O SHEIK BRANCO (1952)
Wanda Giardino Cavalli (Brunella Bovo) e Ivan Cavalli
(Leopoldo Trieste), acabados de casar e em viagem de núpcias, chegam a Roma,
para se encontrem com os tios do marido, ver o Papa, e passar por alguns
monumentos imprescindíveis. Trata-se de uma viagem o mais convencional
possível. Estamos em plena época mussoliniana, com os “carabinieri” a
atravessarem as ruas da cidade em passo de ganso, tocando as marchas da época.
Ivan Cavalli é um ingénuo burocrata que planeou escrupulosamente toda a sua
estadia em Roma. Contabilizada ao minuto. Mas Wanda, a sua sonhadora esposa,
tem outros projectos. Leitora compulsiva de fotonovelas, que certamente
povoavam o seu cinzento quotidiano de provincia, secretamente apaixonada pelo
“Sceicco Bianco” de uma dessas historietas, aproveita o tempo de um banho,
enquanto o marido dorme uma sesta, e vai até à sede da editora, em busca do seu
“cavaleiro branco”, do seu “príncipe encantado”. Aqui lhe “vendem” a máxima de
que “ a vida real é a dos sonhos”. Mas facilmente irá perceber que alguns
sonhos não são mais do que “uma queda num poço sem fundo”.
Vê-se assim enredada numa rocambolesca aventura que porá
em causa toda a permanência do casal em Roma. Como
num sonho, vê descer do céu, num trapézio seguramente dourado, o seu heróico
sheik (Alberto Sordi), que não passa de um vulgar conquistador de meia tijela
que procura aproveitar-se da inocência das suas leitoras, como Wanda. Depois de
muitas dolorosas e/ou divertidas ocorrências, esta acabará por voltar aos braços
do marido. Por entre lágrimas, assegura-lhe que continua “pura e inocente”. E
parece aceitar a realidade como a melhor solução para viver: “Tu és o meu
verdadeiro sheik branco”, assegura ela ao marido. Mas a verdade é que, de braço
dado a Ivan, e na companhia da família do tio, atravessa a praça de São Pedro,
em direcção à bênção do Papa que, possivelmente, irá descer do céu para os
abençoar e oferecer-lhes uma nova esperança, ou um outro sonho.
Dir-se-ia que o mundo de Fellini nasceu criado. Logo nos
seus primeiros filmes a coerência do olhar e do sentir e as obsessões que o
irão perseguir ao longo de toda a vida já se encontram estratificadas,
instaladas, imperturbavelmente consolidadas. Poderá haver aperfeiçoamento de
estilo, ou, se se preferir, estilização da narrativa, exacerbação do barroco da
composição, mas o essencial encontra-se acomodado.
As personagens centrais de Fellini são seres frágeis,
ingénuos e puros, que são postos à prova pelos oportunistas de sempre ou pelas
malhas que o destino tece. Ivan e Wanda, cada um à sua maneira, desembarcam em
Roma para conhecer a desilusão, passar por ela e, possivelmente, saírem mais
fortes da experiência. Ivan julga ter perdido Wanda, para acaba por a
recuperar. Ela deixou de acreditar em sheiks brancos de fotonovela, mas… “tu és
o meu sheik branco” quer dizer que o horizonte de fantasia e sonho não se
perdeu. O sheik é outro, agora mais real, agarrado ao seu braço, mas ambos
caminham em direcção a uma nova quimera, uma nova imagem, um mito milenar. Possivelmente
os homens não podem viver sem acreditar em algo que os ultrapasse, que lhes
permita a sedução da fantasia, o sabor do sonho.
“O Sheik Branco” ostenta uma narrativa em tom de comédia que
roça, todavia, o melodrama. É impossível ao espectador não sorrir perante as
desgraças e ao mesmo tempo lamentar os equívocos. Estamos sempre do lado do
casal Cavalli, torcendo para que tudo bata certo e acabem por ver o Papa,
apesar do ar aparvalhado com que olham a vida e os acontecimentos. Nesta
medida, Wanda é, ainda assim, a mais alienada pela fantasia das fotonovelas,
mas a mais intrépida e corajosa, apesar de nunca prever as consequências dos
seus actos. Ivan não deixa de ser um atarantado contabilista que nunca acerta
nas previsões que anota na sua agenda. Todos os encontros saem frustrados.
Todos os horários não se cumprem.
De resto, tal como em “Luci del Varietà”, a noite convida
às peregrinações solitárias, as ruas estão povoadas por prostitutas de bom
coração (aqui, uma de nome Cabiria, e interpretada por Giulitta Masina!) e
seres excêntricos. O apelo do espectáculo é constante. A sub-cultura popular,
de um decadentismo obsessivo, tanto se faz sentir na sedução pela companhia de
revista, como na apresentação da deprimente equipa que roda uma fotonovela das
“Mil e Uma Noites” numa qualquer praia italiana. Roma, padres e freiras nunca
deixam de estar em foco, e os tipos característicos fazem sempre a sua aparição,
excessiva e turbulenta.
Nestes primeiros filmes de Fellini, existe uma curiosa
ambiguidade quanto à religião. Por um lado, é evidente a sátira aos
representantes do clero, mas por outro os protagonistas são verdadeiros
exemplos de anjos caídos que se redimem. São relatos de experiências
traumáticas ultrapassadas pela redenção. Percursos iniciáticos verdadeiramente
religiosos.
Há em Fellini uma outra constante: uma ternura poética a
envolver todas (ou quase todas) as personagens. Sobretudo nestes primeiros
filmes. Nada é muito simples e as considerações morais nunca tendem ao
maniqueísmo. Se ninguém é escrupulosamente puro, ou não deixa de ceder a
tentações, também ninguém é impiedosamente condenado ao inferno. Todos são
humanos, melhores ou piores, mas todos ostentam os seus aspectos frágeis que os
tornam simpáticos, por vezes mesmo na sua antipatia.
Alberto Sordi é magnífico na composição de Fernando
Rivoli, o sheik branco, um pobre diabo que tenta fazer esquecer pela sedução
fácil das fãs a submissão à mulher; Brunella Bovo (Wanda) e Leopoldo Trieste (Ivan),
excelentes no casal de provincianos enredado no fascínio da grande cidade;
Giulietta Masina consegue, em breves minutos, impor uma figura de prostituta
inesquecível; Ernesto Almirante, o realizador da fotonovela, é outra personagem
marcante; Ugo Attanasio, o aparentemente severo tio de Ivan, e toda a família
que o rodeia, oferecem um contraponto brilhante ao desespero do atarantado
sobrinho.
Na escrita do argumento, assinado por Federico Fellini, sublinha-se
a curiosa colaboração de Michelangelo Antonioni, além das de Tullio Pinelli e
Ennio Flaiano, que passarão a contar-se entre os habitués do cineasta. Não
falando já de Nino Rota, cuja música, a partir desta obra, se torna num dos
suportes da obra de Fellini. Um belo filme que marca o arranque a solo de
Fellini na realização.
O SHEIK
BRANCO
Título
original: Lo Sceicco Bianco
Realização: Federico
Fellini (Itália, 1952); Argumento: Federico Fellini, Michelangelo Antonioni,
Tullio Pinelli, Ennio Flaiano; Produção: Luigi Rovere; Música: Nino Rota; Fotografia
(p/b): Arturo Gallea, Leonida Barboni; Montagem: Rolando Benedetti; Direcção
artística: Raffaello Tolfo; Maquilhagem: Franco Titi; Direcção artística:
Eliseo Boschi, Antonio Greco, Enzo Provenzale, Vincenzo Taito; Assistentes de
realização: Stefano Ubezio; Som: Armando Grilli, Walfrido Traversari;
Companhias de produção: OFI, P.D.C.; Intérpretes:
Alberto Sordi (Fernando Rivoli, o Sheik Branco), Brunella Bovo (Wanda Giardino
Cavalli), Leopoldo Trieste (Ivan Cavalli), Giulietta Masina (Cabiria, a
prostituta), Lilia Landi (Felga), Ernesto Almirante (Dottore Fortuna,
realizador da fotonovela), Fanny Marchiò (Marilena Alba Vellardi), Gina
Mascetti (Aida Rivoli, a mulher de Fernando), Jole Silvani, Enzo Maggio
(Furio), Anna Primula, Mimo Billi, Armando Libianchi, Ugo Attanasio (tio de
Ivan), Giulio Moreschi, Elettra Zago, Piero Antonucci (Aroldino, o comediante),
Ettore Maria Margadonna, Antonio Acqua, Lalla Ambraziejus, Silvia De Vietri,
Rino Leandri, Guglielmo Leoncini, Carlo Mazzone, Giorgio Salvioni, etc. Duração: 83 minutos; Distribuição em
Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data
de estreia do filme em Portugal: 16 de Maio de 1958.
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