terça-feira, 30 de dezembro de 2014

FELLINI 8 1/2


FELLINI OITO E MEIO (1963)

O percurso de Federico Fellini durante os primeiros anos da sua carreira de cineasta teria de culminar numa obra como “Fellini 8 ½”, onde se compendiam, de forma genial, temas, fantasmas, obsessões, recordações de infância, questões estéticas, paixões, enfim todo um universo muito pessoal que entra em crise, quer a nível criativo, quer a nível individual. O grande toque de Midas de Fellini foi transformar a sua crise no elemento central do seu filme, repensar toda a sua obra e toda a sua vida, confrontar-se publicamente consigo próprio e com os outros, mulher, amigos, amantes, colaboradores, actores, técnicos, figurantes, espectadores… Impudicamente revelador, demonstrando que a mentira é a maior das verdades, como gostava de dizer, ele a quem chamavam “o grande mentiroso”.
Mas, curiosamente, o título parece revelar o maior pragmatismo realista: “Fellini 8 ½”, isto é: este é o oitavo filme e meio deste realizador que anteriormente tinha dirigido sete filmes e dois episódios (há quem diga que foram seis filmes, dois episódios, que contariam como mais um filme, e mais meio filme, que seria o seu primeiro, co-realizado com Alberto Lattuada).


Para quem seguir cronologicamente esta carreira, verá facilmente que o cinema de Fellini prolonga coerentemente um percurso que, partindo do realismo (na época em que se integra no neo-realismo), dele se afasta progressivamente de várias formas. Numa delas, porque o seu apelo à fantasia, ao sonho, ao imaginário é cada vez maior; noutra, porque a sua narrativa se solta das amarras do romanesco para se precipitar num aparente caos de que “La Dolce Vita” era já um sintoma claro. Com “Fellini 8 ½”, a desordem instala-se. Mas só na aparência, pois não há filme mais transparente na sua leitura.
“Fellini 8 ½” é, resolutamente, uma obra autobiográfica. Mas sendo autobiográfica em relação a um contador de histórias, um efabulador, ou “o grande mentiroso” como gosta de ser conhecido (“um mentiroso que diz sempre a verdade”, na tradição de um Jean Cocteau), este é um terreno resvaladiço onde dificilmente se sabe o que é verdade ou mentira. Tratando-se, porém, de uma obra de arte, tudo o que se percebe é a verdade que nos querem transmitir. Logo, toda a mentira ou verdade é verdade, a única que temos presente, como diria Godard, “o cinema é a verdade 24 imagens por segundo”. Saber se tal ou tal imagem ou cena é ou não verdade, deixa de ser importante para o espectador. O que vemos é a verdade que Fellini nos quer transmitir. O que não implica que nós não saibamos, inclusive por confissão do próprio Fellini (será verdade?), que muito do que confessa sobre si e a sua vida é produto da imaginação. Os seus biógrafos interrogam-se sobre certas zonas cinzentas da sua vida, e Fellini ajuda à festa quando confessa que muitas das suas recordações, por exemplo, da adolescência passada em Rimini, e que ele apresenta em obras como “Fellini 8 ½” ou “Amarcord”, são possivelmente mais imaginadas do que reais. E depois pergunta, ingenuamente, o que é a realidade.


Por isso o melhor é não transpor directamente tudo o que se vê no filme para a vida de Fellini, ou, se preferirem, aceitar como real tudo o que se vê e ouve. Passemos, portanto, ao filme, que se inicia com um engarrafamento e Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) no interior do seu carro, fechado, sem poder sair, tanto do automóvel como do trânsito bloqueado, sujeito a uma angustiante crise de claustrofobia. Mas acabará por se soltar, em direcção ao céu, voando para uma praia. Um agente (de Claudia, sabe-se depois) prende-lhe uma perna à realidade e, puxando-o, leva-o a precipitar-se nas águas do mar. É um sonho, um pesadelo, de que acorda num quarto de hotel, onde é visto por um médico que lhe aconselha umas férias numas termas, para onde parte. Toda a introdução no universo das termas é uma das mais brilhantes sequências desta obra-prima, com os grupos humanos numa orquestração coreografada de movimentos, gestos, olhares, sob a direcção da música de Wagner e as suas “Valquírias”. Alguns jornalistas aparecem, aqui e ali, com perguntas impertinentes: “Prepara mais um filme? Mais uma obra sem esperança?”


Guido vai depois à estação de caminhos-de-ferro esperar Carla, a amante (Sandra Milo), com quem procura “encenar uma cena porca”, numa passagem por um cemitério, evoca pai e mãe “com quem falou tão pouco”, e de novo no hotel confraterniza, algo contrariado, com actores e equipa técnica do seu próximo filme. Entre eles, o produtor, Pace (Guido Alberti), uma actriz, Madeleine (Madeleine Lebeau), Mario Mezzabotta (Mario Pisu) e a amante, Gloria Morin (a diabólica Barbara Steele, recém saída de “A Máscara do Demónio”, de Mario Bava, ou de “O Fosso e o Pendulo”, de Roger Corman). Pelo meio, passam recordações da infância, das fugas para o casebre da praia onde espreita e dança com a luxuriante Saraghina (Eddra Gale), dos companheiros do colégio religioso, dos castigos impostos, do terror infligido. Momento para Fellini pôr em dia a sua relação conflituosa com o clero e os “príncipes da Igreja”.


Nova sequência admirável se anuncia, com a entrada nos banhos e a quimérica casa de mulheres, o harém que Guido idealiza, com as mulheres da sua vida, harmoniosamente organizadas em seu redor, comandadas pelo seu disciplinador chicote. A sequência é provocada pela chegada de Luisa, a mulher de Guido (Anouk Aimée), que não tolera a presença de Carla. Guido imagina-se “a dizer a verdade sem magoar ninguém”. Chega a ser impúdica esta visão machista que desarma pela sua sinceridade e, por que não dizê-lo?, pela sua inocência.
No meio de uma crise de criatividade sem paralelo, sem saber como dar o primeiro passo para o seu novo filme, e perante a insistência dos produtores, que querem arrancar com as filmagens, os castings continuam. “Mentir como respirar”, tentar adiar e, no meio de toda a desordem, o rosto de Claudia (Claudia Cardinale), o ideal inacessível, a quem confessa a verdade: “Nem filme há”, o seu espírito é um deserto de ideias que fervilham sem porto seguro. Enquanto uns anunciam que as filmagens começam amanhã e outros asseguram que “está perdido! Não tem nada para dizer!”, é o momento para o suicídio, ou para o grande golpe de magia, a sequência final de “Fellini 8 ½”, que simultaneamente será o início das filmagens dessa grande obra de ficção científica que se prepara num cenário de tubos metálicos onde não deixa de existir uma pista de circo. Inicia-se o desfile, sob a batuta da fabulosa composição de Nino Rota, e Fellini encanta-se: “A vida e uma festa! Vivamo-la juntos!” Alguém parece receber a mensagem: “Já percebi o que queres dizer: não podes viver sem nós!”. Isso mesmo. “Os filmes devem ser livres da realidade!” ou será que os filmes, as obras de arte, devem viver dessa realidade mais íntima e profunda que são os sonhos? Fellini andava por essa altura a ser acompanhado por um psicanalista da escola de Jung, e este mergulho na interioridade parece que foi benéfico para se libertar de amarras e se lançar nos caminhos de um cinema cada vez mais pessoal. “Nada é mais honesto do que um sonho”, afirmou Federico Fellini. Ou, numa outra ocasião: “Sonhar é preciso, mesmo que seja um pesadelo”.


Curiosamente, este é o derradeiro filme de Fellini a preto e branco, diga-se de passagem num prodigioso preto e branco com a assinatura de um mestre, Gianni Di Venanzo. Se toda a obra de Fellini é de uma coerência temática e estilística impar na história do cinema, “Fellini 8 ½”, juntamente com “Amarcord”, serão seguramente as suas obras mais confessionais. Mas Fellini não pretendia dramatizar esta obra. Conta-se que terá colado junto da câmara de filmar um post-it que dizia: “lembra-te que este é um filme cómico”. Ou uma magia, onde se mistura habilmente fantasia e realidade. Tal como o mágico do filme explica, “claro que existem alguns truques, mas há também algo de verdadeiro. Eu não sei como acontece, mas acontece”.
Realizado em jeito de parada, tão ao gosto de Fellini, este é um filme onde se compendiam todas as obsessões do cineasta. Onde a realidade se confunde com a fantasia, onde o sonho se torna palpável, onde a sexualidade e a figura da mulher são omnipresentes, onde magia, o circo e o espectáculo dão as mãos, onde a arte e a criatividade são discutidas, onde o papel de Deus e do Homem impõe a esperança afinal, mas onde os representantes da igreja não ficam muito bem vistos, onde a grande arte se solta e sobrevoa os espíritos. Fellini no seu melhor. Um filme que nos liberta com lágrimas de felicidade, no seu final. 
Ganhou o Oscar de 1964 nas categorias de Melhor Filme em Língua não Inglesa e Melhor Guarda-roupa a preto e branco. Foi ainda nomeado para Melhor Realização, Melhor argumento Original e Melhor Direcção Artística a preto e branco. Grande Prémio no Festival de Moscovo, em 1963. Melhor Filme Estrangeiro para os Críticos de Cinema de Nova Iorque, e Melhor Filme Europeu, no Prémio Bodil 1964 (Dinamarca).



FELLINI OITO E MEIO ou FELLINI 8½
Título original: 8½ ou Federico Fellini's 8½

Realização: Federico Fellini (Itália, França, 1963); Argumento: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, Brunello Rondi; Produção: Angelo Rizzoli; Música: Nino Rota; Fotografia (p/b): Gianni Di Venanzo; Montagem: Leo Cattozzo; Design de produção: Piero Gherardi; Direcção artística: Piero Gherardi; Decoração: Vito Anzalone; Guarda-roupa: Piero Gherardi, Leonor Fini; Maquilhagem: Otello Fava, Renata Magnanti; Direcção de produção: Mario Basili, Clemente Fracassi, Nello Meniconi; Assistentes de realização: Francesco Aluigi, Guidarino Guidi, Giulio Paradisi, Alessandro von Norman, Lina Wertmüller; Departamento de arte: Brunello Rondi; Som: Alberto Bartolomei, Mario Faraoni; Companhias de produção: Cineriz, Francinex; Intérpretes: Marcello Mastroianni (Guido Anselmi), Claudia Cardinale (Claudia), Anouk Aimée (Luisa Anselmi), Sandra Milo (Carla), Rossella Falk (Rossella), Barbara Steele (Gloria Morin), Madeleine Lebeau (Madeleine), Caterina Boratto (a senhora misteriosa), Eddra Gale (La Saraghina), Guido Alberti (Pace, o produtor), Mario Conocchia (Conocchia), Bruno Agostini (Bruno), Cesarino Miceli Picardi (Cesarino), Jean Rougeul (Carini), Mario Pisu (Mario Mezzabotta), Yvonne Casadei (Jacqueline Bonbon), Ian Dallas, Mino Doro, Nadia Sanders, Georgia Simmons, Edy Vessel, Tito Masini, Annie Gorassini, Rossella Como, Mark Herron, Marisa Colomber, Neil Robinson, Elisabetta Catalano, Eugene Walter, Hazel Rogers, Gilda Dahlberg, Mario Tarchetti, Mary Indovino, Frazier Rippy, Francesco Rigamonti, Giulio Paradisi, Marco Gemini, Giuditta Rissone, Annibale Ninchi, Nino Rota, etc. Duração: 138 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Classificação etária: M / 12 anos; Data de estreia em Portugal: 24 de Fevereiro de 1964.

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