terça-feira, 30 de dezembro de 2014

JULIETA DOS ESPÍRITOS


JULIETA DOS ESPÍRITOS (1965)

Com “Julieta dos Espíritos” Fellini converte-se à cor. Esta é a sua primeira longa-metragem colorida e, simultaneamente, um filme dedicado à mulher, sobretudo a Giulietta Masina, sua companheira na vida real e sua actriz preferencial. Enquanto preparava esta obra, Fellini disse: “Giulietta é um caso especial. Ela não é apenas a artista principal de muitos dos meus filmes, é também, de uma maneira muito subtil, a inspiradora deles. Isto é compreensível porque ela é também a minha companheira de toda a vida. Giulietta, repito, não é a cara que escolhi, mas a verdadeira alma do filme. Por isso, no caso dos filmes de Giulietta, o tema é ela própria”. Em todos os filmes interpretados por ela sob a orientação de Fellini, isto é verdade, mas em “Julieta dos Espíritos” essa parece ser a essência do filme. Dir-se-ia que Fellini, depois de ter feito o seu “8 ½”, procurou algo de muito semelhante em relação a sua mulher. Com algumas alterações que tornam radicalmente diferentes as obras e os resultados finais. “8 ½” é um filme de um homem, de um cineasta, que se auto-analisa, “Julieta dos Espíritos” continua a ser um filme de um homem, de um cineasta, que tenta olhar o universo de uma mulher. Um é concebido de dentro para fora, o outro, inversamente, de fora para dentro. No primeiro sente-se a sinceridade do sujeito que se oferece em espectáculo, no segundo o que ressalta são as justificações de quem olha o objecto olhado.


Fellini olha Giulietta, a protagonista, como uma mulher na casa dos 40 anos, bloqueada por um marido relativamente ausente, Giorgio, rodeada por um conjunto de mulheres que se comportam de forma muito diferente da dela, algumas libertas e independentes, outras falsamente emancipadas. Vive numa casa de sonho, com empregadas, jardins e piscinas, numa existência desafogada e aparentemente sem problemas, quando começa a desconfiar que o marido lhe é infiel. O que a leva a olhar para si própria, para o seu passado e presente, para os fantasmas que a consomem, sobretudo uma sexualidade reprimida, que ela descobre solta nalgumas amigas, o que a transtorna. Recorda a infância, a figura do avô que ela venera, a educação religiosa, a mãe fútil, as festas teatrais onde intervém… Procura um médium para se conhecer melhor, um detective para provar as suas suspeitas quanto ao marido, sente-se atraída por um amigo da casa, espanhol, amante de touradas, embrenha-se por um bosque com duas amigas que procuram aventuras sexuais inconsequentes (entre elas, Sandra Milo que em “8 ½” já era a amante do cineasta), vagueia entre a realidade e a fantasia, o sonho e as recordações. Tal como em “8 ½”, a narrativa não é linear, está longe de ser romanesca, vive de episódios evocados, de momentos, de estados de espírito.


A um momento “realista”, como, por exemplo,  a despedida de Giorgio, que vai viajar, que afirma que quando chegar telefona, sucedem-se sequências simbólicas, (fecham-se as portas de casa que abrem para o jardim, Julieta parece encerrada na sua solidão), imagens grotescas de barcos e aviões que o avô comanda, visões crípticas, sugestões reais ou imaginadas… Em “8 ½” era Marcello Mastroianni quem interpretava a figura de Federico Fellini, em crise de inspiração numas termas onde prepara o seu próximo filme; em “Julieta dos Espíritos”, é Giulietta Masina quem revive esta efervescente féerie do marido. É Fellini puro, não temos dúvidas. Mas o Fellini de “8 ½” fala do que sente, e o Fellini de “Julieta dos Espíritos” divaga sobre o que julga que uma mulher sente. O primeiro é de uma sinceridade enternecedora, o segundo aparece-nos demasiado construído, artificial. È, quanto a nós, o menos interessante dos filmes de Fellini. Giulietta Massina é uma excelente actriz, como sempre, mas alguns furos abaixo de “A Estrada” ou “As Noites de Cabiria”, e a fotografia de Gianni Di Venanzo é de sublinhar, apesar dos resultados, ao nível da cor, não nos parecerem bem resolvidos. A estridência do colorido chega a doer.
Fellini sentiu-se magoado com a recepção nada entusiástica reservada pela crítica e pelo público a esta obra. O que só mostra que até os génios têm momentos menos felizes. Mas o filme poderá ter tido um efeito positivo. Não se sabe de ciência certa, mas os boatos abundavam na altura quanto a uma possível crise afectiva entre o casal Fellini-Masina. O que o filme terá ajudado a debelar. O casamento permaneceu até à morte de Fellini, em 1993, a que se seguiu, meses depois, já em 1994, a de Masina. Um casamento que, pode bem dizer-se, durou até que a morte os separou. Por pouco tempo.

JULIETA DOS ESPÍRITOS (1965)
Título original: Giulietta degli Spiriti 

Realização: Federico Fellini (Itália, França, 1965); Argumento: Federico Fellini, Tullio Pinelli, Ennio Flaiano, Brunello Rondi; Produção: Henry Deutschmeister, Clemente Fracassi, Angelo Rizzoli; Música: Nino Rota; Fotografia (cor): Gianni Di Venanzo; Montagem: Ruggero Mastroianni; Design de produção: Giantito Burchiellaro, Luciano Ricceri, E. Benazzi Taglietti; Drecção artística: Piero Gherardi; Decoração: Vito Anzalone; Guarda-roupa: Piero Gherardi; Casting: Jose Villaverde; Maquilhagem: Otello Fava, Marisa Fraticelli, Renata Magnanti, Eligio Trani; Direcção de produção: Mario Basili, Walter Benelli, Alessandro von Norman; Assistente de realização: Francesco Aluigi; Departamento de arte: Francesco Cuppini; Som: Mario Faraoni, Mario Morigi: Companhias de produção: Rizzoli Film, Francoriz Production; Intérpretes: Giulietta Masina (Giulietta Boldrini), Sandra Milo (Suzy / Iris / Fanny), Mario Pisu (Giorgio), Valentina Cortese (Valentina), Valeska Gert (Pijma), José Luis de Vilallonga (amigo de Giorgio), Friedrich von Ledebur (Medium), Caterina Boratto (mãe de Giulietta), Lou Gilbert (avõ), Luisa Della Noce (Adele), Silvana Jachino (Dolores), Milena Vukotic, Fred Williams, Dany París, Anne Francine, Sylva Koscina, Elena Fondra, George Ardisson, Genius, Elisabetta Gray, Alberto Plebani, Yvonne Casadei, Mario Conocchia, Federico Valli, Asoka Rubener, Alba Cancellieri, Sujata Rubener, Alberto Cevenini, Cesarino Miceli Picardi, etc. Duração: 137 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Data de estreia em Portugal: 3 de Novembro de 1965.

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