista. Segue-se um período de cinco anos em que De Sica permanece inactivo como realizador, para reaparecer em 1961, com a adaptação de um romance de Alberto Moravia, “La Ciociara” (Duas Mulheres), de novo com a colaboração de Zavattini. Conta-se que a Paramount, depois do sucesso internacional que foi o encontro de Anthony Quinn e Anna Magnani em "Wild as the Wind”, (Selvagem é o Vento), assinado por George Cukor, pretendia recuperar a mesma equipa para “La Ciociara”, juntando-lhe Sophia Loren no papel da filha. Parece que Anna Magnani teve o bom senso de não aceitar ser a mãe de Sophia Loren, em função de idades e alturas, e o projecto ter-se-á malogrado. Acabaria por ir parar às mãos de Vittorio De Sica, que convidou para protagonista a sua actriz fetiche, Sophia Loren, aqui ao lado de um jovem e prometedor Jean-Paul Belmondo.
Corre o ano de 1943 e Roma é bombardeada pelos aliados. Cesira (Sophia Loren), viúva, tem uma filha adolescente, Rosetta (Eleanor Brown). Dona de uma pequena mercearia, resolve deixar a capital e refugiar-se com a filha na província, procurando desviar-se do perigo que a grande cidade representa. Vão para uma região, La Ciociara, junto às montanhas de Agro Pontino, no norte de Roma. Mas a guerra está um pouco por todo o lado, há alemães e norte-americanos a patrulharem as estradas, há raids aéreos, e há uma população que procura habituar-se a viver no medo. Há quem não se preocupe em saber quem ganha a guerra, se alemães ou norte-americanos, o que querem é paz e trabalho. Outros, como Michele (Jean-Paul Belmondo), um jovem estudante com ideias que se percebem comunistas, não se resigna com estes discursos, mas é levado um dia pelos nazis que o não voltam a trazer com vida, para desespero de Cesira e Rosetta, que entretanto se apaixonara pelo inquieto jovem intelectual. Quando descobrem que a vida na sua velha aldeia natal é tão perigosa como em Roma, mãe e filha resolvem regressar à capital, mas pelo caminho são violadas, no interior de uma igreja, por um grupo de soldados aliados marroquinos, que integram a força francesa. O desespero apossa-se de mãe e filha que são deixadas perdidas na sua dor, abraçadas uma à outra, num longo travelling que recua e as deixa enquadradas numa janela, num tempo, num espaço, numa terra de ninguém.
 
 
Como já se disse anteriormente, De Sica abandonara os princípios do neo-realismo, aceitara trabalhar com actores que eram vedetas internacionais, em produções de grandes orçamentos, adaptava romances de escritores célebres (neste caso Alberto Moravia), mas mantinha algumas das ideias básicas: a história decorre durante a II Guerra Mundial, em Itália, o recurso a actores não profissionais é visível em papéis secundários, é ainda a vida do povo que está no centro da atenção do cineasta e do seu argumentista preferido, Cesare Zavattini.
Mas existem ainda outras diferenças que vale a pena sublinhar. Numa terra arrasada pela guerra e pela herança do fascismo mussoliniano, não há personagens puros e impuros, não há bons e maus, há personagens que tentam ajeitar-se o melhor que podem aos tempos conturbados e fazer pela vida. Os nazis claro que são os nazis de sempre, mas as forças aliadas não são os anjos enviados pelo Senhor para salvação dos povos. São homens pecaminosos, com virtudes e defeitos, generosidade e vícios, que um tempo de excepção permite ou incita mesmo à revelação. A guerra nada traz de positivo.
As tropas aliadas que vêm “libertar” Itália cumprem uma tarefa. Numa das sequências do filme, um soldado norte-americano afirma que há muita coisa boa em Itália, e Michele pergunta-lhe: “Conhece a Itália?”, ao que o soldado responde: “Sim, conhecemos Leonardo da Vinci, Michelangelo”. Michele termina a conversa com um conclusivo: “Esses estão mortos”, dando a entender que os soldados pouco sabem dos vivos, daqueles que vão sobrevivendo na dor ou morrendo no desespero.
 
 
A História relembra que o corpo expedicionário francês, que era comandado pelo general Alphonse Juin, constituído essencialmente por soldados marroquinos, argelinos, tunisinos e senegaleses das colónias francesas foi acusado de milhares de crimes de guerra, na região de La Ciociara e em redor do Monte Cassino. Violações contam-se às centenas ou aos milhares (calculam-se entre 700 e 2000), bem como o assassinato sumário de quem procurava ajudar (mais de 800 mortos). Estas acções ficaram conhecidas em Itália por “marocchinate” (marroquinadas, se traduzido à letra) e foram a base do romance de Moravia e do filme de De Sica.
Sophia Loren, com este seu trabalho, acabaria por ganhar o Oscar para Melhor Actriz do Ano, uma proeza que até aí nenhuma actriz de língua não inglesa conseguira alcançar. Meses antes, triunfara igualmente no Festival de Cannes. Fora a Melhor Actriz italiana do ano no cinema, arrecadando o David di Donatello, e, em Inglaterra, conquistou o BAFTA igualmente para Melhor Actriz. Estes foram quatro dos 22 prémios que a actriz conseguiria com este seu trabalho, realmente impressionante. O filme ganharia o Globo de Ouro para Melhor Filme em língua não inglesa.
De Sica manter-se-ia igual a si próprio quanto a preocupações e temas obsessivos: a criança, a mulher, a miséria física e moral de uma sociedade traumatizada pela guerra, a prepotência da força perante os indefesos e os humildes. Dá igualmente mostras de grande sensibilidade a abordar temas difíceis (a sequência da violação consegue conciliar o pudor e a violência) e continua um homem de poderoso sentido visual e simbólico. Esta produção de Carlo Ponti merece ser ainda referida pela excelente fotografia a preto e branco de Gábor Pogány, pela magnífica partitura musical de Armando Trovajoli, pela eficaz montagem de Adriana Novelli.
Curiosidade final: em 1988, “La Ciociara” voltaria a ser adaptado, desta feita para televisão, por Diana Gould, Lidia Ravera, Bernardino Zapponi e Dino Risi, que realizou, sendo a interpretação assegurada novamente por Sophia Loren, na protagonista, desta feita ao lado de Robert Loggia, Leonardo Ferrantini, Dario Ghirardi e Sydney Penny (Rosetta). 

DUAS MULHERES (1960)
Título original: La Ciociara
Realização: Vittorio De Sica (Itália, França, 1960); Argumento: Cesare Zavattini, Vittorio De Sica, segundo romance de Alberto Moravia; Produção: Carlo Ponti; Música: Armando Trovajoli; Fotografia (p/b): Gábor Pogány; Montagem: Adriana Novelli; Design de produção: Gastone Medin; Decoração: Elio Costanzi; Guarda-roupa: Elio Costanzi; Maquilhagem: Maria Angelini, Giuseppe Annunziata; Direcção de produção: Mario Bianchi, Lucio Bompani, Gianni Cecchin, Jone Tuzi; Assistentes de realização: Luisa Alessandri, Giovanni Fago, Checco Rissone; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Philippe Arthuys, Giovanni Rossi; Efeitos especiais: Serse Urbisaglia; Efeitos visuais: Joseph Nathanson; Companhias de produção: Compagnia Cinematografica Champion, Cocinor, Les Films Marceau, Société Générale de Cinématographie; Intérpretes: Sophia Loren (Cesira), Jean-Paul Belmondo (Michele Di Libero), Eleonora Brown (Rosetta), Carlo Ninchi (Filippo, o pai de Michele), Andrea Checchi (um fascista), Pupella Maggio (uma camponesa), Emma Baron (Maria), Bruna Cealti, Antonella Della Porta, Mario Frera, Franco Balducci, Luciana Cortellesi, Curt Lowens, Tony Calio, Remo Galavotti, Elsa Mancini, Giuseppina Ruggeri, Luciano Pigozzi, Luigi Terribile, Antonio Gastaldi, Carolina Carbonaro, Raf Vallone (Giovanni), Ettore Mattia, Vincenzo Musolino, Renato Salvatori (Florindo, camionista), etc. Duração: 100 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Creative Films.

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