terça-feira, 30 de dezembro de 2014

AMARCORD


AMARCORD (1973)

“Amarcord” é uma crónica da memória, como tal escrita na primeira pessoa do singular. O próprio título do filme (uma amálgama de dois termos: "amar" e "memória") parece indicar a predominante visão singular (o resíduo de um tempo numa memória) e uma emoção pessoal (amar). “Amarcord” refere recordações de infância e adolescência que marcaram uma personalidade (a de Fellini), e a ordenação convulsiva da memória, feita de episódios ligados (e desligados) por uma corrente, cujo significado ultrapassa a própria obra e se terá de ir encontrar no íntimo do próprio autor. Uma ordenação que se expressa numa linguagem cinematográfica pelo encadeado/montagem de sequências (cada uma delas constituindo um pequeno todo, valendo por si só, núcleos esses que geram um significado mais vasto, integrados num núcleo global) que permite restituir um tempo e um local determinado: uma pequena cidade da província italiana (Rimini, ao que se supõe, cidade natal de Fellini, durante o período do fascismo.
Fellini, na sua deambulação pela memória, não pactua com o silêncio, não recua perante nada: se as recordações são graves ou grotescas, se as situações roçam a (aparente, só aparente) vulgaridade, se é jocoso ou ridículo o ambiente, tudo nos é restituído por uma óptica francamente galvanizadora. O cabotinismo de Fellini é evidente, à medida da sua desmedida. O que se aceita em quem é efectivamente muito grande para não permitir comparações, para as ultrapassar, para se situar acima de acusações deslocadas. Depois, personagens e situações galopam à conquista do público. Uma conquista que não implica a abdicação do espectador, mas muito pelo contrário. Fellini conquista o público, acordando-o (melhor diríamos, na ocorrência, recordando-o). É o tempo do fascismo com a prepotência do interrogatórios, a histeria da violência, a brutalidade da exploração, mas também é o tempo do risível fascismo ao nível das paradas militares a trote, do fascismo quotidiano de um ensino mediavalesco, numa pequena cidade de província, onde os conflitos sociais e políticos, se bem que agravados por um lado, se amenizam numa convivência que é de todos, como de todos é Gradisca.
A crónica parece escrita em tons menores, mas subitamente temos diante de nós um temível painel de uma época brutal. E, por detrás dessa brutalidade, os rostos de homens e mulheres, de crianças e velhos, de loucos e prostitutas, de tocadores de acordeão ou de príncipes decadentes, todos eles na enorme fragilidade de uma condição humana, aqui e ali vilipendiada e terrivelmente ofendida, mas intocável no que de essencial encerra: a enorme ternura que uns olhos despertam, a majestosa gravidade de um grito louco. A amargura da procurada felicidade por caminhos tortuosos, a difícil aprendizagem do ofício de homem. 


Julgamos que este é um dos grandes filmes de Fellini, uma das suas obras-primas indiscutíveis. O cineasta encontra-se em grande forma, o seu discurso aparentemente caótico é admirável de espontaneidade e observação, numa projecção, diríamos psicanalítica, de uma reconstrução desordenada do inconsciente. As figuras que vai encontrando/ recordando/criando são inesquecíveis, as situações que se sucedem assemelham-se a quadros de uma fulgurante revista de variedades. Fellini prolonga as suas feéries de “8 ½” ou de “Roma”, profundamente pessoais, mas vai mais longe, a “Os Inúteis”, por exemplo, recriando momentos da sua aventura pessoal até aí na sombra. Conhecemos agora os “vitelloni” em adolescentes, em redor de Titta, que é obviamente um alter-ego de Fellini, ao mesmo tempo que é uma recordação de um colega seu de escola, Luigi Banzi, filho de um truculento anarquista, sobrinho de um tio louco, que sobe às árvores a gritar que quer uma mulher, e neto de um avô que gosta de passar a mão pelos rabos das criadas.


O filme foi quase todo rodado no estúdio 5 da Cinecittá, conferindo-lhe esse lado de memória reconstruída que tão bem lhe assenta e o define. O realismo não impera, substituído por um imaginário mais real que a realidade, como Fellini gostava de afirmar. O cineasta oferece-nos simultaneamente o retrato de uma província italiana durante o período fascista, e a sua crítica, grotesca ou caricatural. Os grandes núcleos da sociedade são escalpelizados, a política, a família, a religião, o poder económico, a sexualidade.
A mulher, mais uma vez, ocupa destacado lugar, com a presença de luxuriantes representantes, como Gradisca, que todos cobiçam e acaba por casar com um militar, Volpina, que a todos se oferece, ou a dona de uma mercearia/tabacaria, que simboliza a exacerbada sexualidade dos adolescentes. Mas há também a mãe de Titta, repressiva e maternal. A religião não é esquecida, com as divertidas confissões, ou a presença de uma freira anã. Os militares e os políticos são causticados, pelas cenas de tortura, pelas marchas grotescas, pela homenagem ao político fascista de visita a Rimini. O cinema e o teatro não deixam de surgir, como momentos de evasão. O mar, o pontão a sinalizá-lo, o navio (o “Grand Rex”, o maior navio da Itália fascista), como mito de uma Itália imperial, são outros momentos a referir.
Justificadamente, “Amarcord” arrecadou o Oscar de Melhor Filme em Língua não Inglesa e o sucesso público do filme foi imenso. 


AMARCORD
Título original: Amarcord

Realização: Federico Fellini (Itália, França, 1973); Argumento: Federico Fellini, Tonino Guerra; Produção: Franco Cristaldi; Música: Nino Rota; Fotografia (cor): Giuseppe Rotunno; Montagem: Ruggero Mastroianni; Design de produção: Danilo Donati; Direcção artística: Giorgio Giovannini; Guarda-roupa: Danilo Donati; Maquilhagem: Rino Carboni, Amalia Paoletti; Direcção de produção: Alessandro Gori, Lamberto Pippia, Gilberto Scarpellini; Assistentes de realização: Liliane Betti, Mario Garriba, Maurizio Mein, Gerald Morin; Departamento de arte: Andrea Fantacci, Italo; Som: Oscar De Arcangelis; Efeitos especiais: Adriano Pischiutta; Companhias de produção: F.C. Produzioni, PECF;Intérpretes: Pupella Maggio (Miranda Biondi, mãe de Titta), Armando Brancia (Aurelio Biondi, pai de Titta), Magali Noël (Gradisca), Ciccio Ingrassia (Teo), Nando Orfei (Patacca), Luigi Rossi (advogado), Bruno Zanin (Titta Biondi), Gianfilippo Carcano (Don Baravelli), Josiane Tanzilli (Volpina), Maria Antonietta Beluzzi, Giuseppe Ianigro, Ferruccio Brembilla (chefe fascista), Antonino Faà di Bruno (Conde Lovignano), Mauro Misul (professor de filosofia), Ferdinando Villella (Fighetta), Antonio Spaccatini (polícia), Aristide Caporale (Giudizio), Gennaro Ombra (Biscein), Domenico Pertica (cego), Marcello Di Falco (o Principe), Stefano Proietti (Oliva), Alvaro Vitali (Naso), Bruno Scagnetti (Ovo), Fernando De Felice (Ciccio), Bruno Lenzi (Gigliozzi), Gianfranco Marrocco, Francesco Vona, Donatella Gambini, Dina Adorni, Paolo Baroni, Bruno Bertocci, Marcello Bonini Olas, Dante Cleri, Mario Del Vago, Francesco Di Giacomo, Dario Giacomelli, Veriano Ginesi, Mario Liberati, Franco Magno, Cesare Martignon, Francesco Maselli, Lino Patruno, Fredo Pistoni, Eros Ramazzotti, Faustone Signoretti, Mario Silvestri, Fides Stagni, etc. Duração: 123 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos (DVD), M/ 17 anos (estreia de cinema); Distribuição em Portugal (DVD): Warner; Data de estreia em Portugal: 19 de Setembro de 1974.  

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