AMARCORD (1973)
“Amarcord”
é uma crónica da memória, como tal escrita na primeira pessoa do singular. O
próprio título do filme (uma amálgama de dois termos: "amar" e
"memória") parece indicar a predominante visão singular (o resíduo de
um tempo numa memória) e uma emoção pessoal (amar). “Amarcord” refere
recordações de infância e adolescência que marcaram uma personalidade (a de
Fellini), e a ordenação convulsiva da memória, feita de episódios ligados (e
desligados) por uma corrente, cujo significado ultrapassa a própria obra e se
terá de ir encontrar no íntimo do próprio autor. Uma ordenação que se expressa
numa linguagem cinematográfica pelo encadeado/montagem de sequências (cada uma
delas constituindo um pequeno todo, valendo por si só, núcleos esses que geram
um significado mais vasto, integrados num núcleo global) que permite restituir
um tempo e um local determinado: uma pequena cidade da província italiana
(Rimini, ao que se supõe, cidade natal de Fellini, durante o período do
fascismo.
Fellini,
na sua deambulação pela memória, não pactua com o silêncio, não recua perante
nada: se as recordações são graves ou grotescas, se as situações roçam a
(aparente, só aparente) vulgaridade, se é jocoso ou ridículo o ambiente, tudo
nos é restituído por uma óptica francamente galvanizadora. O cabotinismo de
Fellini é evidente, à medida da sua desmedida. O que se aceita em quem é
efectivamente muito grande para não permitir comparações, para as ultrapassar,
para se situar acima de acusações deslocadas. Depois, personagens e situações
galopam à conquista do público. Uma conquista que não implica a abdicação do
espectador, mas muito pelo contrário. Fellini conquista o público, acordando-o
(melhor diríamos, na ocorrência, recordando-o). É o tempo do fascismo com a
prepotência do interrogatórios, a histeria da violência, a brutalidade da
exploração, mas também é o tempo do risível fascismo ao nível das paradas
militares a trote, do fascismo quotidiano de um ensino mediavalesco, numa
pequena cidade de província, onde os conflitos sociais e políticos, se bem que
agravados por um lado, se amenizam numa convivência que é de todos, como de
todos é Gradisca.
A crónica
parece escrita em tons menores, mas subitamente temos diante de nós um temível
painel de uma época brutal. E, por detrás dessa brutalidade, os rostos de
homens e mulheres, de crianças e velhos, de loucos e prostitutas, de tocadores
de acordeão ou de príncipes decadentes, todos eles na enorme fragilidade de uma
condição humana, aqui e ali vilipendiada e terrivelmente ofendida, mas intocável
no que de essencial encerra: a enorme ternura que uns olhos despertam, a
majestosa gravidade de um grito louco. A amargura da procurada felicidade por
caminhos tortuosos, a difícil aprendizagem do ofício de homem.
Julgamos
que este é um dos grandes filmes de Fellini, uma das suas obras-primas
indiscutíveis. O cineasta encontra-se em grande forma, o seu discurso
aparentemente caótico é admirável de espontaneidade e observação, numa
projecção, diríamos psicanalítica, de uma reconstrução desordenada do
inconsciente. As figuras que vai encontrando/ recordando/criando são
inesquecíveis, as situações que se sucedem assemelham-se a quadros de uma
fulgurante revista de variedades. Fellini prolonga as suas feéries de “8 ½” ou
de “Roma”, profundamente pessoais, mas vai mais longe, a “Os Inúteis”, por
exemplo, recriando momentos da sua aventura pessoal até aí na sombra.
Conhecemos agora os “vitelloni” em adolescentes, em redor de Titta, que é
obviamente um alter-ego de Fellini, ao mesmo tempo que é uma recordação de um
colega seu de escola, Luigi Banzi, filho de um truculento anarquista, sobrinho
de um tio louco, que sobe às árvores a gritar que quer uma mulher, e neto de um
avô que gosta de passar a mão pelos rabos das criadas.
O filme
foi quase todo rodado no estúdio 5 da Cinecittá, conferindo-lhe esse lado de
memória reconstruída que tão bem lhe assenta e o define. O realismo não impera,
substituído por um imaginário mais real que a realidade, como Fellini gostava
de afirmar. O cineasta oferece-nos simultaneamente o retrato de uma província
italiana durante o período fascista, e a sua crítica, grotesca ou caricatural.
Os grandes núcleos da sociedade são escalpelizados, a política, a família, a
religião, o poder económico, a sexualidade.
A mulher,
mais uma vez, ocupa destacado lugar, com a presença de luxuriantes
representantes, como Gradisca, que todos cobiçam e acaba por casar com um
militar, Volpina, que a todos se oferece, ou a dona de uma mercearia/tabacaria,
que simboliza a exacerbada sexualidade dos adolescentes. Mas há também a mãe de
Titta, repressiva e maternal. A religião não é esquecida, com as divertidas
confissões, ou a presença de uma freira anã. Os militares e os políticos são
causticados, pelas cenas de tortura, pelas marchas grotescas, pela homenagem ao
político fascista de visita a Rimini. O cinema e o teatro não deixam de surgir,
como momentos de evasão. O mar, o pontão a sinalizá-lo, o navio (o “Grand Rex”,
o maior navio da Itália fascista), como mito de uma Itália imperial, são outros
momentos a referir.
Justificadamente,
“Amarcord” arrecadou o Oscar de Melhor Filme em Língua não Inglesa e o sucesso
público do filme foi imenso.
AMARCORD
Título original: Amarcord
Realização: Federico
Fellini (Itália, França, 1973); Argumento: Federico Fellini, Tonino Guerra;
Produção: Franco Cristaldi; Música: Nino Rota; Fotografia (cor): Giuseppe
Rotunno; Montagem: Ruggero Mastroianni; Design de produção: Danilo Donati;
Direcção artística: Giorgio Giovannini; Guarda-roupa: Danilo Donati;
Maquilhagem: Rino Carboni, Amalia Paoletti; Direcção de produção: Alessandro
Gori, Lamberto Pippia, Gilberto Scarpellini; Assistentes de realização: Liliane
Betti, Mario Garriba, Maurizio Mein, Gerald Morin; Departamento de arte: Andrea
Fantacci, Italo; Som: Oscar De Arcangelis; Efeitos especiais: Adriano
Pischiutta; Companhias de produção: F.C. Produzioni, PECF;Intérpretes: Pupella Maggio (Miranda Biondi, mãe de Titta), Armando
Brancia (Aurelio Biondi, pai de Titta), Magali Noël (Gradisca), Ciccio
Ingrassia (Teo), Nando Orfei (Patacca), Luigi Rossi (advogado), Bruno Zanin
(Titta Biondi), Gianfilippo Carcano (Don Baravelli), Josiane Tanzilli
(Volpina), Maria Antonietta Beluzzi, Giuseppe Ianigro, Ferruccio Brembilla
(chefe fascista), Antonino Faà di Bruno (Conde Lovignano), Mauro Misul
(professor de filosofia), Ferdinando Villella (Fighetta), Antonio Spaccatini
(polícia), Aristide Caporale (Giudizio), Gennaro Ombra (Biscein), Domenico
Pertica (cego), Marcello Di Falco (o Principe), Stefano Proietti (Oliva),
Alvaro Vitali (Naso), Bruno Scagnetti (Ovo), Fernando De Felice (Ciccio), Bruno
Lenzi (Gigliozzi), Gianfranco Marrocco, Francesco Vona, Donatella Gambini, Dina
Adorni, Paolo Baroni, Bruno Bertocci, Marcello Bonini Olas, Dante Cleri, Mario
Del Vago, Francesco Di Giacomo, Dario Giacomelli, Veriano Ginesi, Mario
Liberati, Franco Magno, Cesare Martignon, Francesco Maselli, Lino Patruno,
Fredo Pistoni, Eros Ramazzotti, Faustone Signoretti, Mario Silvestri, Fides
Stagni, etc. Duração: 123 minutos;
Classificação etária: M/ 12 anos (DVD), M/ 17 anos (estreia de cinema);
Distribuição em Portugal (DVD): Warner; Data de estreia em Portugal: 19 de
Setembro de 1974.