domingo, 7 de dezembro de 2014

O SHEIK BRANCO


O SHEIK BRANCO (1952)

Wanda Giardino Cavalli (Brunella Bovo) e Ivan Cavalli (Leopoldo Trieste), acabados de casar e em viagem de núpcias, chegam a Roma, para se encontrem com os tios do marido, ver o Papa, e passar por alguns monumentos imprescindíveis. Trata-se de uma viagem o mais convencional possível. Estamos em plena época mussoliniana, com os “carabinieri” a atravessarem as ruas da cidade em passo de ganso, tocando as marchas da época. Ivan Cavalli é um ingénuo burocrata que planeou escrupulosamente toda a sua estadia em Roma. Contabilizada ao minuto. Mas Wanda, a sua sonhadora esposa, tem outros projectos. Leitora compulsiva de fotonovelas, que certamente povoavam o seu cinzento quotidiano de provincia, secretamente apaixonada pelo “Sceicco Bianco” de uma dessas historietas, aproveita o tempo de um banho, enquanto o marido dorme uma sesta, e vai até à sede da editora, em busca do seu “cavaleiro branco”, do seu “príncipe encantado”. Aqui lhe “vendem” a máxima de que “ a vida real é a dos sonhos”. Mas facilmente irá perceber que alguns sonhos não são mais do que “uma queda num poço sem fundo”.
Vê-se assim enredada numa rocambolesca aventura que porá em causa toda a permanência do casal em Roma. Como num sonho, vê descer do céu, num trapézio seguramente dourado, o seu heróico sheik (Alberto Sordi), que não passa de um vulgar conquistador de meia tijela que procura aproveitar-se da inocência das suas leitoras, como Wanda. Depois de muitas dolorosas e/ou divertidas ocorrências, esta acabará por voltar aos braços do marido. Por entre lágrimas, assegura-lhe que continua “pura e inocente”. E parece aceitar a realidade como a melhor solução para viver: “Tu és o meu verdadeiro sheik branco”, assegura ela ao marido. Mas a verdade é que, de braço dado a Ivan, e na companhia da família do tio, atravessa a praça de São Pedro, em direcção à bênção do Papa que, possivelmente, irá descer do céu para os abençoar e oferecer-lhes uma nova esperança, ou um outro sonho.


Dir-se-ia que o mundo de Fellini nasceu criado. Logo nos seus primeiros filmes a coerência do olhar e do sentir e as obsessões que o irão perseguir ao longo de toda a vida já se encontram estratificadas, instaladas, imperturbavelmente consolidadas. Poderá haver aperfeiçoamento de estilo, ou, se se preferir, estilização da narrativa, exacerbação do barroco da composição, mas o essencial encontra-se acomodado.
As personagens centrais de Fellini são seres frágeis, ingénuos e puros, que são postos à prova pelos oportunistas de sempre ou pelas malhas que o destino tece. Ivan e Wanda, cada um à sua maneira, desembarcam em Roma para conhecer a desilusão, passar por ela e, possivelmente, saírem mais fortes da experiência. Ivan julga ter perdido Wanda, para acaba por a recuperar. Ela deixou de acreditar em sheiks brancos de fotonovela, mas… “tu és o meu sheik branco” quer dizer que o horizonte de fantasia e sonho não se perdeu. O sheik é outro, agora mais real, agarrado ao seu braço, mas ambos caminham em direcção a uma nova quimera, uma nova imagem, um mito milenar. Possivelmente os homens não podem viver sem acreditar em algo que os ultrapasse, que lhes permita a sedução da fantasia, o sabor do sonho.
“O Sheik Branco” ostenta uma narrativa em tom de comédia que roça, todavia, o melodrama. É impossível ao espectador não sorrir perante as desgraças e ao mesmo tempo lamentar os equívocos. Estamos sempre do lado do casal Cavalli, torcendo para que tudo bata certo e acabem por ver o Papa, apesar do ar aparvalhado com que olham a vida e os acontecimentos. Nesta medida, Wanda é, ainda assim, a mais alienada pela fantasia das fotonovelas, mas a mais intrépida e corajosa, apesar de nunca prever as consequências dos seus actos. Ivan não deixa de ser um atarantado contabilista que nunca acerta nas previsões que anota na sua agenda. Todos os encontros saem frustrados. Todos os horários não se cumprem.


De resto, tal como em “Luci del Varietà”, a noite convida às peregrinações solitárias, as ruas estão povoadas por prostitutas de bom coração (aqui, uma de nome Cabiria, e interpretada por Giulitta Masina!) e seres excêntricos. O apelo do espectáculo é constante. A sub-cultura popular, de um decadentismo obsessivo, tanto se faz sentir na sedução pela companhia de revista, como na apresentação da deprimente equipa que roda uma fotonovela das “Mil e Uma Noites” numa qualquer praia italiana. Roma, padres e freiras nunca deixam de estar em foco, e os tipos característicos fazem sempre a sua aparição, excessiva e turbulenta.
Nestes primeiros filmes de Fellini, existe uma curiosa ambiguidade quanto à religião. Por um lado, é evidente a sátira aos representantes do clero, mas por outro os protagonistas são verdadeiros exemplos de anjos caídos que se redimem. São relatos de experiências traumáticas ultrapassadas pela redenção. Percursos iniciáticos verdadeiramente religiosos.
Há em Fellini uma outra constante: uma ternura poética a envolver todas (ou quase todas) as personagens. Sobretudo nestes primeiros filmes. Nada é muito simples e as considerações morais nunca tendem ao maniqueísmo. Se ninguém é escrupulosamente puro, ou não deixa de ceder a tentações, também ninguém é impiedosamente condenado ao inferno. Todos são humanos, melhores ou piores, mas todos ostentam os seus aspectos frágeis que os tornam simpáticos, por vezes mesmo na sua antipatia.
Alberto Sordi é magnífico na composição de Fernando Rivoli, o sheik branco, um pobre diabo que tenta fazer esquecer pela sedução fácil das fãs a submissão à mulher; Brunella Bovo (Wanda) e Leopoldo Trieste (Ivan), excelentes no casal de provincianos enredado no fascínio da grande cidade; Giulietta Masina consegue, em breves minutos, impor uma figura de prostituta inesquecível; Ernesto Almirante, o realizador da fotonovela, é outra personagem marcante; Ugo Attanasio, o aparentemente severo tio de Ivan, e toda a família que o rodeia, oferecem um contraponto brilhante ao desespero do atarantado sobrinho.
Na escrita do argumento, assinado por Federico Fellini, sublinha-se a curiosa colaboração de Michelangelo Antonioni, além das de Tullio Pinelli e Ennio Flaiano, que passarão a contar-se entre os habitués do cineasta. Não falando já de Nino Rota, cuja música, a partir desta obra, se torna num dos suportes da obra de Fellini. Um belo filme que marca o arranque a solo de Fellini na realização.


O SHEIK BRANCO
Título original: Lo Sceicco Bianco

Realização: Federico Fellini (Itália, 1952); Argumento: Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Tullio Pinelli, Ennio Flaiano; Produção: Luigi Rovere; Música: Nino Rota; Fotografia (p/b): Arturo Gallea, Leonida Barboni; Montagem: Rolando Benedetti; Direcção artística: Raffaello Tolfo; Maquilhagem: Franco Titi; Direcção artística: Eliseo Boschi, Antonio Greco, Enzo Provenzale, Vincenzo Taito; Assistentes de realização: Stefano Ubezio; Som: Armando Grilli, Walfrido Traversari; Companhias de produção: OFI, P.D.C.; Intérpretes: Alberto Sordi (Fernando Rivoli, o Sheik Branco), Brunella Bovo (Wanda Giardino Cavalli), Leopoldo Trieste (Ivan Cavalli), Giulietta Masina (Cabiria, a prostituta), Lilia Landi (Felga), Ernesto Almirante (Dottore Fortuna, realizador da fotonovela), Fanny Marchiò (Marilena Alba Vellardi), Gina Mascetti (Aida Rivoli, a mulher de Fernando), Jole Silvani, Enzo Maggio (Furio), Anna Primula, Mimo Billi, Armando Libianchi, Ugo Attanasio (tio de Ivan), Giulio Moreschi, Elettra Zago, Piero Antonucci (Aroldino, o comediante), Ettore Maria Margadonna, Antonio Acqua, Lalla Ambraziejus, Silvia De Vietri, Rino Leandri, Guglielmo Leoncini, Carlo Mazzone, Giorgio Salvioni, etc. Duração: 83 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia do filme em Portugal: 16 de Maio de 1958. 

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