O CONTO DO
VIGÁRIO (1955)
“O Conto do Vigário” é das obras menos conhecidas de
Fellini, talvez até das menos apreciadas, mas julgo que se trata de um dos seus
filmes charneira, que se liberta de algumas das suas ingenuidades de início de
carreira e que assume um olhar algo desencantado sobre a humanidade, ainda que
nunca descurando a capacidade de redenção do homem.
A sequência inicial irá anunciar e marcar toda a obra. Um
grupo de aldrabões italianos desce da cidade até ao mundo rural para activar
uma vez mais o seu “conto do vigário”: num carro, dois comparsas vestidos de
padre visitam uma pequena quinta onde previamente um outro havia enterrado uma
caveira, alguns ossos e uma caixa de metal com algumas jóias de pechisbeque.
Dirigem-se ao casal de camponeses como enviados especiais de altos dignitários
do Vaticano que procuram recolher os restos de um criminoso que ali havia sido
enterrado, há tempos, juntamente com um tesouro. A palavra “tesouro” resulta
sempre e a avidez transparece no olhar dos camponeses, que reúnem todas as suas
economias para resgatarem o tesouro e ficarem com ele. Concluída a operação, os
“padres” voltam às suas vestimentas civis, agora abastecidos com alguns
milhares de liras que irão gastar em bebidas, mulheres, cigarros e boa vida. Um
deles, Picasso (Richard Basehart), porque gosta de pintar, leva uma prenda à
filha e vai com a família jantar fora. Augusto (Broderick Crawford), por seu
turno, homem de meia-idade, pesado e cansado, encontra um dia a filha que sai
da escola e que ele não vê há anos. Sente-se algum remorso no seu olhar, ele
procura reatar a relação com uma refeição e uma ida ao cinema que acabará por
lhe ser fatal – alguém que ele havia aldrabado anteriormente descobre-o na
plateia e chama a polícia, que o leva para a cadeia. Muito menos preocupado com
a vida e as suas consequências, é Roberto (Franco Fabrizi), que parece
prolongar a sua figura inconsequente e amoral de “Os Inúteis”.
De resto, há muito mais Em “Il Bidone” que se herda de “I
Vittelloni”: o grupo de amigos que vagueia pelas ruas e pelos cafés da cidade,
uma camaradagem que se estriba na ociosidade ou no pequeno crime (que chega a
ser crime hediondo, quando a trupe vigariza uma família com uma filha
aleijada), a própria definição psicológica dos elementos do grupo, onde, além
de Roberto, Picasso relembra Leopoldo, que deseja ser pintor, enquanto este
procura ser poeta e dramaturgo. São vidas frustradas, numa Itália do
pós-guerra, onde os novos modelos económicos introduziram mudanças
significativas e a avidez do lucro fácil e de uma existência virada para o
prazer imediato conduziram ao crime e a uma economia paralela clandestina e
transgressora.
Toda a filosofia de vida de Fellini se encontra aqui
exposta, mas o seu olhar endurece, ainda que se note a esperança de cada homem
trazer dentro de si a redenção. Neste aspecto, a sequência final é extremamente
reveladora, com Augusto a ser castigado pela sua traição e a cumprir uma via
láctea que levou François Truffaut a dizer, numa nota escrita sobre o filme,
quando o mesmo passou no Festival de Veneza, que “ficaria de bom grado algumas
horas a ver morrer Broderick Crawford”. Na verdade, toda a cena, rodada na
solidão inóspita de uma paisagem lunar, seca e despojada, dá bem a imagem do
desespero e do isolamento de alguém que se perdeu nos meandros da vida,
ignorando o amor e a fraternidade, fechado sobre a ganância e a crueldade.
Com um olhar moralista, Fellini volta a desencadear a ira
dos críticos marxistas sobre esta obra onde são evidentes os valores
religiosos. Guido Aristarco, chefe de fila dos críticos comunistas, não perdoa
ao cineasta o que ele chama de traição ao neo-realismo inicial. Mas a verdade é
que, por esta altura, o neo-realismo era já um rio de onde saíam vários
afluentes (o que, aliás, se verificou em todas as artes, da literatura à
pintura, por exemplo). No neo-realismo que se queria social e quase documental
dos primeiros filmes, nasceram olhares diferentes e concepções variadas de
realismo, de Fellini a Antonioni, de Visconti a Pontecorvo, de Risi a Germi, de
Lattuada a Comencini. A base neo-realista encontra-se em todos eles, mas o
percurso será pessoal, individual, único. O que acarreta diferenças
substanciais que trazem o prazer da descoberta de cada caso.
O CONTO DO
VIGÁRIO
Título
original: Il Bidone
Realização: Federico
Fellini (Itália, França, 1955); Argumento: Federico Fellini, Ennio Flaiano,
Tullio Pinelli; Produção: Silvio Clementelli, Charles Delac, Mario Derecchi,
Goffredo Lombardo; Música: Nino Rota; Fotografia (p/b): Otello Martelli;
Montagem: Mario Serandrei, Giuseppe Vari; Design de produção: Dario Cecchi;
Decoração: Massimiliano Capriccioli; Guarda-roupa: Dario Cecchi; Maquilhagem:
Rocchetti, Eligio Trani; Direcção de produção: Giuseppe Colizzi; Assistentes de
realização: Dominique Delouche, Paolo Nuzzi, Moraldo Rossi, Narciso Vicario;
Som: Giovanni Rossi; Companhias de produção: Titanus, Société Générale de
Cinématographie (S.G.C.); Intérpretes:
Broderick Crawford (Augusto), Giulietta Masina (Iris), Richard Basehart
(Picasso), Franco Fabrizi (Roberto), Sue Ellen Blake (Anna), Irene Cefaro
(Marisa), Alberto De Amicis (Rinaldo), Lorella De Luca (Patrizia), Giacomo
Gabrielli (barão Vargas), Riccardo Garrone (Riccardo), Paul Grenter, Emilio
Manfredi, Lucetta Muratori, Mario Passante, Sara Simoni, Xenia Valderi
(Luciana), Mara Werlen (Maggie), Maria Zanoli (Stella Florina), Ettore
Bevilacqua, Ada Colangeli, Tiziano Cortini, Yami Kamadeva, etc. Duração: 112 minutos; Distribuição em
Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data
de estreia em Portugal: 5 de Outubro de 1956.
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