terça-feira, 30 de dezembro de 2014

ROMA DE FELLINI


ROMA DE FELLINI (1972)

Fellini: “Roma criou-me; chegou agora a vez de eu criar Roma”.

Senhor omnipotente, “Deux ex-machina”, Fellini cria Roma à sua imagem e semelhança. Roma que, segundo a lenda, nasceu da loba, o verbo inicial donde saiu Rómulo e Remo. Da memória e da imaginação de Fellini brota Roma, uma cidade contraditória e turbulenta, puzzle múltiplo de imagens caóticas que o tempo traz e a câmara capta. Roma não é uma obra de vulgar ficção, com uma narrativa dramática envolvente. Trata-se antes de um longo monólogo de um homem que nos fala da cidade que ama, da cidade que o criou, da grande metrópole que o recebeu, à saída de um comboio, no ano de 1938. Dos tempos antigos, Fellini sabia o que a lenda e a escola lhe ensinaram. A Roma dos Césares e de Nero, com o Rubicão e o “alea jacta est”, com o “também tu, Brutus!”, a que se misturavam as imagens bélicas de Mussolini, encabeçando todas as paredes das salas de aula, espreitando com dureza debaixo de um granítico capacete militar. 

A Roma que Fellini vem encontrar participava do mito, mas encerrava outras realidades que os olhos do adolescente descobrem, como um enorme espectáculo de encantar. Desce do comboio e logo encontra um mar de gente estranha, exuberante e faladora, obesa e tonitruante, sôfrega de todos os prazeres, empanzinando-se nas “trattorias” de cada bairro, que se espraiava pelos largos passeios das ruas, atropelando com gritos e dichotes o tráfego. Aqui começa a galeria de tipos que irão povoar o universo felliniano. As gordas madonas, as cantoras de rua, os “latin lovers”, as prostitutas. São as crianças, deglutindo canelones ou investindo de espada de madeira contra a bagagem do viajante; as enormes famílias, que cerram fileiras para alcançarem um lugar nas primeiras filas das salas que exibem os grandes sucessos imperialistas do período mussoliniano (“Cipião, o Africano”, “Fabíola”, “Coroa de Ferro”, etc.), são os cantores improvisados, as “irmãs” fulano de tal, que berram melodias em voga (e o espectador amante de “trota cavalinho” que pede o “trecho da sua simpatia”...); são os rufiões impetuosos, agressivos e ingénuos daquela grande, grande cidade, e são as ilusões, as promessas, o desencanto, os recantos lúgubres, as vias da “perdição”, o grande teatro Jovinelli, o Raccordo Anulare, as praças, os monumentos, o Coliseu..., as imagens dos bilhetes-postais, das fotografias turísticas, a “dolce vita” de alguns, o desamparo, a tristeza, a promiscuidade de tantos. A indolência espapaçada, os alarmes aéreos, os bombardeamentos pela madrugada, a juventude fascista desfilando, os murmúrios carpidos, as lágrimas secretas de uma mãe de luto, a “epopeia dos vencedores”, a lamúria dos vencidos, um discurso torrencial, barroco, absorvente, uma conversa que prende quaIquer um, que o manieta, que o leva atrás de cada novo episódio, que passa da recordação de 38 para o documento de 72, que salta da nostálgica memória de um mundo em desagregação para a visão sonhada de uma cidade mãe. A Roma decadente, a Roma sôfrega, a Roma apocalíptica, com temporal, vento, chuva, fumo, lama, prostitutas e travestis nas bermas da estrada, hippies e manifestantes, a Roma da repressão, do “arriverdeci Roma”, uma cidade desfeita, refeita...


Um discurso suscitando outros discursos, um monólogo chamando ao debate, uma conversa que pede interlocutor. Roma de Fellini é, assim, um encadeado de várias sequências, algumas delas notáveis, onde o humor e o grotesco, o poético e o espectacular, a realidade e a fantasia se argamassam. Um olhar de Fellini sobre uma cidade que o viu crescer. Um olhar que é também, ou sobretudo, um olhar ao espelho: Fellini menino, nos bancos de um colégio fradesco; Fellini adolescente, violando a cidade aberta; Fellini-actual, filmando em ruas e praças, colhendo povo e intérpretes, criando e recriando a cidade, criando-se e recriando-se a si. E nós todos, que ali nos surpreendemos. O dilúvio da entrada em Roma; a reconstituição do teatro Jovinelli; a sessão de cinema com “Cipião”, ou quejando; a chegada de Fellini a Roma, em 38; a visita ao metropolitano, com a descoberta dos frescos, que se apagam perante o contacto do ar do exterior, estas, entre algumas mais que nos foi dado ver, são sequências de eleição, que definem um estilo e afirmam um cineasta, um demiurgo.


ROMA DE FELLINI
Título original: Roma 

Realização: Federico Fellini (Itália, França, 1972); Argumento: Federico Fellini, Bernardino Zapponi; Produção: Turi Vasile; Música: Nino Rota; Fotografia (cor): Giuseppe Rotunno; Montagem: Ruggero Mastroianni; Design de produção: Danilo Donati; Decoração: Andrea Fantacci; Guarda-roupa: Danilo Donati; Maquilhagem: Rino Carboni, Amalia Paoletti; Direcção de produção: Alessandro Gori, Danilo Marciani, Lamberto Pippia, Fernando Rossi, Alessandro Sarti; Assistentes de realização: Tonino Antonucci, Maurizio Mein, Paolo Pietrangeli; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Renato Cadueri; Companhias de produção: Ultra Film, Les Productions Artistes Associés; Intérpretes: Peter Gonzales Falcon (Fellini, 18 anos), Fiona Florence (Dolores), Britta Barnes, Pia De Doses (Princesa Domitilla), Marne Maitland (Guia nas Catacumbas), Renato Giovannoli (Cardeal Ottaviani), Elisa Mainardi, Raout Paule, Galliano Sbarra (Compére), Paola Natale, Ginette Marcelle Bron, Mario Del Vago, Alfredo Adami, Stefano Mayore (Fellini, criança), Sbarra Adami, Ennio Antonelli, Bireno, Feodor Chaliapin Jr., Gianluigi Chirizzi, Dennis Christopher, Dante Cleri, Nancy Cohen, Angela De Leo, Maria De Sisti, Francesco Di Giacomo, Andrea Fantasia, Federico Fellini, Libero Frissi, Norma Giacchero, Veriano Ginesi, Eleonora Giorgi, Gudrun Mardou Khiess, John Francis Lane, Anna Magnani, Franco Magno, Loredana Martínez, Marcello Mastroianni, Elliott Murphy, Anna Maria Pescatori, Cassandra Peterson, Mimmo Poli, Alessandro Quasimodo, Domenico Ravenna, Giovanni Serboli, Alberto Sordi, Guglielmo Spoletini, Nino Terzo, Gore Vidal, Alvaro Vitali, Renato Zero, etc. Duração: 128 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Data de estreia em Portugal: 23 de Março de 1973.   

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