terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A DOCE VIDA


A DOCE VIDA (1960)

“La Dolce Vita”, de Federico Fellini, é uma obra-prima do cinema mundial. Dizer isto é dizer tudo mas, ao mesmo tempo, é dizer pouco. “La Dolce Vita” assinala definitivamente um corte com o neo-realismo inicial dos anos 40 e 50 e a procura de novos caminhos. Já lá iremos. Mas é também um retrato da Itália do início da década de 60 do século XX, que pouco tem a ver com os miseráveis bairros suburbanos e as paupérrimas casas rurais perdidas no campo dos filmes de De Sica, Fellini, Rossellini ou Visconti que desenhavam o perfil da Itália do após guerra. A Itália modificou-se muito com os governos da democracia cristã, avançou com o milagre económico que o plano Marshall ajudou a concretizar. A modernização e a relativa abastança, a revolução operada pelos carros e os electrodomésticos criaram um outro tipo de sociedade, virada para a opulência, os negócios, a especulação, o consumo, o prazer, a inutilidade, a frivolidade. “La Dolce Vita” e também L' Avventura, de Michelangelo Antonioni, ambos estreados significativamente em 1960, são dois dos mais importantes sintomas dessas mudanças e do mal-estar por elas provocado nalguns extractos dessa mesma sociedade. Ambos mostram o seu repúdio pela falta de valores, pela crise moral e social que se abate sobre Itália.
Voltando ao neo-realismo: a crítica era directa, em argumentos simples, com actores não profissionais, com a ingénua crença de que o real se deixaria aprisionar pela câmara, sem subterfúgios. Ingénuas ou não, realizaram-se obras-primas inesquecíveis. Fellini em “La Dolce Vita” dá o salto definitivo. Há uma afinidade de tom e de estilo com a “nouvelle vague” francesa que por esses anos explode. Curiosamente, os franceses de finais de 50 vão inspirar-se na liberdade de estilo do neo-realismo, e os cineastas italianos que estiveram na base desta corrente bebem da “nouvelle vague” novas influências. Os argumentos deixam de ser narrativos. Aqui o que existe são crónicas dispersas sobre a actualidade italiana em Roma. Não há uma intriga principal que se vá desenrolando com causa e efeito.


O que unifica o filme é o percurso do jornalista Marcello Rubini (Marcello Mastroiani) que, como cronista mundano, vai derivando por vários cenários possíveis, desde os mais populares aos mais sofisticados, permitindo-nos assim uma panorâmica bastante significativa da vida italiana no início da década de 60. Marcello Rubini é um contador de “fait divers” e o filme de Fellini acompanha-o. Aparentemente, nada de muito importante acontece ao longo das duas horas e meia de “La Dolce Vita”. A chegada de uma vedeta sueca, reuniões sociais, duas crianças que viram Maria e congregam em seu redor uma multidão, uma viagem nocturna por um palacete assombrado, o encontro de Marcello com o pai que não via há muito e que visita um cabaret, discussões com a mulher com quem habita, que o trata por namorado e de quem Marcello se quer ver livre, um intelectual desesperado que se suicida levando consigo os filhos que tanto ama, um peixe monstruoso que dá à costa, uma rapariga que acena na praia deserta…
Esta opção por uma narrativa aparentemente descosida que vai deixando pelo caminho personagens é algo de profundamente novo e moderno no cinema europeu daquela época. Curiosamente, Federico Fellini vai inovando o seu cinema, sem perder um milímetro da sua identidade, das suas obsessões, dos seus fantasmas. Acentua-se, se possível, o confronto entre real e fantasia (alguns exemplos: os helicópteros que atravessam os ares de Roma que vêm das ruinas da Roma antiga e se dirigem para os edifícios modernos, com piscinas nos terraços, transportando uma imagem de Cristo; os “milagres” relatados pelas duas crianças, e toda a feira que se monta em seu redor; os sons da natureza gravados e ouvidos por uma selecta assistência que só dá conta da natureza quando a ouve gravada e reproduzida mecanicamente; o passeio pela casa assombrada; o cenário do suicídio de Steiner; o peixe gigante, etc.). O seu gosto pelo espectáculo e pelo circo mantém-se (veja-se a ida ao cabaret e os números apresentados). A sua crítica à igreja como instituição manipuladora é evidente, tanto na sequência inicial, com os helicópteros com a estátua de Jesus, como na feira que se monta em redor do milagre das videntes, o que todavia é contrabalançado com a personagem do padre que afirma que “Deus encontra-se em qualquer lado”. A denúncia dos inúteis e da frivolidade de uma vida sem sentido acentua-se ao longo de toda a obra, não necessitando de se seleccionar exemplos. Toda “La Dolce Vita” é um prolongamento romano e actualizado de “Os Inúteis”. Marcello prefigura também aqui a consciência do próprio Fellini: ele é o jornalista e escritor que vive amargurado com a sua existência superficial e algo grotesca, ele que tem talento para muito mais (ele próprio o sabe, e Steiner confirma-o, ao elogiar a sua escrita que merecia mais).


“La Dolce Vita” passeia-se pela decadência moral e a ausência de valores que se transforma num imenso vazio existencial, cultural, social. Fellini não deixa de ser um moralista preocupado com os caminhos que a sociedade da abundância e do consumo pressagia. O hedonismo sem freio, o culto por um prazer desenfreado, esta doçura de viver profundamente pessoal, egoísta, esta infindável passeata em grupo de aristocratas e burgueses bem instalados nesta “terra de mitos” onde é fácil acontecerem milagres (como o chamado “milagre económico”) são o cerne deste filme de uma criatividade esfusiante. A chegada de Anita Ekberg, com o cortejo de paparazzis a escoltá-la (foi a personagem Paparazzo deste filme que deu o nome aos jornalistas de sensação que hoje são conhecidos sob essa designação), é um magnífico exemplo da frivolidade dos tempos, da incompetência de um jornalismo idiota, das conferências de imprensa risíveis, de uma vulgaridade confrangedora. A famosa fuga nocturna de Marcello e da sueca Sylvia, pelas ruelas de Roma, com a celebrada passagem pela Fontana de Trevi, é outro momento inesquecível de um filme que marcou uma geração e a História do Cinema.
Com argumento escrito por Federico Fellini e os seus habituais colaboradores, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, Brunello Rondi e Pier Paolo Pasolini (este último sobretudo nos diálogos), “La Dolce Vita” esteve nomeado para quatro Oscars em 1962 - melhor realizador, melhor argumento original, melhor fotografia a preto e branco e melhor guarda-roupa, e só viria a triunfar nesta derradeira categoria. Foi Palma de Ouro em Cannes, 1960, melhor filme em língua não inglesa para os críticos de Nova Iorque, e Marcello Mastroiani, os argumentistas e os cenógrafos ganharam os respectivos prémios atribuídos pelo Sindicato Nazionale Giornalisti Cinematografici Italiani, em 1961. Marcello Mastroianni é notável nesta criação que antecedeu algumas outras em que, de certa forma, se confirmou como “alter ego” de Fellini, e Anita Ekberg, Anouk Aimée, Yvonne Furneaux, Magali Noël e tantas outras actrizes sustentaram a imagem feminina sempre tão presente e absorvente nos filmes deste mestre italiano. A música de Nino Rota e a fotografia a preto e branco de Otello Martelli são igualmente notáveis. 

Como em várias outras obras do mesmo cineasta, os planos finais passam-se numa praia frente ao mar, onde se criam imagens de um simbolismo enigmático. O confronto com o mar, com a sua imensidão sem limites, parece ser para Fellini a fronteira para um encontro consigo próprio, com a consciência de cada um. O monstruoso peixe que dá à costa será o símbolo desta desconfortante sociedade em que lentamente nos íamos transformando? E a jovem rapariguinha que lhe acena do outro extremo da areia (e que Marcello havia já encontrado num restaurante) a representação de uma natureza incorruptível que temos que perseguir?

A DOCE VIDA
Título original: La Dolce Vita

Realização: Federico Fellini (Itália, França, 1960); Argumento: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, Brunello Rondi, e ainda, não creditado, Pier Paolo Pasolini; Produção: Giuseppe Amato, Franco Magli, Angelo Rizzoli; Música: Nino Rota; Fotografia (p/b): Otello Martelli; Montagem: Leo Cattozzo; Design de produção: Piero Gherardi; Guarda-roupa: Piero Gherardi; Maquilhagem: Otello Fava, Renata Magnanti; Direcção de produção: Nello Meniconi, Manlio Morelli, Alessandro von Norman; Assistentes de realização: Dominique Delouche, Guidarino Guidi, Gianfranco Mingozzi, Paolo Nuzzi, Lili Rademakers, Giancarlo Romani; Departamento de arte: Brunello Rondi, Italo Tomassi; Som: Oscar Di Santo, Agostino Moretti; Companhias de produção: Riama Film, Gray-Film, Pathé Consortium Cinéma; Intérpretes: Marcello Mastroianni (Marcello Rubini), Anita Ekberg (Sylvia), Anouk Aimée (Maddalena), Yvonne Furneaux (Emma), Magali Noël (Fanny), Alain Cuny (Steiner), Annibale Ninchi (pai de Marcello), Walter Santesso (Paparazzo), Valeria Ciangottini (Paola), Riccardo Garrone (Riccardo), Ida Galli, Audrey McDonald, Polidor, Alain Dijon, Enzo Cerusico, Giulio Paradisi, Enzo Doria, Enrico Glori, Adriana Moneta, Massimo Busetti, Mino Doro, Giulio Girola, Laura Betti, Carlo Musto, Lex Barker, Jacques Sernas, Nadia Gray, Giuseppe Addobbati, Conde Brunoro Serego Aligheri, Adriano Celentano, Carlo Di Maggio, Conde Ivenda Dobrzensky, Sondra Lee, Gianfranco Mingozzi, Umberto Orsini, Condessa Cristina Paolozzi, Princesa Doris Pignatelli, Giulio Questi, Franco Rossellini, Anna Maria Salerno, etc. Duração: 174 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Data de estreia em Portugal: 6 de Maio de 1970. 

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