JULIETA DOS ESPÍRITOS (1965)
Com
“Julieta dos Espíritos” Fellini converte-se à cor. Esta é a sua primeira
longa-metragem colorida e, simultaneamente, um filme dedicado à mulher,
sobretudo a Giulietta Masina, sua companheira na vida real e sua actriz preferencial.
Enquanto preparava esta obra, Fellini disse: “Giulietta é um caso especial. Ela
não é apenas a artista principal de muitos dos meus filmes, é também, de uma
maneira muito subtil, a inspiradora deles. Isto é compreensível porque ela é
também a minha companheira de toda a vida. Giulietta, repito, não é a cara que
escolhi, mas a verdadeira alma do filme. Por isso, no caso dos filmes de
Giulietta, o tema é ela própria”. Em todos os filmes interpretados por ela sob
a orientação de Fellini, isto é verdade, mas em “Julieta dos Espíritos” essa
parece ser a essência do filme. Dir-se-ia que Fellini, depois de ter feito o
seu “8 ½”, procurou algo de muito semelhante em relação a sua mulher. Com
algumas alterações que tornam radicalmente diferentes as obras e os resultados
finais. “8 ½” é um filme de um homem, de um cineasta, que se auto-analisa,
“Julieta dos Espíritos” continua a ser um filme de um homem, de um cineasta,
que tenta olhar o universo de uma mulher. Um é concebido de dentro para fora, o
outro, inversamente, de fora para dentro. No primeiro sente-se a sinceridade do
sujeito que se oferece em espectáculo, no segundo o que ressalta são as
justificações de quem olha o objecto olhado.
Fellini
olha Giulietta, a protagonista, como uma mulher na casa dos 40 anos, bloqueada
por um marido relativamente ausente, Giorgio,
rodeada por um conjunto de mulheres que se comportam de forma muito diferente
da dela, algumas libertas e independentes, outras falsamente emancipadas. Vive
numa casa de sonho, com empregadas, jardins e piscinas, numa existência
desafogada e aparentemente sem problemas, quando começa a desconfiar que o
marido lhe é infiel. O que a leva a olhar para si própria, para o seu passado e
presente, para os fantasmas que a consomem, sobretudo uma sexualidade
reprimida, que ela descobre solta nalgumas amigas, o que a transtorna. Recorda
a infância, a figura do avô que ela venera, a educação religiosa, a mãe fútil,
as festas teatrais onde intervém… Procura um médium para se conhecer melhor, um
detective para provar as suas suspeitas quanto ao marido, sente-se atraída por
um amigo da casa, espanhol, amante de touradas, embrenha-se por um bosque com
duas amigas que procuram aventuras sexuais inconsequentes (entre elas, Sandra
Milo que em “8 ½” já era a amante do cineasta), vagueia entre a realidade e a
fantasia, o sonho e as recordações. Tal como em “8 ½”, a narrativa não é
linear, está longe de ser romanesca, vive de episódios evocados, de momentos,
de estados de espírito.
A um
momento “realista”, como, por exemplo, a
despedida de Giorgio, que vai viajar, que afirma que quando chegar telefona,
sucedem-se sequências simbólicas, (fecham-se as portas de casa que abrem para o
jardim, Julieta parece encerrada na sua solidão), imagens grotescas de barcos e
aviões que o avô comanda, visões crípticas, sugestões reais ou imaginadas… Em
“8 ½” era Marcello Mastroianni quem interpretava a figura de Federico Fellini,
em crise de inspiração numas termas onde prepara o seu próximo filme; em
“Julieta dos Espíritos”, é Giulietta Masina quem revive esta efervescente
féerie do marido. É Fellini puro, não temos dúvidas. Mas o Fellini de “8 ½”
fala do que sente, e o Fellini de “Julieta dos Espíritos” divaga sobre o que
julga que uma mulher sente. O primeiro é de uma sinceridade enternecedora, o
segundo aparece-nos demasiado construído, artificial. È, quanto a nós, o menos
interessante dos filmes de Fellini. Giulietta Massina é uma excelente actriz,
como sempre, mas alguns furos abaixo de “A Estrada” ou “As Noites de Cabiria”, e
a fotografia de Gianni Di Venanzo é de sublinhar, apesar dos resultados, ao
nível da cor, não nos parecerem bem resolvidos. A estridência do colorido chega
a doer.
Fellini
sentiu-se magoado com a recepção nada entusiástica reservada pela crítica e
pelo público a esta obra. O que só mostra que até os génios têm momentos menos
felizes. Mas o filme poderá ter tido um efeito positivo. Não se sabe de ciência
certa, mas os boatos abundavam na altura quanto a uma possível crise afectiva
entre o casal Fellini-Masina. O que o filme terá ajudado a debelar. O casamento
permaneceu até à morte de Fellini, em 1993, a que se seguiu, meses depois, já
em 1994, a de Masina. Um casamento que, pode bem dizer-se, durou até que a
morte os separou. Por pouco tempo.
JULIETA DOS ESPÍRITOS (1965)
Título original: Giulietta degli
Spiriti
Realização: Federico
Fellini (Itália, França, 1965); Argumento: Federico Fellini, Tullio Pinelli,
Ennio Flaiano, Brunello Rondi; Produção: Henry Deutschmeister, Clemente
Fracassi, Angelo Rizzoli; Música: Nino Rota; Fotografia (cor): Gianni Di
Venanzo; Montagem: Ruggero Mastroianni; Design de produção: Giantito
Burchiellaro, Luciano Ricceri, E. Benazzi Taglietti; Drecção artística: Piero
Gherardi; Decoração: Vito Anzalone; Guarda-roupa: Piero Gherardi; Casting: Jose
Villaverde; Maquilhagem: Otello Fava, Marisa Fraticelli, Renata Magnanti,
Eligio Trani; Direcção de produção: Mario Basili, Walter Benelli, Alessandro
von Norman; Assistente de realização: Francesco Aluigi; Departamento de arte: Francesco
Cuppini; Som: Mario Faraoni, Mario Morigi: Companhias de produção: Rizzoli
Film, Francoriz Production; Intérpretes:
Giulietta Masina (Giulietta Boldrini), Sandra Milo (Suzy / Iris / Fanny), Mario
Pisu (Giorgio), Valentina Cortese (Valentina), Valeska Gert (Pijma), José Luis
de Vilallonga (amigo de Giorgio), Friedrich von Ledebur (Medium), Caterina
Boratto (mãe de Giulietta), Lou Gilbert (avõ), Luisa Della Noce (Adele),
Silvana Jachino (Dolores), Milena Vukotic, Fred Williams, Dany París, Anne Francine,
Sylva Koscina, Elena Fondra, George Ardisson, Genius, Elisabetta Gray, Alberto
Plebani, Yvonne Casadei, Mario Conocchia, Federico Valli, Asoka Rubener, Alba
Cancellieri, Sujata Rubener, Alberto Cevenini, Cesarino Miceli Picardi, etc. Duração: 137 minutos; Classificação
etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Data de
estreia em Portugal: 3 de Novembro de 1965.
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