A DOCE VIDA (1960)
“La Dolce
Vita”, de Federico Fellini, é uma obra-prima do cinema mundial. Dizer isto é
dizer tudo mas, ao mesmo tempo, é dizer pouco. “La Dolce Vita” assinala
definitivamente um corte com o neo-realismo inicial dos anos 40 e 50 e a
procura de novos caminhos. Já lá iremos. Mas é também um retrato da Itália do
início da década de 60 do século XX, que pouco tem a ver com os miseráveis bairros suburbanos e as paupérrimas casas
rurais perdidas no campo dos filmes de De Sica, Fellini, Rossellini ou Visconti
que desenhavam o perfil da Itália do após guerra. A Itália modificou-se muito
com os governos da democracia cristã, avançou com o milagre económico que o
plano Marshall ajudou a concretizar. A modernização e a relativa abastança, a
revolução operada pelos carros e os electrodomésticos criaram um outro tipo de
sociedade, virada para a opulência, os negócios, a especulação, o consumo, o
prazer, a inutilidade, a frivolidade. “La Dolce Vita” e também L' Avventura, de
Michelangelo Antonioni, ambos estreados significativamente em 1960, são dois
dos mais importantes sintomas dessas mudanças e do mal-estar por elas provocado
nalguns extractos dessa mesma sociedade. Ambos mostram o seu repúdio pela falta
de valores, pela crise moral e social que se abate sobre Itália.
Voltando
ao neo-realismo: a crítica era directa, em argumentos simples, com actores não
profissionais, com a ingénua crença de que o real se deixaria aprisionar pela
câmara, sem subterfúgios. Ingénuas ou não, realizaram-se obras-primas
inesquecíveis. Fellini em “La Dolce Vita” dá o salto definitivo. Há uma
afinidade de tom e de estilo com a “nouvelle vague” francesa que por esses anos
explode. Curiosamente, os franceses de finais de 50 vão inspirar-se na
liberdade de estilo do neo-realismo, e os cineastas italianos que estiveram na
base desta corrente bebem da “nouvelle vague” novas influências. Os argumentos
deixam de ser narrativos. Aqui o que existe são crónicas dispersas sobre a
actualidade italiana em Roma. Não há uma intriga principal que se vá
desenrolando com causa e efeito.
O que
unifica o filme é o percurso do jornalista Marcello Rubini (Marcello
Mastroiani) que, como cronista mundano, vai derivando por vários cenários
possíveis, desde os mais populares aos mais sofisticados, permitindo-nos assim
uma panorâmica bastante significativa da vida italiana no início da década de
60. Marcello Rubini é um contador de “fait divers” e o filme de Fellini acompanha-o.
Aparentemente, nada de muito importante acontece ao longo das duas horas e meia
de “La Dolce Vita”. A chegada de uma vedeta sueca, reuniões sociais, duas
crianças que viram Maria e congregam em seu redor uma multidão, uma viagem
nocturna por um palacete assombrado, o encontro de Marcello com o pai que não
via há muito e que visita um cabaret, discussões com a mulher com quem habita,
que o trata por namorado e de quem Marcello se quer ver livre, um intelectual
desesperado que se suicida levando consigo os filhos que tanto ama, um peixe
monstruoso que dá à costa, uma rapariga que acena na praia deserta…
Esta opção
por uma narrativa aparentemente descosida que vai deixando pelo caminho
personagens é algo de profundamente novo e moderno no cinema europeu daquela
época. Curiosamente, Federico Fellini vai inovando o seu cinema, sem perder um
milímetro da sua identidade, das suas obsessões, dos seus fantasmas.
Acentua-se, se possível, o confronto entre real e fantasia (alguns exemplos: os
helicópteros que atravessam os ares de Roma que vêm das ruinas da Roma antiga e
se dirigem para os edifícios modernos, com piscinas nos terraços, transportando
uma imagem de Cristo; os “milagres” relatados pelas duas crianças, e toda a
feira que se monta em seu redor; os sons da natureza gravados e ouvidos por uma
selecta assistência que só dá conta da natureza quando a ouve gravada e
reproduzida mecanicamente; o passeio pela casa assombrada; o cenário do
suicídio de Steiner; o peixe gigante, etc.). O seu gosto pelo espectáculo e
pelo circo mantém-se (veja-se a ida ao cabaret e os números apresentados). A
sua crítica à igreja como instituição manipuladora é evidente, tanto na
sequência inicial, com os helicópteros com a estátua de Jesus, como na feira
que se monta em redor do milagre das videntes, o que todavia é contrabalançado
com a personagem do padre que afirma que “Deus encontra-se em qualquer lado”. A
denúncia dos inúteis e da frivolidade de uma vida sem sentido acentua-se ao
longo de toda a obra, não necessitando de se seleccionar exemplos. Toda “La
Dolce Vita” é um prolongamento romano e actualizado de “Os Inúteis”. Marcello
prefigura também aqui a consciência do próprio Fellini: ele é o jornalista e
escritor que vive amargurado com a sua existência superficial e algo grotesca,
ele que tem talento para muito mais (ele próprio o sabe, e Steiner confirma-o,
ao elogiar a sua escrita que merecia mais).
“La Dolce
Vita” passeia-se pela decadência moral e a ausência de valores que se
transforma num imenso vazio existencial, cultural, social. Fellini não deixa de
ser um moralista preocupado com os caminhos que a sociedade da abundância e do
consumo pressagia. O hedonismo sem freio, o culto por um prazer desenfreado,
esta doçura de viver profundamente pessoal, egoísta, esta infindável passeata
em grupo de aristocratas e burgueses bem instalados nesta “terra de mitos” onde
é fácil acontecerem milagres (como o chamado “milagre económico”) são o cerne
deste filme de uma criatividade esfusiante. A chegada de Anita Ekberg, com o cortejo
de paparazzis a escoltá-la (foi a personagem Paparazzo deste filme que deu o
nome aos jornalistas de sensação que hoje são conhecidos sob essa designação),
é um magnífico exemplo da frivolidade dos tempos, da incompetência de um
jornalismo idiota, das conferências de imprensa risíveis, de uma vulgaridade
confrangedora. A famosa fuga nocturna de Marcello e da sueca Sylvia, pelas
ruelas de Roma, com a celebrada passagem pela Fontana de Trevi, é outro momento
inesquecível de um filme que marcou uma geração e a História do Cinema.
Com
argumento escrito por Federico Fellini e os seus habituais colaboradores, Ennio
Flaiano, Tullio Pinelli, Brunello Rondi e Pier Paolo Pasolini (este último
sobretudo nos diálogos), “La Dolce Vita” esteve nomeado para quatro Oscars em
1962 - melhor realizador, melhor argumento original, melhor fotografia a preto
e branco e melhor guarda-roupa, e só viria a triunfar nesta derradeira
categoria. Foi Palma de Ouro em Cannes, 1960, melhor filme em língua não
inglesa para os críticos de Nova Iorque, e Marcello Mastroiani, os
argumentistas e os cenógrafos ganharam os respectivos prémios atribuídos pelo
Sindicato Nazionale Giornalisti Cinematografici Italiani, em 1961. Marcello
Mastroianni é notável nesta criação que antecedeu algumas outras em que, de
certa forma, se confirmou como “alter ego” de Fellini, e Anita Ekberg, Anouk
Aimée, Yvonne Furneaux, Magali Noël e tantas outras actrizes sustentaram a
imagem feminina sempre tão presente e absorvente nos filmes deste mestre
italiano. A música de Nino Rota e a fotografia a preto e branco de Otello
Martelli são igualmente notáveis.
Como em
várias outras obras do mesmo cineasta, os planos finais passam-se numa praia
frente ao mar, onde se criam imagens de um simbolismo enigmático. O confronto
com o mar, com a sua imensidão sem limites, parece ser para Fellini a fronteira
para um encontro consigo próprio, com a consciência de cada um. O monstruoso
peixe que dá à costa será o símbolo desta desconfortante sociedade em que
lentamente nos íamos transformando? E a jovem rapariguinha que lhe acena do
outro extremo da areia (e que Marcello havia já encontrado num restaurante) a
representação de uma natureza incorruptível que temos que perseguir?
A DOCE VIDA
Título original: La Dolce Vita
Realização: Federico
Fellini (Itália, França, 1960); Argumento: Federico Fellini, Ennio Flaiano,
Tullio Pinelli, Brunello Rondi, e ainda, não creditado, Pier Paolo Pasolini;
Produção: Giuseppe Amato, Franco Magli, Angelo Rizzoli; Música: Nino Rota;
Fotografia (p/b): Otello Martelli; Montagem: Leo Cattozzo; Design de produção:
Piero Gherardi; Guarda-roupa: Piero Gherardi; Maquilhagem: Otello Fava, Renata
Magnanti; Direcção de produção: Nello Meniconi, Manlio Morelli, Alessandro von
Norman; Assistentes de realização: Dominique Delouche, Guidarino Guidi,
Gianfranco Mingozzi, Paolo Nuzzi, Lili Rademakers, Giancarlo Romani;
Departamento de arte: Brunello Rondi, Italo Tomassi; Som: Oscar Di Santo,
Agostino Moretti; Companhias de produção: Riama Film, Gray-Film, Pathé
Consortium Cinéma; Intérpretes:
Marcello Mastroianni (Marcello Rubini), Anita Ekberg (Sylvia), Anouk Aimée
(Maddalena), Yvonne Furneaux (Emma), Magali Noël (Fanny), Alain Cuny (Steiner),
Annibale Ninchi (pai de Marcello), Walter Santesso (Paparazzo), Valeria
Ciangottini (Paola), Riccardo Garrone (Riccardo), Ida Galli, Audrey McDonald,
Polidor, Alain Dijon, Enzo Cerusico, Giulio Paradisi, Enzo Doria, Enrico Glori,
Adriana Moneta, Massimo Busetti, Mino Doro, Giulio Girola, Laura Betti, Carlo
Musto, Lex Barker, Jacques Sernas, Nadia Gray, Giuseppe Addobbati, Conde
Brunoro Serego Aligheri, Adriano Celentano, Carlo Di Maggio, Conde Ivenda
Dobrzensky, Sondra Lee, Gianfranco Mingozzi, Umberto Orsini, Condessa Cristina
Paolozzi, Princesa Doris Pignatelli, Giulio Questi, Franco Rossellini, Anna
Maria Salerno, etc. Duração: 174
minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD):
Costa do Castelo; Data de estreia em Portugal: 6 de Maio de 1970.
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