FEDERICO FELLINI (1920-1993)
A biografia de Federico Fellini está
cheia de incertezas, em parte por causa do próprio cineasta, que por vezes inventava episódios da sua vida. Terá
nascido a 20 de Janeiro de 1920, em Rimini (Itália), filho de Ida Barbiano e de
Urbano Fellini. Dois irmãos mais novos: Ricardo e Maddalena. Fala-se de um
colégio religioso que haveria de marcar toda a sua adolescência e vincar um
anticlericalismo que se encontra presente em grande parte da sua obra
cinematográfica. Diz-se que frequentou a escola das Irmãs de San Vicenzo,
depois a escola primária Teatini. Mais tarde, em 1930, entra para o
Gimnasio-Liceo Giulio Cesare, localizado perto do Grande Hotel de Rimini. É seu
colega aquele que ficará conhecido por Titta e que ira ser a grande influência
de “Amarcord”. Desde muito novo que ama o circo e se interessa pela caricatura.
Durante um acampamento das Juventudes Fascistas, em Verrucchio, desenha várias
caricaturas de participantes. Em 1937, o dono do Cinema Fulgor, encomenda-lhe uma
série de caricaturas de actores americanos. Publica depois desenhos no
semanário “La Domenica del Corriere” e no satírico “Nerbini”. Em 1939, chega a
Roma, inscreve-se em Direito, mas não é aceite.
Durante a guerra desenhou alguns episódios famosos de histórias
em quadradinhos e colabora na rádio em programas humorísticos. Trabalhou também
como jornalista. Encontra Giuletta Masina com quem casa a 30 de Outubro de
1943. Entretanto, em 1940, torna-se gagman de Aldo Fabrizzi e de um dos
primeiros actores cómicos italianos, célebre na época, Macario (com quem
trabalha em filmes dirigidos por Mario Mattoli). Em 1945, aparece como
assistente de Roberto Rossellini, em “Roma, Città Aperta”. Nasce um filho que
morre precocemente, devido a insuficiência respiratória. Colabora em inúmeros
argumentos, é assistente de realização, continuando o seu trabalho como
jornalista, humorista, caricaturista.
No ano seguinte, de novo com Rossellini, colabora em
“Paisá”, é co-argumentista de “II Crime di Giovanni Episcopo”, de Alberto
Lattuada. Em 1947, volta a trabalhar com Lattuada: “Sensa Pietá”. Rossellini
chama-o, em 1948, para “Amore”. É assistente de Lattuada, em “II Miulino del
Pó” e de Rossellini em “Francesco Giullare di Dio”. Em 1950, aparece como
assistente de Pietro Germi, em “II Camino della Speranza” e, com Lattuada,
co-dirige o seu primeiro filme: “Luci del Varietà”. Um ano depois, colabora em
“Europa 51”, de Rossellini e em 1952 assiste novamente a Germi, em “II Brigante
di Tasca del Lupo”. “O Sheik Branco”, em 1951, é o seu primeiro filme como
realizador, a solo. Inicia a sua colaboração com Nino Rota. Recebe o Leão de
Prata com “Os Inúteis”, em Veneza, e repete o sucesso com “A Estrada”, com que
recebe o seu primeiro Oscar. “As Noites de Cabíria” arrecada segundo Oscar, e
“Fellini 8 ½” o terceiro. Entretanto, “A Doce Vida” é um sucesso brilhante,
recebendo a Palma de Ouro de Cannes.
Em 1961, conhece o psicanalista Ernest Bernhard e
apaixona-se pelas teorias de Jung, que o influenciarão nos seus filmes futuros.
Em 1967, ultrapassa um enfarte, depois de algum tempo hospitalizado.
“Amarcord”, em 1972, traz-lhe um novo Oscar, de Melhor Filme em Língua não
Inglesa. Entretanto, o seu cinema oscila entre a superprodução e o filme de
pequeno orçamento, entre “Satiricon”, “Roma”, “Casanova”, “A Cidade das
Mulheres” e “Os Palhaços”, “O Navio”, “Ensaio de Orquestra” ou “A Voz da Lua”,
seu derradeiro filme. Em 1979 morre Nino Rota, o que Fellini sente
profundamente. Caricatura a televisão de Berlusconi em “Ginger e Fred” e sofre
novo ataque cardíaco em 1985.
1993: recebe um Oscar honorífico por toda a carreira. Em
Agosto, sofre, em Rimini, uma embolia cerebral. O ataque repete-se em Roma,
tempos depois. Morre a 31 de Outubro. A câmara ardente é instalada num dos
estúdios da Cinecittá. No ano seguinte, a 23 de Março, morre Giulietta Masina.
Com Visconti, Rossellini, Lattuada, De Sica, Germi e
alguns mais, é um dos impulsionadores da primeira época do neo-realismo, que
nos anos de 40 e inícios dos 50, no pós-guerra, devolveria ao cinema italiano
uma dignidade estética e, sobretudo, ética que restauraria o prestígio perdido
e influenciaria toda a cinematografia moderna. A partir de início dos anos 60,
torna-se num dos mestres do cinema mundial, com uma filmografia não muito
extensa, mas de uma coerência e significado indesmentíveis.
Filmografia
Como gagman de Macario e Mario Mattoli
1938: Lo Vedi come soi., Lo Vedi come sei?!, de Mario
Mattoli
1940: Non me Lo direi!, de Mario Mattoli
1940: Il pirata Sono io!, de Mario Mattoli
Como argumentista (quase sempre
co-argumentista)
1939: Imputato, Alzatevi!, de Mario Mattoli
1941: Documento Z3, de Alfredo Guarini (não creditado no
genérico)
1942: Avanti c'è Posto, de Mario Bonnard (não creditado
no genérico)
1942: I Cavalieri del Deserto, de Gino Talamo, Osvaldo
Valenti
1942: Quarta Pagina (O Mistério da Quarta Página), de
Nicola Manzari
1943: Apparizione, de Jean de Limur (não creditado no
genérico)
1943: Campo de’ Fiori, de Mario Bonnard
1943: Tutta la Cittá Canta, de Riccardo Freda
1943: L'Ultima Carrozzella, de Mario Mattoli
1945: Roma, Città Aperta (Roma Cidade Aberta), de Roberto
Rosselini (neste filme é também assistente de realização)
1945: Chi l'ha visto?, de Goffredo Alessandrini
1946: Paisá (Libertação) de Roberto Rossellini (neste
filme é também assistente de realização)
1947: Il Delitto di Giovanni Episcopo (A Historia do Meu
Crime) de Alberto Lattuada
1947: Il Passatore, de Duilio Coletti
1947: Fumeria d'Oppio, de Raffaello Matarazzo
1947: L' Ebreo Errante, de Goffredo Alessandrini
1948: L'Amore (O Amor), de Roberto Rossellini, episódio
“Il Miracolo” (neste filme é também assistente de realização e actor)
1948: Il Mulino del Pó (O Moinho do Rio Pó), de Alberto
Lattuada
1948: Senza Pietà (Sem Piedade), de Alberto Lattuada
1948: La Cittá Dolente, de Mario Bonnard
1949: In Nome della Legge (Em Nome da Lei), de Pietro
Gerrni
1950: Il Cammino della Speranza (O Caminho da Esperança),
de Pietro Germi
1950: Francesco, Giullare di Dio (O Santo dos
Pobrezinhos), de Roberto Rossellini
1950: Luci del Varietà, de Federico Fellini e Alberto
Lattuada
1951: La Città si Difende (A Cidade Defende-se), de
Pietro Germi
1951: Cameriera bella Presenza Offresi..., de Giorgio
Pàstina
1952: Il Brigante di Tacca del Lupo (O Bandido da Cova do
Lobo), de Pietro Germi
1952: Europa '51 (Europa 51), de Roberto Rossellini
1952: Lo Sceicco Bianco (O Sheik Branco), de Federico
Fellini
1953: I Vitelloni (Os Inúteis), de Federico Fellini
1953: L'Amore in Città (Retalhos da Vida), episódio “Agenzia
matrimoniale”
1954: La Strada (A Estrada), de Federico Fellini (1954)
1955: Il Bidone (O Conto do Vigário), de Federico Fellini
(1955)
1957: Le Notti di Cabiria (As Noites de Cabíria), de
Federico Fellini (1957)
1958: Fortunella, de Eduardo De Filippo (1958)
1960: La Dolce Vita (A Doce Vida), de Federico Fellini
1962: Boccaccio '70 (1962) - episódio “Le Tentazioni del
dottor Antonio”
1963: 8½ (Fellini 8 ½), de Federico Fellini
1965: Giulietta degli spiriti (Julieta dos Espíritos), de
Federico Fellini
1968: Tre Passi nel Delirio (Histórias Extraordinárias) -
episódio Toby Dammit
1969: Sweet Charity (Sweet Charity - A Rapariga que
Queria Ser Amada), de Bob Fosse
1969:
Fellini Satyricon (Fellini – Satyricon), de Federico Fellini
1969: Block-notes di un regista (Diário de um
Realizador), de Federico Fellini - documentário televisivo
1970: I Clowns (Os Palhaços), de Federico Fellini
1972: Roma (Roma de Fellini), de Federico Fellini
1973: Amarcord (Amarcord), de Federico Fellini
1976: Il Casanova di Federico Fellini (O Casanova de
Federico Fellini), de Federico Fellini
1979: Prova d'Orchestra (Ensaio de Orquestra), de
Federico Fellini
1980: La Città delle Donne (A Cidade das Mulheres), de
Federico Fellini
1983: E la Nave va (O Navio), de Federico Fellini
1985: Ginger e Fred (Ginger e Fred), de Federico Fellini
1987: Intervista (Entrevista), de Federico Fellini
1990: La Voce della Luna (A Voz da Lua), de Federico
Fellini
Como realizador
1950: Luci del Varietà (co-realização com Alberto
Lattuada)
1952: Lo Sceicco Bianco (O Sheik Branco)
1953: I Vitelloni (Os Inúteis)
1953: L'Amore in Città (Retalhos da Vida)
Episódio “Un ‘Agenzia Matrimoniale” (outros realizadores:
Michelangelo Antonioni, Dino Risi, Francesco Masselli, Cesare Zavattini, Carlo
Lizani e Alberto Lattuada)
1954: La Strada (A Estrada)
1955: Il Bidone (O Conto do Vigário)
1957: Le Notti di Cabiria (As Noites de Cabíria)
1960: La Dolce Vita (A Doce Vida)
1962: Boccaccio '70 (Boccaccio '70)
Episódio “Le Tentazioni del Dottor Antonio” (outros
realizadores: Luchino Visconti e Vittorio De Sica)
1963: 8½ (Fellini 8 ½)
1965: Giulietta degli Spiriti (Julieta dos Espíritos)
1968: Tre Passi nel Delirio ou Histoires Extraordinaires
(Histórias Extraordinárias)
Episódio “Toby Dammit” (outros realizadores: Louis Malle
e Roger Vadim)
1969: Satyricon (Fellini – Satyricon)
1969: Block-notes di un Regista (Diário de um Realizador)
(TV)
1971: I Clowns (Os Palhaços)
1972: Roma (Roma de Fellini)
1973: Amarcord (Amarcord)
1976: Il Casanova di Federico Fellini (O Casanova de
Federico Fellini)
1978: Prova d'Orchestra (Ensaio de Orquestra)
1980: La Città delle Donne (A Cidade das Mulheres)
1983: E la Nave Va (O Navio)
1986: Ginger e Fred (Ginger e Fred)
1987: Intervista (Entrevista)
1990: La Voce della Luna (A Voz da Lua)
Como actor
1948: L'Amore (O Amor), de Roberto Rossellini
1972: Roma (Roma de Fellini), de Federico Fellini
1974: C'Eravamo Tanto Amati (Tão Amigos que nós eramos),
de Ettore Scola
1983: Il Tassinaro, de Alberto Sordi
1987: Intervista (Entrevista), de Federico Fellini
2002: Fellini, Sono un Gran Bugiardo, de Damian Pettigrew
O CINEMA SEGUNDO FEDERICO FELLINI
Nunca exerço juízos morais porque não me sinto capacitado
para tanto. Não sou censor, nem padre, nem político. Não gosto de me analisar,
não sou orador, nem filósofo, nem teórico. Sou apenas um contador de histórias,
e o cinema é o meu ofício. (1971)
Não há nada mais triste do que o riso; nada é mais belo,
magnífico, estimulante e enriquecedor do que o terror do desespero total. Acho
que, enquanto vivem, todos os homens são prisioneiros deste medo terrível, no
qual toda a prosperidade está votada ao fracasso, mas que preservam, mesmo no
abismo mais fundo, essa liberdade esperançosa que lhes permite sorrir em
situações aparentemente desesperadas. É por isso que o objectivo dos
verdadeiros autores de comédia - quer dizer, dos mais profundos e honestos - não
é de modo nenhum a simples diversão, mas rasgar feridas dolorosas com a
crueldade de as tomar mais sentidas. (1971)
Na minha opinião, “A Estrada” procura realizar a
experiência que um filósofo, Emmanuel Mounier, muito bem definiu como a mais
importante e básica para abrir qualquer perspectiva social: a experiência
comunitária entre dois seres humanos. Quer dizer, para aprender a riqueza e a
possibilidade da vida social, hoje que se fala tanto de socialismo, é, antes de
mais, importante aprender a estar, muito simplesmente, com outro homem: penso
que isto é o que todas as sociedades devem aprender e que, se não se consegue
superar este ponto de partida tão humilde mas necessário, talvez amanhã
venhamos a estar perante uma sociedade exteriormente bem organizada e
publicamente perfeita e sem mácula, na qual, porém, as relações privadas, as
relações entre homem e homem, ou entre as pessoas, se mostrarão reduzidas ao
vazio, à indiferença, ao isolamento, à impenetrabilidade. (1955)
“Cinéma-verité”? Prefiro “cinema-mentira”. Uma mentira é
sempre mais interessante do que a verdade. A mentira é a alma da arte do
espectáculo, e eu adoro espectáculo. A ficção pode sempre ter uma verdade maior
do que a realidade óbvia de todos os dias. Não é preciso que as coisas que se
mostram sejam autênticas. Em regra, são melhores quando não o são. O que tem de
ser autêntico é a emoção que se sente e se quer exprimir. (1971)
O colaborador mais precioso que tive foi Nino Rota. Tinha
uma imaginação geométrica, uma visão musical de esferas celestes, pelo que não
tinha necessidade de ver as imagens dos meus filmes. Quando lhe perguntava que
motivos tinha em mente para comentar esta ou aquela sequência, sentia
claramente que as imagens não lhe diziam respeito: o seu era um mundo interior,
a que a realidade tinha pouca possibilidade de acesso. Vivia a música com a
liberdade e a facilidade de uma criatura viva numa dimensão que lhe é
espontaneamente congenial. (1983)
O cinema como negócio é macabro. Grotesco. E uma mistura
de jogo de futebol e de bordel. (1965)
Quando decido fazer um filme, o meu estímulo inicial é a
assinatura do contrato. (1971)
Geralmente, os desenhos que faço só têm uma razão
funcional e estão estritamente ligados ao meu trabalho de realizador. Desde a
infância, nunca desenhei as pessoas da forma como as via diante de mim, mas sim
da maneira como haviam ficado na minha memória. O desenho desata a minha
fantasia. O desenho é o meu primeiro passo para decifrar. Muito mais difícil é
encontrar o actor que se ajuste ao desenho... Quando Giulietta (Massina) via
que eu desenhava um pequeno círculo num papel, ela sustinha a respiração. Sabia
que era o começo. O círculo era o seu rosto.
Sei que vivo num mundo de fantasias. Mas prefiro que seja
assim e irrito-me com tudo o que perturba a minha visão. A vida real não me
interessa. Gosto de observá-la, mas no fundo apenas para dar rédea solta a
minha fantasia. A fantasia tem uma dimensão muito mais real do que aquela que
nos parece ser a dimensão física.
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