terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O CONTO DO VIGÁRIO


O CONTO DO VIGÁRIO (1955)

“O Conto do Vigário” é das obras menos conhecidas de Fellini, talvez até das menos apreciadas, mas julgo que se trata de um dos seus filmes charneira, que se liberta de algumas das suas ingenuidades de início de carreira e que assume um olhar algo desencantado sobre a humanidade, ainda que nunca descurando a capacidade de redenção do homem.
A sequência inicial irá anunciar e marcar toda a obra. Um grupo de aldrabões italianos desce da cidade até ao mundo rural para activar uma vez mais o seu “conto do vigário”: num carro, dois comparsas vestidos de padre visitam uma pequena quinta onde previamente um outro havia enterrado uma caveira, alguns ossos e uma caixa de metal com algumas jóias de pechisbeque. Dirigem-se ao casal de camponeses como enviados especiais de altos dignitários do Vaticano que procuram recolher os restos de um criminoso que ali havia sido enterrado, há tempos, juntamente com um tesouro. A palavra “tesouro” resulta sempre e a avidez transparece no olhar dos camponeses, que reúnem todas as suas economias para resgatarem o tesouro e ficarem com ele. Concluída a operação, os “padres” voltam às suas vestimentas civis, agora abastecidos com alguns milhares de liras que irão gastar em bebidas, mulheres, cigarros e boa vida. Um deles, Picasso (Richard Basehart), porque gosta de pintar, leva uma prenda à filha e vai com a família jantar fora. Augusto (Broderick Crawford), por seu turno, homem de meia-idade, pesado e cansado, encontra um dia a filha que sai da escola e que ele não vê há anos. Sente-se algum remorso no seu olhar, ele procura reatar a relação com uma refeição e uma ida ao cinema que acabará por lhe ser fatal – alguém que ele havia aldrabado anteriormente descobre-o na plateia e chama a polícia, que o leva para a cadeia. Muito menos preocupado com a vida e as suas consequências, é Roberto (Franco Fabrizi), que parece prolongar a sua figura inconsequente e amoral de “Os Inúteis”.


De resto, há muito mais Em “Il Bidone” que se herda de “I Vittelloni”: o grupo de amigos que vagueia pelas ruas e pelos cafés da cidade, uma camaradagem que se estriba na ociosidade ou no pequeno crime (que chega a ser crime hediondo, quando a trupe vigariza uma família com uma filha aleijada), a própria definição psicológica dos elementos do grupo, onde, além de Roberto, Picasso relembra Leopoldo, que deseja ser pintor, enquanto este procura ser poeta e dramaturgo. São vidas frustradas, numa Itália do pós-guerra, onde os novos modelos económicos introduziram mudanças significativas e a avidez do lucro fácil e de uma existência virada para o prazer imediato conduziram ao crime e a uma economia paralela clandestina e transgressora.
Toda a filosofia de vida de Fellini se encontra aqui exposta, mas o seu olhar endurece, ainda que se note a esperança de cada homem trazer dentro de si a redenção. Neste aspecto, a sequência final é extremamente reveladora, com Augusto a ser castigado pela sua traição e a cumprir uma via láctea que levou François Truffaut a dizer, numa nota escrita sobre o filme, quando o mesmo passou no Festival de Veneza, que “ficaria de bom grado algumas horas a ver morrer Broderick Crawford”. Na verdade, toda a cena, rodada na solidão inóspita de uma paisagem lunar, seca e despojada, dá bem a imagem do desespero e do isolamento de alguém que se perdeu nos meandros da vida, ignorando o amor e a fraternidade, fechado sobre a ganância e a crueldade.
Com um olhar moralista, Fellini volta a desencadear a ira dos críticos marxistas sobre esta obra onde são evidentes os valores religiosos. Guido Aristarco, chefe de fila dos críticos comunistas, não perdoa ao cineasta o que ele chama de traição ao neo-realismo inicial. Mas a verdade é que, por esta altura, o neo-realismo era já um rio de onde saíam vários afluentes (o que, aliás, se verificou em todas as artes, da literatura à pintura, por exemplo). No neo-realismo que se queria social e quase documental dos primeiros filmes, nasceram olhares diferentes e concepções variadas de realismo, de Fellini a Antonioni, de Visconti a Pontecorvo, de Risi a Germi, de Lattuada a Comencini. A base neo-realista encontra-se em todos eles, mas o percurso será pessoal, individual, único. O que acarreta diferenças substanciais que trazem o prazer da descoberta de cada caso. 


Em “Il Bidone”, Fellini vai buscar os actores americanos Broderick Crawford e Richard Basehart, rostos muito próprios do policial e do filme negro, e com eles importa igualmente esse tom de “film noire” que é bem visível nalgumas sequências da obra. Trata-se de uma conjugação de tons muito interessante, que julgo resultar feliz, adensando o clima e marcando as personagens com uma fatalidade de destino que ressoa forte e convincente. Claro que os actores têm uma importância decisiva neste resultado, com composições brilhantes. Aos já citados, deverá acrescentar-se Giulietta Masina, em Iris, a mulher de Picasso, como sempre notável, nesse misto de ingenuidade e fragilidade, de inteireza de carácter e de pureza. Como sempre nos filmes de Fellini onde ela aprece, será a sua personagem a marcar e impor um contraponto, afirmando-se por isso como figura decisiva no universo do cineasta. Tal como os seus habituais colaboradores na escrita do argumento (aqui Ennio Flaiano e  Tullio Pinelli) ou o incondicional Nino Rota, a assinar a partitura musical.

O CONTO DO VIGÁRIO
Título original: Il Bidone

Realização: Federico Fellini (Itália, França, 1955); Argumento: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli; Produção: Silvio Clementelli, Charles Delac, Mario Derecchi, Goffredo Lombardo; Música: Nino Rota; Fotografia (p/b): Otello Martelli; Montagem: Mario Serandrei, Giuseppe Vari; Design de produção: Dario Cecchi; Decoração: Massimiliano Capriccioli; Guarda-roupa: Dario Cecchi; Maquilhagem: Rocchetti, Eligio Trani; Direcção de produção: Giuseppe Colizzi; Assistentes de realização: Dominique Delouche, Paolo Nuzzi, Moraldo Rossi, Narciso Vicario; Som: Giovanni Rossi; Companhias de produção: Titanus, Société Générale de Cinématographie (S.G.C.); Intérpretes: Broderick Crawford (Augusto), Giulietta Masina (Iris), Richard Basehart (Picasso), Franco Fabrizi (Roberto), Sue Ellen Blake (Anna), Irene Cefaro (Marisa), Alberto De Amicis (Rinaldo), Lorella De Luca (Patrizia), Giacomo Gabrielli (barão Vargas), Riccardo Garrone (Riccardo), Paul Grenter, Emilio Manfredi, Lucetta Muratori, Mario Passante, Sara Simoni, Xenia Valderi (Luciana), Mara Werlen (Maggie), Maria Zanoli (Stella Florina), Ettore Bevilacqua, Ada Colangeli, Tiziano Cortini, Yami Kamadeva, etc. Duração: 112 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 5 de Outubro de 1956. 

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