OS INÚTEIS (1953)
“I
Vitelloni” inicia-se com uma sequência notável. Encontramo-nos numa pequena
cidade da província italiana (não é, mas poderia ser, Rimini, onde nasceu
Fellini, mas sim Ostia, perto de Roma), na esplanada de um hotel ou casino, ou
estabelecimento semelhante, onde decorre a eleição de miss Sereia. A vacuidade
do acontecimento e as reacções que provoca em familiares e amigos das
concorrentes dá bem a imagem da futilidade e inutilidade não só do acto, como
dos seus comparsas. Entre eles, os cinco amigos que irão protagonizar toda a
estrutura romanesca da obra. O episódio serve também para os apresentar em
conjunto. Um entre eles isola-se dos outros e caminha solitário pela noite, depois
de uma tempestade vigorosa que se abate sobre a festa e a faz encerrar
precocemente. Moraldo Rubini (Franco Interlenghi) senta-se num banco perto da
estação de caminhos-de-ferro, e vê os seus pensamentos interrompidos pela
aparição de um adolescente que vai trabalhar às 3 da madrugada. Enquanto uns
deixam passar o tempo na mais completa improdutividade e desocupação, outros
trabalham arduamente. Mais à frente, um deles vai até à porta de uma empresa
onde trabalha a irmã, durante toda a noite, para lhe pedir dinheiro emprestado,
para as suas necessidades. Os que trabalham sustentam os vícios e o dolce far
niente dos inúteis – eis a ideia inicial de Fellini, neste retrato amargo-doce
da vida de alguns jovens na Itália do pós-guerra, numa cinzenta cidade
provinciana onde raramente acontece algo digno de registo. Filhos de famílias
remediadas, todos eles vivem à custa dos pais ou de familiares, alguns
acalentam sonhos de virem a ser “alguém”, mas pouco fazem para isso, ou por
preguiça ou falta de talento.
O filme
terá muito de autobiográfico, não tanto no que diz respeito ao próprio Fellini
enquanto jovem, mas à vida de muitos com quem se cruzou na sua Rimini natal. É
da sua experiência pessoal, do que viu e do que sentiu que se vai abastecer a
inspiração do cineasta para esta obra que conserva muito do neo-realismo
inicial, mas que lhe acrescenta desde logo não só o seu olhar profundamente
pessoal, como um interesse humano por esses destroços que se arrastam ao sabor
das marés numa qualquer cidade costeira. Os cinco amigos, interpretados por
Franco Interlenghi (Moraldo Rubini), Alberto Sordi (Alberto), Franco Fabrizi
(Fausto Moretti), Leopoldo Trieste (Leopoldo Vannucci) e Riccardo Fellini
(Riccardo), passeiam sem destino pelas ruas da cidade, executam pequenas
piruetas de efeito patético, descem até ao cais e olham a vastidão do mar, como
fronteira da sua esperança, como limite das suas ambições. Ali ficarão
perdidos, disfarçados em fatos carnavalescos e prolongando a máscara ao longo
de todo o ano.
Um deles,
Fausto, engravida a namorada, Sandra, irmã de Moraldo, é obrigado a casar,
arranja por favor um emprego, tenta seduzir a mulher do patrão, é despedido, é
pai, rouba um anjo que procura vender aos religiosos, e de humilhação em
humilhação aceita a ruína. Outro, Alberto, leva a vida a brincar e de esgar em
esgar efeminado, tropeça na sua própria infantilidade. Leopoldo, frustrado
escritor teatral, consome energias em textos medíocres que um velho actor
aceita ouvir ler, na esperança de ter uma aventura amorosa no final da noite.
De Riccardo, interpretado por um irmão de Fellini, pouco se sabe.
O ambiente
é asfixiante, por muito que os traços da comédia aqui e ali assomem. O humor de
Felllini não é condescendente, mas é de uma tocante humanidade. Aqueles “vitelloni”
são deserdados de um tempo, escombros de uma sociedade à deriva e o único
caminho possível é sair da cidade, procurar outros horizontes, arejar. É o que
faz Moraldo, sem destino, apenas em fuga de um terreno pantanoso onde sabe que,
mais cedo ou mais tarde, se irá afundar irremediavelmente. Quem sabe qual será
o seu futuro? Possivelmente poderá não ser muito melhor, mas pelo menos fica a
atitude, o esboço de revolta.
Fellini,
por exemplo, à semelhança de Moraldo, aos dezanove anos partiu de Rimini para
Roma, que o irá acolher e apadrinhar. Quando Moraldo sobe para o comboio e este
inicia a sua marcha, surge na estação o adolescente que ali trabalha e dele se
despede. Está ali para funcionar como garante da decisão de Moraldo. Mas a
partida deste está ainda ligada a um outro aspecto do filme que se afigura
muito significativo: o comboio afasta-se e este movimento liga-se a algumas
panorâmicas pelos quartos dos amigos que ficam para trás e que dormem nas suas
camas, indiferentes a tudo o mais. Eles e aquela pequena cidade continuarão a
ser os mesmos, embalados pelo cinzentismo e pela ociosidade. Moraldo, na sua
postura de observador algo distanciado, apesar de solidário em muito, parece
ser o único do grupo a tomar consciência da situação e do que o futuro lhes
poderia reservar.
De resto,
o filme mantém as obsessões fellinianas: as festas truculentas (aqui o carnaval
e o seu cortejo), o gosto pelo espectáculo e o teatro, o deambular pela cidade
e a sedução pela noite, o confronto entre a realidade e a fantasia (de que aqui
se alimentam os “vitelloni”, mas também a fantasia que permite a fuga e o sonho
derradeiros), o diálogo entre os inocentes mais ou menos explorados e os
manipuladores sem escrúpulos.
A
estrutura narrativa da obra é moderna no seu tempo, misturando acções diversas,
acompanhando histórias individuais e do grupo, antecipando assim alguma da
tonalidade dos filmes da “nouvelle vague” (Godard, Truffaut, etc.), do “free
cinema” (“Sábado à noite, Domingo de Manhã”, de Karel Reisz, “We Are the
Lambert Boys”, de Lindsay Anderson…) ou mesmo de algum cinema norte-americano
(George Lucas terá confessado que “Os Inúteis” terão influenciado o seu
“American Graffitti”).
Os actores
são magníficos, recortando personagens que se impõem facilmente, o que a música
de Nino Rota ajuda a cimentar, criando um ambiente de falsa alegria e de
profunda depressão. “Os Inúteis” acabará por ser o filme que marca a imposição
de Fellini como o grande realizador, o criador sem paralelo na história do
cinema, ao triunfar no Festival de Veneza, onde ganhou o Leão de Prata, em
1953. A partir daí, o seu caminho está traçado. Já o estava antes, para quem o
soubesse ver, mas o prémio de Veneza chamou a atenção para a sua obra de forma
inequívoca.
OS INÚTEIS
Título original: I
Vitelloni
Realização: Federico Fellini (Itália, França, 1953); Argumento:
Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli; Produção: Jacques Bar, Mario
De Vecchi, Lorenzo Pegoraro; Música: Nino Rota; Fotografia (p/b): Carlo
Carlini, Otello Martelli, Luciano Trasatti; Montagem: Rolando Benedetti; Design
de produção: Mario Chiari; Decoração: Luigi Giacosi; Guarda-roupa: Margherita
Marinari; Maquilhagem: Michele Bomarzi; Direcção de produção: Luigi Giacosi;
Assistentes de realização: Moraldo Rossi, Max de Vaucorbeil, Stefano Ubezio;
Departamento de arte: Italo Tomassi; Companhias de produção: Cité Films,
Peg-Films; Intérpretes: Franco
Interlenghi (Moraldo Rubini), Alberto Sordi (Alberto), Franco Fabrizi (Fausto
Moretti), Leopoldo Trieste (Leopoldo Vannucci), Riccardo Fellini (Riccardo),
Leonora Ruffo (Sandra Rubini), Jean Brochard (Francesco Moretti), Claude Farell
(Olga), Carlo Romano (Michele Curti), Enrico Viarisio (senhor Rubini), Paola
Borboni (senhora Rubini), Lída Baarová (Giulia Curti), Arlette Sauvage, Vira
Silenti, Maja Niles, Achille Majeroni, Guido Martufi, Silvio Bagolini, Milvia
Chianelli, Enzo Andronico, Alberto Anselmi, Gustavo De Nardo, Graziella De Roc,
Giovanna Galli, Franca Gandolfi, Lilia Landi, Gigetta Morano, Lino Toffolo,
Gondrano Trucchi, etc. Duração: 102
minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação
etária: M/ 12 anos.
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