PERFUME DE MULHER (1974)
Dino Risi era já neste período seguramente um dos mestres da
comédia italiana e dos grandes cineastas transalpinos que o pós-guerra revelou.
Curiosamente, só nos últimos anos a crítica internacional (estamos a
referirmo-nos à crítica francesa e anglo-saxónica, aquela que aparentemente
pautava os critérios de muito boa gente, um pouco por todo o lado, por esse
mundo além) o “descobrira”. Em França, por exemplo, o ano de 1975 foi
particularmente fértil para essa “revelação”. Estreia de alguns títulos nunca
aí vistos (entre eles “Uma Vida Difícil”, por exemplo), reposição de outros (“A
Ultrapassagem” é um caso), ao mesmo tempo que apreciam as suas obras mais
recentes (“Em Nome do Povo Italiano”, “Sexo Louco”, “Perfume de Mulher”…). Este
acontecimento vinha mostrar igualmente como, por vezes, a vilipendiada crítica
portuguesa (alguma que se não regia, nem rege, por figurinos estrangeiros...)
se encontrava bem no cimo da onda, chamando a atenção para obras e autores que
só muito tempo depois seriam reconhecidos internacionalmente. Há já longos anos
que alguns críticos portugueses se batiam com ardor pelo cinema rigoroso e
sarcástico deste moralista de riso demolidor e finura de traço que tão
modelarmente retratava uma sociedade ao longo de uma vasta e quase sempre
honrosa carreira.
Fausto (Vittorio Gassman), ex-capitão de infantaria, retirado
do activo na força da idade, em virtude de um acidente com uma bomba que lhe
levou a vista e o braço esquerdo, vive sozinho, em Turim, unicamente sob os
cuidados de uma velha tia. Cínico, duro, sarcástico, de uma agressividade
permanente, Fausto, dissimula assim a amargura que a solidão provoca. O
exército coloca ao seu serviço um jovem soldado que o irá acompanhar durante
uma deambulação por algumas cidades italianas, viagem que terminará em Nápoles.
Não será senão aqui que o espectador perceberá que esta viagem não é outra
coisa senão uma despedida, um olhar retrospectivo para o que ficou para trás.
Fausto, ferozmente agarrado à vida e aos seus prazeres, recusa toda a forma de
piedade, sente sobretudo a falta das mulheres, do “belo sexo” que ele reconhece
pelo “perfume”. Mas a arrogância não lhe permite aceitar qualquer outra forma
de relação que não seja o amor que se compra nas ruas de Génova. Sara, uma
rapariga que o ama desde muito antes do seu infeliz acidente, de quem Fausto
guarda o retrato bem junto ao revólver, na sua mala de viagem, representa para
ele o inaceitável: a abdicação, a humilhação, o aceitar de uma condição de
dependência que sempre recusara até aí. Por isso, a sua viagem é, à partida,
uma viagem sem regresso. O suicídio é a meta derradeira. Mas a coragem falta no
último instante. O que altera por completo os dados do problema. Fausto cai em
si e descobre a sua fraqueza e admite-a. Com desespero e raiva lança um grito
final em busca de Sara. E ela aí está, companheira dedicada, pronta ao
sacrifício. Amor?
Uma das características do cinema de Dino Risi é ser um cinema
de deriva, acompanhando pessoas em viagem em busca de si próprias, que esbarram
com o seu auto-retrato descoberto ao espelho da vida e com o retrato “do
outro”, que de início ignoram com um quase desprezo, mas a quem depois se
afeiçoam.
“Perfume de Mulher”
coloca ao espectador várias questões curiosas. Primeiramente, na linha de um
certo cinema americano que decorre “kerouakianamente” “na estrada”, este é o
percurso de dois homens, bastante diferentes entre si, que ao longo de uma
viagem se vão descobrindo um ao outro. Os laços que se estabelecem entre os
dois não serão de amizade, mas de necessidade. Esses laços impõem uma
convivência. Fausto, fanfarrão e senhor de si, vai conduzindo o jogo de bengala
na mão e olhos vendados pela cegueira. Apesar desse “handicap” é ele ainda o
guia. Pela experiência que demonstra, pela segurança que manifesta, pela invulnerabilidade
que dir-se-ia possuir. O jovem Giovanni, entre a delicadeza e a inexperiência,
entre a raiva e a piedade, é o contrário de Fausto, completando-o, todavia. Os
dias que ambos vivem em comum serão outros tantos dias de experiência
recíproca. No final, Giovanni parte, possivelmente mais forte, seguramente
desencantado com a fragilidade revelada por Fausto.
Mas esta “viagem em Itália” é ainda pretexto para uma
panorâmica rápida, mas cáustica, sobre a sociedade italiana, retratada em
apontamentos breves, carregados de significado. Nas ruas, nas carruagens de
comboio, nas salas de hotéis, nos terraços de Nápoles, um pouco por todo o lado
vai surgindo o perfil de uma sociedade, olhada ora com acidez crítica, ora com
a melancólica ternura de um poeta do quotidiano.
A figura de Fausto é, igualmente, um precioso manancial de
referências críticas. Através dele escalpeliza-se com rigor e lucidez alguns
mitos abertamente mediterrânicos, como o militarismo, o don-juanismo, o
machismo “derrubador”, admiravelmente personificados pelo talento, aqui
disciplinado, de Vittorio Gassman, num dos mais belos papéis da sua carreira.
Dino Rísi, por seu turno, oscilando perigosamente entre o
grotesco e trágico, entre a comédia de costumes e “análise psicológica”, com
subtileza e sensibilidade, mostra-se um cineasta perfeitamente amadurecido, na
posse de todas as suas faculdades, dominando os meios expressivos de que
dispõe, bem assim como os actores sob as suas ordens, Além de Gassman, são de
referir, Alessandro Momo, que “Malícia” revelara e a morte precocemente levou
(e que seria certamente um grande actor), e Agostina Belli, aliás belíssima.
PERFUME DE MULHER
Título original:
Profumo di Donna ou Scent of a Woman ou Sweet Smell of Woman ou That Female
Scent
Realização: Dino Risi (Itália,
1974); Argumento: Ruggero Maccari, Dino Risi, segundo romance de Giovanni
Arpino ("Il buio e il mare"); Produção: Pio Angeletti, Adriano De
Micheli; Música: Armando Trovajoli; Fotografia (cor): Claudio Cirillo;
Montagem: Alberto Gallitti; Design de produção: Lorenzo Baraldi; Guarda-roupa:
Benito Pérsico; Assistentes de Realização: Claudio Risi; Companhias de
produção: Dean Film; Intérpretes: Vittorio Gassman (capitão Fausto
Consolo), Alessandro Momo (Bertazzi, chamado Ciccio), Agostina Belli (Sara),
Moira Orfei (Mirka), Franco Ricci (Raffaele), Elena Veronese (Michelina),
Lorenzo Piani, Stefania Spugnini (Cândida), Torindo Bernardi Vincenzo), Marisa Volonnino (Ines), Carla
Mancini, Alvaro Vitali (Vittorio), Sergio Di Pinto, Vernon Dobtcheff (Don
Carlo), etc. Duração: 103 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos;
Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais; Estreia em Portugal: 31
de Janeiro de 1976.
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