domingo, 7 de dezembro de 2014

LUCI DEI VARIETÁ


LUCI DEL VARIETÀ (1951)

“Luci del Varietà” e a primeira realização assinada por Federico Fellini, depois de uma época em que apareceu ligado a várias obras do neo-realismo, como argumentista de filmes de Rossellini, “Roma, Cidade Aberta” ou “Libertação”. O seu nome aparece como autor da ideia, co-argumentista, co-produtor e ainda co-realizador. Apesar disso, ou por causa disso, esta é uma obra profundamente felliniana, enunciando, desde logo, alguns dos temas e das obsessões que irão nortear toda a sua filmografia posterior. Alberto Lattuada que co-assina a realização, era, no início dos anos 50, um cineasta de reputação firmada que, certamente por amizade e alguma sintonia de ideias, dá a mão ao jovem em iniciação. Mas este é, sem dúvida, um filme de Fellini.
Na verdade, em “Luci del Varietà” vamos encontrar todo o universo felliniano, com temas que se tornaram a partir daí constantes, como realidade e fantasia, o gosto pelo espectáculo, a ternura pelos falhados da vida, os ingénuos e os puros, muitas vezes trucidados pela engrenagem de uma sociedade subjugada ao poder do dinheiro e do prestígio, a crítica mais ou menos desapiedada aos arrivistas e aos manipuladores dos mais fracos, o fascínio por uma certa cultura popular, aqui expressa nas lentejoulas e nas plumas do vaudeville de província, a sedução pelo actor, o pequeno actor dos teatros pobres, o deslumbramento pela mulher, quer ela seja a voluptuosa romana, a sensual vedeta, a cândida Giulietta Masina, já então sua mulher na vida real, e que irá depois ser a protagonista de muitos dos seus filmes seguintes.


Checco Dalmonte (Peppino de Filippo, um actor magnífico e um fabuloso dramaturgo, autor de algumas das melhores peças de teatro do século xx italiano) é aqui um actor e director de uma companhia de teatro de variedades que percorre os decadentes palcos da província, com um conjunto de colaboradores arruinados pelo tempo e pela miséria. Entre eles Melina (Giulietta Masina), a sua companheira de palco e de vida. Numa das suas apresentações num teatro decrépito da Itália profunda, surge uma jovem e bela rapariga, Liliana (Carla Del Poggio), que sonha vir a ser actriz e se junta à companhia e ao fascinado Checco. Rapidamente se torna na vedeta do grupo, dadas as suas capacidades e, sobretudo, o seu corpo escultural, que ela usa de forma muito cativante. O que salva a companhia nalgumas ocasiões, até que se cruza com o abastado e empreendedor Adelmo Conti (Folco Lulli), que a conquista com promessas de uma carreira gloriosa e alguns presentes valiosos. Checco, perdido entre o “divórcio” de Melina, o descalabro da companhia e a fuga de Liliana vive momentos de desânimo, mas continua agarrado à sua ideia de uma companhia que vingue e se afirme. A generosa Melina regressa, a troupe volta a viajar de comboio para as pequenas cidades de Itália. Um dia, numa estação, cruzam-se os comboios que levam o decadente grupo de saltimbancos de Checco rumo ao seu pobre destino, e a voluptuosa Liliana que viaja numa carruagem conforto em direcção ao sucesso. Falam através da janela do comboio, ele cá em baixo, ela lá em cima, ambos trocam olhares de alguma ternura e talvez nostalgia por momentos passados, mas a vida continua com a sempre prestável Melina como amparo seguro e a tentação do proibido ao virar da esquina. Ou no banco da frente da carruagem de comboio.
O filme conserva uma toada de poética ternura e de melancólico melodrama, o que revelou um Fellini que posteriormente se iria impor como um dos maiores cineastas de sempre. A crítica italiana da época saudou na estreia esta obra, mas foi algo injusta com a sua importância e significado. Houve quem a acusasse de ser um pouco improvisada e de ostentar uma estrutura fragmentada, o que hoje nos aparece como uma virtude indiscutível e um arrojo na altura. Mas alguns críticos franceses descobriram as virtualidades: Jean de Baroncelli falou da influência de Chaplin e adivinhou a poesia de “A Estrada”. Outros perceberam que aqui se encontravam os rudimentos, não só de “A Estrada”, como de “Os Inúteis” ou “O Conto do Vigário”. Mas a verdade é que “As Noites de Cabiria”, “A Doce Vida”, “Fellini 8 ½”, “Julieta dos Espíritos”, “Roma”, “Os Palhaços”, “Amacord”, “Ginger e Fred” e tantos outros se encontram desde logo aqui esboçados. André Bazin foi claro ao afirmar que “o essencial é que “Luci del Varietà” inscreve na nossa memória algumas imagens inesquecíveis que confirmam o nosso amor pelo cinema italiano e pelo cinema em geral”.
Esta hábil mistura de humor e tristeza, de solidão e de cumplicidade, este gosto pela errância e pelas luzes do espectáculo, este discreto sublinhar da simplicidade e da generosidade que Giulietta Masina personifica, esta exaltação da sensualidade sem culpa, esta humanidade que olha e é olhada fica como uma marca de um autor que desde o início não pode mascarar a força da sua personalidade. Herdeiro de um certo neo-realismo, a que acrescentava imediatamente uma proposta diferente, pessoal, Fellini consegue não uma obra-prima de perfeição intocável, mas um esboço magnífico e surpreendente que torna “Luci del Varietà” uma jóia de valor incalculável e uma refrescante confissão de paixão pelo cinema e pela vida. A seguir apaixonadamente.


MULHERES E LUZES (Título brasileiro)
Título original: Luci del Varietà

Realização: Federico Fellini, Alberto Lattuada (Itália, 1950); Argumento: Federico Fellini, Alberto Lattuada, Tullio Pinelli, Ennio Flaiano, segundo ideia de Federico Fellini; Produção: Federico Fellini, Alberto Lattuada; Música: Felice Lattuada; Fotografia (p/b): Otello Martelli; Montagem: Mario Bonotti; Direcção artística: Aldo Buzzi; Decoração: Luigi Gervasi; Guarda-roupa: Aldo Buzzi; Maquilhagem: Argentina Ferri, Eligio Trani; Direcção de produção: Bianca Lattuada, Gastone Rotellini; Assistentes de realiazão: Augusto Carloni, Angelo D'Alessandro, Massimo Mida; Companhia de produção: Capitolium; Intérpretes: Peppino De Filippo (Checco Dalmonte), Carla Del Poggio (Liliana "Lilly" Antonelli), Giulietta Masina (Melina Amour), Folco Lulli (Adelmo Conti), Franca Valeri (Mitzy, a coreografa húngara), Carlo Romano (Enzo La Rosa), John Kitzmiller (John, trompetista), Silvio Bagolini (Bruno Antonini), Dante Maggio (Remo), Alberto Bonucci (cómico), Vittorio Caprioli (cómico), Giulio Calì (mágico Edison Will), Mario De Angelis (Maestro), Checco Durante, Joe Falletta (Pistolero Bill), Giacomo Furia (Duke), Renato Malavasi, Fanny Marchiò, Gina Mascetti (Valeria del Sole), Vania Orico (Moema, bailarina brasileira), Enrico Piergentili (pai de Melina), Marco Tulli, Alberto Lattuada, Carlo Bianco, Patrizia Caronti, Rina Dei, Italo Dragosei, Barbara Leite, Giovanna Ralli, etc. Duração: 93 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): inexistente, Edição no Brasil: Versátil Home Video; Classificação etária: M/ 12 anos. 

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