sábado, 28 de fevereiro de 2015

UMA VIDA DIFÍCIL



UMA VIDA DIFÍCIL (1961)


Há filmes que marcam a nossa vida bem para lá do seu significado cinematográfico. “Uma Vida Difícil”, estreado em Portugal no início da década de 60, na sala do cinema Império, é um desses casos. Estávamos num período difícil da ditadura salazarista no nosso país. Na noite da estreia, uma ruidosa salva de palmas acompanhou uma das cenas capitais da nova comédia de Dino Risi. Depois de hora e meia de enxovalho, Silvio Magnozzi (Alberto Sordi), o jornalista protagonista deste filme, abre caminho entre os convidados de uma festa de Vips romanos, dirige-se a um sobranceiro e arrogante gestor de negócios obscuros, daqueles em que a Itália foi pródiga nos conturbados tempos do pós-guerra, e, com uma chapada bem aplicada, enfia o figurão nas águas da piscina. Ouvia-se então uma estrondosa salva de palmas por parte de centenas de frustrados espectadores portugueses que, há muitos anos, esperavam por fazer o mesmo, sem o poderem sequer pensar alto. Nas “matinées” e “soirées” seguintes, diz quem viu, o fenómeno repetiu-se. “Una Vita Difficile” ficava a figurar assim nos anais da história de resistência política de Portugal. Aquela bofetada que Alberto Sordi lançava na cara de um burgesso “comendador” era a bofetada de um Portugal inteiro na face de uma ditadura odiada. Um filme era assim mais do que um filme. Mas era-o porque este filme se assumia, antes de ser uma provocação social, como uma excelente obra cinematográfica, uma obra de arte que permaneceria na memória e no coração de muitos.
Creio que, definitivamente, esta é a primeira obra-prima de Dino Risi (a que se iriam juntar “A Ultrapassagem” e “Perfume de Mulher”). O filme é um documento magnífico da história da Itália, entre os dias que antecedem o fim da II Guerra Mundial e o início da década de 60, entre um período de muito sofrimento e muita esperança numa profunda transformação na sociedade italiana e uma época de total desilusão para os utópicos e de muita frieza e calculismo para os homens de negócios que viram na indecisão dos tempos o convite a especulações de lucro imediato. Enquanto alguns dos que haviam lutado anteriormente contra o fascismo se “moldavam” às tendências dominantes, enquanto outros mudavam de casaca e se afeiçoavam a novos “ideais”, muitos continuavam a recusar dobrar-se ao que pareciam ser as forças do destino, e continuavam teimosamente a lutar por utopias sociais. O jornalista Silvio Magnozzi, que integrara a resistência no combate ao fascismo mussoliniano, que fora feito prisioneiro, que escrevera panfletos e ajudara em acções guerrilheiras, terminada a guerra manteve-se sob a mesma bandeira. Continuou a lutar com a sua máquina de escrever, nas redacções de jornais, mas também com a sua voz em reuniões nos cafés e em manifestações políticas partidárias.


Cercado pela subserviência galopante, vendo os amigos e os antigos camaradas a cederem lentamente aos caprichos de uma sociedade cada vez mais individualista e egoísta, onde o lucro fácil se transforma na única meta a atingir, Magnozzi sofre, tanto mais que, em sua própria casa, a mulher compreende cada vez menos a sua obstinação numa vida de penúria. Magnozzi é uma mistura de timidez e de arrogância militante, capaz de pequenas cobardias, dissimuladas humilhações, ou de grandes gestos teatrais, sem todavia assumir uma postura muito coerente, apesar de nunca renegar princípios e valores em que acredita. Mas, a partir da altura em que a mulher o abandona, Magnozzi fica transtornado, oscila eticamente e, para a reconquistar, aceita submeter-se ao poder ascendente de uma classe de construtores civis e traficantes de armas que ascendem ao capitalismo triunfante e às suas benesses. Servilmente, passa a ser o relações públicas de um desses comendadores de aviário que sente mesmo um certo prazer em curvar a espinha (e moldar a dignidade) de um daqueles que anteriormente haviam jurado não abdicar de uma certa conduta social e política. O normal nestes casos: quem trai gosta de se ver rodeado de outros traidores, se possível ainda mais traidores do que ele, para se sentir massa da mesma massa e ficar tudo “em família”.


O percurso da Itália entre duas décadas é dado de forma invulgarmente eficaz. Com a serenidade de escrita e a eficácia narrativa de sempre, Dino Risi descreve um época, um tempo histórico, não visto tanto pelos grandes momentos “históricos”, mas pela vida do dia-a-dia e pela análise de uma mentalidade e de um modo de vida que progressivamente vai resvalando e adulterando características. Neste aspecto, a colaboração de Alberto Sordi é particularmente influente, pois o trabalho do actor e prodigioso de sensibilidade, de acutilância, num registo dificílimo que se pode definir num desenho de personagem trágico-cómico que só um intérprete especialmente dotado consegue manter num termo justo, sem descambar em algo de vulgar, grosseiro ou piegas. Alberto Sordi é simplesmente brilhante, ajudando Dino Risi a desenvolver uma obra que conta com sequências inesquecíveis: o jantar em casa de uma família monárquica que espera os resultados de um referendo sobre “República ou Monarquia” é absolutamente genial, pela forma como a caricatura é contida nos limites do razoável, sendo, no entanto, cáustica; a já referida cena da festa do comendador, que termina com a bofetada justiceira, é de antologia; a tormenta psicológica por que passa Magnozzi, após a separação da mulher (excelente Lea Massari, diga-se), obriga-o a persegui-la de restaurante em restaurante, de bar em bar, até culminar com uma épica bebedeira que leva o jornalista a invectivar todos os carros que passam na estrada, acusando o carro de ser o símbolo da rápida promoção social e da profunda decadência moral dos italianos. Uma outra sequência merece referência, tendo o cinema como centro de atenção e de crítica. Por esta altura, o cinema transalpino caracterizava-se por filmes históricos, os chamados “peplums”. Silvio Magnozzi vai procurar na Cinecittá, num intervalo de filmagens, um conde amigo da mulher, que caíra em desgraça e sobrevive como figurante em filmes de romanos e cristãos. O jornalista quer vender um argumento ao realizador Blasetti, mas o mais interessante na sequência é assistir-se igualmente à decadência do próprio cinema italiano, que se deixa contaminar por essa volúpia do lucro fácil e do “gosto do grande público”. A cena é divertidíssima, e Dino Risi, que era acusado de ser um cineasta que trocara a seriedade pelo humor, e tornara “rosa” o “neo-realismo”, “vinga-se” aqui, ainda por cima criando uma obra-prima de uma qualidade e perenidade que muitos dos seus detractores nunca conseguiram. Visto hoje em dia, “Uma Vida Difícil” não tem uma ruga e espanta pela modernidade e pela acuidade: as sociedades apenas se tornaram mais do mesmo.

UMA VIDA DIFICIL
Título original: Una Vita Difficile

Realização: Dino Risi (Itália, 1961); Argumento: Rodolfo Sonego; Produção: Dino De Laurentiis; Música: Carlo Savina; Fotografia (p/b): Leonida Barboni; Montagem: Tatiana Casini Morigi; Design de produção: Mario Chiari; Direcção artística: Mario Scisci; Guarda-roupa: Lucia Mirisola; Maquilhagem: Giuliano Laurenti; Assistentes de Realização: Vana Caruso, Franco Montemurro; Som: Biagio Fiorelli, Enrico Moreal; Companhias de produção: Dino de Laurentiis Cinematográfica; Intérpretes: Alberto Sordi (Silvio Magnozzi), Lea Massari (Elena Pavinato), Franco Fabrizi (Franco Simonini), Lina Volonghi (Amelia Pavinato), Claudio Gora (Commendador Bracci);  Antonio Centa (Carlo), Loredana Cappelletti (Giovanna), Mino Doro (Gino Laganà), Daniele Vargas, Borante Domizlaff, Paolo Vanni, Edith Peters, Valeria Manganelli, Salvatore Campochiaro, Bruna Perego, Alfonsina Cetti, Piera Pichi, Carlo Kechler, Nina Honenlohe-Oehringen, Kraft Honenlohe-Oehringen, Enzo Casieri, Leo Monteleoni, Antonio Marrosu, Alfredo Lucifero, Carolyn De Fonseca, Alessandro Blasetti, Vittorio Gassman, Silvana Mangano, Umberto Raho, Franco Scandurra, Renato Tagliani (estes últimos, não creditados), etc. Duração: 118 minutos; Classificação etária: M/12 anos; Distribuição em Portugal: inexistente; DVD: Studio Canal / Cinema all’ Italiana (original italiano, com legendas em francês). 

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