A
ULTRAPASSAGEM (1962)
“Il
Sorpasso” é definitivamente uma das obras-primas da cinematografia italiana e
um dos grandes filmes de Dino Risi, que consegue com esta comédia atingir um
nível de qualidade estética e de significado temático mais do que evidentes.
Transformou-se num filme de culto. De resto, define plenamente um estilo e um
pensamento que têm a ver unicamente com um “autor”. Há vários temas que começam
a impor-se como constantes na obra deste cineasta: a viagem como iniciação, a
estrada como cenário, o carro, forma de promoção social, mas também local
privilegiado de confissões, o aldrabão fala-barato em oposição ao idealista
tímido, a dispersão de personagens populares (o mesmo actor em diversos
registos, ou diversos actores compondo uma galeria de tipos, que podem
coexistir ou não na mesma obra), a crítica contundente à Itália do pós-guerra,
aquela que ficou conhecida como a do “milagre económico”, a que deserdou a
esquerda da utopia, a que reabilitou a direita vencida na guerra, promovida
pela reconstrução (por isso aparecem tantos construtores civis nos seus filmes,
quase invariavelmente na qualidade de traficantes de influências e corruptos
profissionais). Sobretudo começa a impor-se um olhar descomprometido para com a
realidade social italiana (mas não só), onde não se salva quase ninguém, onde
apenas se olham com alguma simpatia pequenos meliantes. Mas, curiosamente, há
uma enorme compreensão humana para também quase toda a gente. Dino Risi
critica, por vezes com violência, mas nunca propõe a “pena capital” (óbvia
forma metafórica de me referir a um humanismo latente no olhar do cineasta e às
magníficas composições dos seus actores de eleição, que, por serem tão
magníficos, nunca deixam de inspirar alguma simpatia, mesmo quando procedem das
formas mais vis). Dino Risi critica pelo riso a “humana condição”, sem grandes
esperanças de transformações, mas com a serena tranquilidade de quem sabe que,
apesar de tudo continuar a ser como é, vale a pena intervir pela arte, pela
crítica, pelo desenho da crise.
Com
argumento de Ettore Scola, Ruggero Maccari e Dino Risi, este é um filme
lendário, rodado em 1962, que funciona admiravelmente como panorâmica de
observação mordaz e crítica da sociedade italiana destes anos de retoma
económica, de despreocupada e súbita prosperidade que, vinda depois da privação
da guerra, cria igualmente uma atmosfera de leviandade e arrivismo
desnorteados. As privações provocadas pelo fascismo e pela ocupação alemã, as
lutas da Resistência, a vitória dos Aliados e a paz trouxeram consigo um
conjunto de esperanças e de utopias que cedo cederam perante os comportamentos
do dia-a-dia, quer da direita mais reaccionária, que se “moderniza” e se
refunda, quer da esquerda mais extrema, que se emburguesa ou se radicaliza, em ambos
os casos perdendo e pé e isolando-se da realidade. O que fica deste contexto é
uma sociedade sem valores, materialista, consumista, pensando apenas na
promoção social, no lucro a todo o preço, no desenrascanço. O automóvel é,
nesta situação, um elemento essencial que funciona como símbolo. Uma novidade,
como símbolo de uma democratização generalizada. Um símbolo de status. É Dino
Risi quem o afirma: “A Itália da guerra é a terra da bicicleta ou dos que andam
a pé, depois veio a “motorina” (motorizada, a Lambreta) e por fim “la
macchina”, o fabuloso automóvel.”
O
filme passa-se no feriado de 15 de Agosto, em Roma. O “ferragosto”, assim se
denomina o dia, comemora a assunção da Virgem Maria. A capital fica deserta,
não há vivalma, nas ruas quase não circulam viaturas, todas as lojas fecham.
Mas Bruno Cortona (Vittorio Gassman) é uma excepção e circula no seu Lancia
Aurelia B24 Sport, pelas ruas de Roma, com a celeridade de uma piloto de
Fórmula 1. Como veremos ao longo do filme, não tem nada que fazer, mas o que
não tem a fazer faz depressa. Anda sempre em busca de alguma coisa. Nesta
altura, procura um telefone, pára na berma da estrada para beber, olha para uma
janela de um andar defronte e descobre um jovem estudante de direito, a quem
pede para ligar para o número tal e perguntar por Marcela, informando-a que
está atrasado, mas vai chegar. Outra constante na sua vida: estar atrasado para
chegar não se sabe onde, mas anunciar que vai chegar. Roberto Mariani
(Jean-Louis Trintignant), que prepara exames para Setembro, e não vê senão
livros de estudo, e a ausência de uma bela vizinha, sem saber no que se mete,
convida Bruno a subir. É muito mais simples ser ele mesmo a telefonar. Nada a
fazer. Bruno assenhoreia-se da situação, toma conta de Roberto, que, meio
adormecido numa onda de um transbordante vitalismo, acaba por embarcar numa
extenuante viagem pelas estradas da Itália, abrindo deste modo o filme a uma
“road movie”, que iria inclusive influenciar directamente (e confessadamente) o
“Easy Rider”, de Denis Hopper e Peter Fonda…
Já
agora, para se perceber as características da personagem, um pequeno
apontamento. Bruno telefona a Marcela, que não atende. Bruno protesta: “Que vão
para o inferno! Idiotas! Combinámos encontrarmo-nos às 11 horas, é meio-dia e
já não estão!”
Que
Roberto é “o aluno”, ficamos a saber desde logo, na sua apresentação. Mas não
sabíamos ainda que o iniciador é Bruno, que o levará pelos perigosos caminhos
do viver perigosamente, de uma forma sedutora, é óbvio, mas fundamentalmente
arriscada, pondo em risco a sua própria vida, mas também a dos outros, de uma
maneira egoísta, irresponsável, absurda. No início dos anos 60, nas estradas
italianas, conduz a 120, ultrapassa sem qualquer precaução, agride verbalmente
os outros automobilistas, brinca com peões, motoristas e ciclistas, instala-se
um pouco por todo lado como se a casa fosse sua (inclusive na casa da sua
ex-mulher que tem para com ele uma atitude muito semelhante à que os
espectadores lhe dedicam: alguma simpatia, alguma compreensão para o miúdo que
não cresceu, e que se mantém mimado vida fora, até uma altura em que a idade
não perdoa já). O carro é aqui o elemento de referência, tem colado no painel
de comandos um retrato de Brigite Bardot, o “sex simbol” europeu destes tempos,
com uma bela inscrição de um moralismo machista: “Sê prudente, que te espero em
casa!” Quando ultrapassa um ciclista, Bruno grita-lhe: “Compra uma Vespa!”,
para logo a seguir completar o raciocínio: “O ciclismo não me interessa, é a
antiestético, engrossa as coxas. Prefiro bilhar ou cavalos…”
As
“boutades” de Bruno não têm fim. Passam por três padres alemães, a contas com
um furo num dos pneus do automóvel. A uma pergunta de Bruno, um dos jovens
sacerdotes responde em latim, Bruno não percebe, Roberto traduz: “Eles
perguntam se temos um macaco.” “E como se diz que não temos?”, pergunta Bruno.
Roberto responde: “Num habemus...” Bruno vira-se para os alemães e, no seu
melhor latinório, faz-se compreender: “Num habemus macaco, ciao!”, e parte a
toda a velocidade.
Quando
surge a canção de Domenico Modugno, Bruno refere-se a um filme de Antonioni (O
Eclipse), dizendo que esta música tem “aquela coisa, a solidão, a
incomunicabilidade, e aquela outra coisa que está na moda, a alienação, como
nos filmes de Antonioni.” Pergunta a Roberto se viu “O Eclipse”? Antes que
Roberto diga o que quer que seja, Bruno opina, decisivo: “Eu dormi o tempo
todo, foi uma bela soneca. Muito bom realizador, esse Antonioni!” (recorde-se
que Dino Risi e Antonioni se estrearam em “Páginas da Vida”, de Zavattini).
Enquanto
o carro vai circulando pelas estradas de Itália, a banda sonora vai registando
alguns dos “hits” desses anos, mostrando também neste registo sonoro a
descontracção e ligeireza da sociedade italiana. Encontramos canções e vozes
que marcaram um período, o que também é uma das características do cinema de
Risi. “Quando, Quando, Quando”, de Tony Renis e Alberto Testa, na voz de Emílio
Pericoli, “St. Tropez Twist”, de Cenci-Faiella, “Per un attimo”, de Luigi
Naddeo, “Don’t Play that Song” (You Lied), de Ahmet M. Etergun e Betty Nelson, as
três cantadas por Peppino di Capri, “Giani”, de Tassone–Cássia, na voz de
Miranda Martino, “Vecchio Frak”, de e na voz de Domenico Modugno, ou “Pinne
Fucili Occhiali”, de Rossi-Vianello, na
interpretação de Vianello. Mas é, sobretudo, “Guarda come Dondolo”, igualmente
de Rossi-Vianello, na voz de Edoardo Vianello, que dá o tom ao filme e o faz
recordar musicalmente.
Esta
viagem por Itália vai sendo pontuada por paragens que nos permitem conhecer melhor
os protagonistas que se servem quase sempre da viagem no carro para estreitar
relações e melhor se conhecerem um ao outro. Mas é quando param em casa da
ex-mulher que se percebe algum do passado e muitas das frustrações e fracassos
de Bruno, e é nessa altura igualmente que se descobre a filha de Bruno, e as
relações entre os pais e ela, a sua atracção por um comendador bem servido de
liras e de idade; é quando Roberto redescobre a casa dos tios, onde passou
grande parte da sua meninice, que se compreende a sua timidez, a ignorância da
vida, os pequenos traumas da sua adolescência. É, no restaurante, onde dá de
caras com o patrão que o contratou e que o descobre na boa vida em vez de estar
a trabalhar, que vem ao de cima o outro lado da personalidade de Bruno, a sua
cobardia, o fala-barato, o desenrascanço. Que todavia não se detém perante nada
e parte para a pista de dança com a mulher do patrão, a quem seduz (e por quem
é descaradamente seduzido).
Curiosidades
sobre a realização desta obra: Alberto Sordi foi o primeiro actor pensado para
o principal papel, mas como estava contratado em exclusivo pelo produtor Dino
De Laurentiis, Dino Risi teve de optar por Gassman. Com Alberto Sordi,
certamente que a densidade do personagem seria diferente. Diferente também
poderia ter sido o final da obra, com Roberto a matar Bruno (o que parece
chegou a estar na ideia de Risi), mas este final não foi sequer rodado por
razões de orçamento.
Este
é um filme que denuncia um quase completo pessimismo do cineasta para com a
humanidade, por igual. Não há personagens positivas (felizmente Dino Risi não
seguia a filosofia do realismo soviético!), há apenas subtis gradações que vão
da mediocridade de uma existência cinzenta até à hipocrisia mais brutal de
exploradores sem escrúpulos, passando pela vitalismo patético de quem foi
apanhado numa engrenagem suicida (ou assassina) e não consegue sequer tempo
para parar e pensar. Nesta sociedade onde o que conta é “ultrapassar” e passar
à frente, as consequências acabam por ser sempre trágicas.
A ULTRAPASSAGEM
Título original: Il Sorpasso ou
The Easy Life
Realização: Dino Risi
(Itália, 1962); Argumento: Dino Risi, Ettore Scola, Ruggero Maccari, Ettore
Scola, Ruggero Maccari; Produção: Mario Cecchi Gori; Música: Riz Ortolani;
Fotografia (p/b): Alfio Contini; Montagem: Maurizio Lucidi; Design de produção:
Ugo Pericoli; Guarda-roupa: Ugo Pericoli; Maquilhagem: Gustavo Sisi; Direcção
de produção: Pio Angeletti, Umberto Santoni; Assistentes de Realização:
Guglielmo Ambrosi; Departamento de arte: Enrico Fiorentini; Efeitos Especiais:
Aurelio Pennacchia; Companhias de produção: Incei Film, Fair Film, Sancro Film;
Intérpretes: Vittorio Gassman (Bruno Cortona), Catherine Spaak (Lilly
Cortona), Jean-Louis Trintignant (Roberto Mariani), Claudio Gora (Bibi),
Luciana Angiolillo (mulher de Bruno), Linda Sini (Tia Lídia), Franca Polesello,
Barbara Simon, Lilly Darelli, Mila Stanic, Nando Angelini (Amedeo), Edda
Ferronao, Luigi Zerbinati (comendador), Bruna Simionato, etc.; Locais de
rodagem: Roma, Castiglioncello, Livorno, Toscânia, Itália; Duração: 105
minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD):
Lusomundo Audiovisuais; Estreia em Portugal: 4 de Dezembro de 1964.
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