ROMA DE FELLINI (1972)
Fellini:
“Roma criou-me; chegou agora a vez de eu criar Roma”.
Senhor
omnipotente, “Deux ex-machina”, Fellini cria Roma à sua imagem e semelhança.
Roma que, segundo a lenda, nasceu da loba, o verbo inicial donde saiu Rómulo e Remo.
Da memória e da imaginação de Fellini brota Roma, uma cidade contraditória e
turbulenta, puzzle múltiplo de imagens caóticas que o tempo traz e a câmara
capta. Roma não é uma obra de vulgar ficção, com uma narrativa dramática
envolvente. Trata-se antes de um longo monólogo de um homem que nos fala da
cidade que ama, da cidade que o criou, da grande metrópole que o recebeu, à
saída de um comboio, no ano de 1938. Dos tempos antigos, Fellini sabia o que a
lenda e a escola lhe ensinaram. A Roma dos Césares e de Nero, com o Rubicão e o
“alea jacta est”, com o “também tu, Brutus!”, a que se misturavam as imagens
bélicas de Mussolini, encabeçando todas as paredes das salas de aula,
espreitando com dureza debaixo de um granítico capacete militar.
A Roma que Fellini
vem encontrar participava do mito, mas encerrava outras realidades que os olhos
do adolescente descobrem, como um enorme espectáculo de encantar. Desce do
comboio e logo encontra um mar de gente estranha, exuberante e faladora, obesa
e tonitruante, sôfrega de todos os prazeres, empanzinando-se nas “trattorias”
de cada bairro, que se espraiava pelos largos passeios das ruas, atropelando
com gritos e dichotes o tráfego. Aqui começa a galeria de tipos que irão povoar
o universo felliniano. As gordas madonas, as cantoras de rua, os “latin
lovers”, as prostitutas. São as crianças, deglutindo canelones ou investindo de
espada de madeira contra a bagagem do viajante; as enormes famílias, que cerram
fileiras para alcançarem um lugar nas primeiras filas das salas que exibem os
grandes sucessos imperialistas do período mussoliniano (“Cipião, o Africano”,
“Fabíola”, “Coroa de Ferro”, etc.), são os cantores improvisados, as “irmãs”
fulano de tal, que berram melodias em voga (e o espectador amante de “trota
cavalinho” que pede o “trecho da sua simpatia”...); são os rufiões impetuosos,
agressivos e ingénuos daquela grande, grande cidade, e são as ilusões, as
promessas, o desencanto, os recantos lúgubres, as vias da “perdição”, o grande
teatro Jovinelli, o Raccordo Anulare, as praças, os monumentos, o Coliseu...,
as imagens dos bilhetes-postais, das fotografias turísticas, a “dolce vita” de
alguns, o desamparo, a tristeza, a promiscuidade de tantos. A indolência
espapaçada, os alarmes aéreos, os bombardeamentos pela madrugada, a juventude
fascista desfilando, os murmúrios carpidos, as lágrimas secretas de uma mãe de
luto, a “epopeia dos vencedores”, a lamúria dos vencidos, um discurso
torrencial, barroco, absorvente, uma conversa que prende quaIquer um, que o
manieta, que o leva atrás de cada novo episódio, que passa da recordação de 38
para o documento de 72, que salta da nostálgica memória de um mundo em
desagregação para a visão sonhada de uma cidade mãe. A Roma decadente, a Roma
sôfrega, a Roma apocalíptica, com temporal, vento, chuva, fumo, lama,
prostitutas e travestis nas bermas da estrada, hippies e manifestantes, a Roma
da repressão, do “arriverdeci Roma”, uma cidade desfeita, refeita...
Um
discurso suscitando outros discursos, um monólogo chamando ao debate, uma
conversa que pede interlocutor. Roma de Fellini é, assim, um encadeado de
várias sequências, algumas delas notáveis, onde o humor e o grotesco, o poético
e o espectacular, a realidade e a fantasia se argamassam. Um olhar de Fellini
sobre uma cidade que o viu crescer. Um olhar que é também, ou sobretudo, um
olhar ao espelho: Fellini menino, nos bancos de um colégio fradesco; Fellini
adolescente, violando a cidade aberta; Fellini-actual, filmando em ruas e
praças, colhendo povo e intérpretes, criando e recriando a cidade, criando-se e
recriando-se a si. E nós todos, que ali nos surpreendemos. O dilúvio da entrada
em Roma; a reconstituição do teatro Jovinelli; a sessão de cinema com “Cipião”,
ou quejando; a chegada de Fellini a Roma, em 38; a visita ao metropolitano, com
a descoberta dos frescos, que se apagam perante o contacto do ar do exterior,
estas, entre algumas mais que nos foi dado ver, são sequências de eleição, que
definem um estilo e afirmam um cineasta, um demiurgo.
ROMA DE FELLINI
Título original: Roma
Realização: Federico
Fellini (Itália, França, 1972); Argumento: Federico Fellini, Bernardino
Zapponi; Produção: Turi Vasile; Música: Nino Rota; Fotografia (cor): Giuseppe
Rotunno; Montagem: Ruggero Mastroianni; Design de produção: Danilo Donati; Decoração:
Andrea Fantacci; Guarda-roupa: Danilo Donati; Maquilhagem: Rino Carboni, Amalia
Paoletti; Direcção de produção: Alessandro Gori, Danilo Marciani, Lamberto
Pippia, Fernando Rossi, Alessandro Sarti; Assistentes de realização: Tonino
Antonucci, Maurizio Mein, Paolo Pietrangeli; Departamento de arte: Italo
Tomassi; Som: Renato Cadueri; Companhias de produção: Ultra Film, Les
Productions Artistes Associés; Intérpretes:
Peter Gonzales Falcon (Fellini, 18 anos), Fiona Florence (Dolores), Britta
Barnes, Pia De Doses (Princesa Domitilla), Marne Maitland (Guia nas
Catacumbas), Renato Giovannoli (Cardeal Ottaviani), Elisa Mainardi, Raout
Paule, Galliano Sbarra (Compére), Paola Natale, Ginette Marcelle Bron, Mario
Del Vago, Alfredo Adami, Stefano Mayore (Fellini, criança), Sbarra Adami, Ennio
Antonelli, Bireno, Feodor Chaliapin Jr., Gianluigi Chirizzi, Dennis
Christopher, Dante Cleri, Nancy Cohen, Angela De Leo, Maria De Sisti, Francesco
Di Giacomo, Andrea Fantasia, Federico Fellini, Libero Frissi, Norma Giacchero,
Veriano Ginesi, Eleonora Giorgi, Gudrun Mardou Khiess, John Francis Lane, Anna
Magnani, Franco Magno, Loredana Martínez, Marcello Mastroianni, Elliott Murphy,
Anna Maria Pescatori, Cassandra Peterson, Mimmo Poli, Alessandro Quasimodo,
Domenico Ravenna, Giovanni Serboli, Alberto Sordi, Guglielmo Spoletini, Nino
Terzo, Gore Vidal, Alvaro Vitali, Renato Zero, etc. Duração: 128 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos;
Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Data de estreia em Portugal:
23 de Março de 1973.
Sem comentários:
Enviar um comentário