LUCI DEL
VARIETÀ (1951)
“Luci del Varietà” e a primeira realização assinada por
Federico Fellini, depois de uma época em que apareceu ligado a várias obras do
neo-realismo, como argumentista de filmes de Rossellini, “Roma, Cidade Aberta”
ou “Libertação”. O seu nome aparece como autor da ideia, co-argumentista,
co-produtor e ainda co-realizador. Apesar disso, ou por causa disso, esta é uma
obra profundamente felliniana, enunciando, desde logo, alguns dos temas e das obsessões
que irão nortear toda a sua filmografia posterior. Alberto Lattuada que
co-assina a realização, era, no início dos anos 50, um cineasta de reputação
firmada que, certamente por amizade e alguma sintonia de ideias, dá a mão ao
jovem em iniciação. Mas este é, sem dúvida, um filme de Fellini.
Na verdade, em “Luci del Varietà” vamos encontrar todo o
universo felliniano, com temas que se tornaram a partir daí constantes, como
realidade e fantasia, o gosto pelo espectáculo, a ternura pelos falhados da vida,
os ingénuos e os puros, muitas vezes trucidados pela engrenagem de uma
sociedade subjugada ao poder do dinheiro e do prestígio, a crítica mais ou
menos desapiedada aos arrivistas e aos manipuladores dos mais fracos, o
fascínio por uma certa cultura popular, aqui expressa nas lentejoulas e nas
plumas do vaudeville de província, a sedução pelo actor, o pequeno actor dos
teatros pobres, o deslumbramento pela mulher, quer ela seja a voluptuosa
romana, a sensual vedeta, a cândida Giulietta Masina, já então sua mulher na
vida real, e que irá depois ser a protagonista de muitos dos seus filmes
seguintes.
Checco Dalmonte (Peppino de Filippo, um actor magnífico e
um fabuloso dramaturgo, autor de algumas das melhores peças de teatro do século
xx italiano) é aqui um actor e director de uma companhia de teatro de
variedades que percorre os decadentes palcos da província, com um conjunto de
colaboradores arruinados pelo tempo e pela miséria. Entre eles Melina
(Giulietta Masina), a sua companheira de palco e de vida. Numa das suas
apresentações num teatro decrépito da Itália profunda, surge uma jovem e bela
rapariga, Liliana (Carla Del Poggio), que sonha vir a ser actriz e se junta à
companhia e ao fascinado Checco. Rapidamente se torna na vedeta do grupo, dadas
as suas capacidades e, sobretudo, o seu corpo escultural, que ela usa de forma
muito cativante. O que salva a companhia nalgumas ocasiões, até que se cruza
com o abastado e empreendedor Adelmo Conti (Folco Lulli), que a conquista com
promessas de uma carreira gloriosa e alguns presentes valiosos. Checco, perdido
entre o “divórcio” de Melina, o descalabro da companhia e a fuga de Liliana
vive momentos de desânimo, mas continua agarrado à sua ideia de uma companhia
que vingue e se afirme. A generosa Melina regressa, a troupe volta a viajar de
comboio para as pequenas cidades de Itália. Um dia, numa estação, cruzam-se os
comboios que levam o decadente grupo de saltimbancos de Checco rumo ao seu
pobre destino, e a voluptuosa Liliana que viaja numa carruagem conforto em
direcção ao sucesso. Falam através da janela do comboio, ele cá em baixo, ela
lá em cima, ambos trocam olhares de alguma ternura e talvez nostalgia por
momentos passados, mas a vida continua com a sempre prestável Melina como
amparo seguro e a tentação do proibido ao virar da esquina. Ou no banco da
frente da carruagem de comboio.
O filme conserva uma toada de poética ternura e de
melancólico melodrama, o que revelou um Fellini que posteriormente se iria
impor como um dos maiores cineastas de sempre. A crítica italiana da época
saudou na estreia esta obra, mas foi algo injusta com a sua importância e
significado. Houve quem a acusasse de ser um pouco improvisada e de ostentar
uma estrutura fragmentada, o que hoje nos aparece como uma virtude indiscutível
e um arrojo na altura. Mas alguns críticos franceses descobriram as
virtualidades: Jean de Baroncelli falou da influência de Chaplin e adivinhou a
poesia de “A Estrada”. Outros perceberam que aqui se encontravam os rudimentos,
não só de “A Estrada”, como de “Os Inúteis” ou “O Conto do Vigário”. Mas a
verdade é que “As Noites de Cabiria”, “A Doce Vida”, “Fellini 8 ½”, “Julieta
dos Espíritos”, “Roma”, “Os Palhaços”, “Amacord”, “Ginger e Fred” e tantos
outros se encontram desde logo aqui esboçados. André Bazin foi claro ao afirmar
que “o essencial é que “Luci del Varietà” inscreve na nossa memória algumas
imagens inesquecíveis que confirmam o nosso amor pelo cinema italiano e pelo
cinema em geral”.
Esta hábil mistura de humor e tristeza, de solidão e de
cumplicidade, este gosto pela errância e pelas luzes do espectáculo, este
discreto sublinhar da simplicidade e da generosidade que Giulietta Masina
personifica, esta exaltação da sensualidade sem culpa, esta humanidade que olha
e é olhada fica como uma marca de um autor que desde o início não pode mascarar
a força da sua personalidade. Herdeiro de um certo neo-realismo, a que
acrescentava imediatamente uma proposta diferente, pessoal, Fellini consegue
não uma obra-prima de perfeição intocável, mas um esboço magnífico e
surpreendente que torna “Luci del Varietà” uma jóia de valor incalculável e uma
refrescante confissão de paixão pelo cinema e pela vida. A seguir
apaixonadamente.
MULHERES E
LUZES (Título brasileiro)
Título
original: Luci del Varietà
Realização: Federico
Fellini, Alberto Lattuada (Itália, 1950); Argumento: Federico Fellini, Alberto
Lattuada, Tullio Pinelli, Ennio Flaiano, segundo ideia de Federico Fellini;
Produção: Federico Fellini, Alberto Lattuada; Música: Felice Lattuada;
Fotografia (p/b): Otello Martelli; Montagem: Mario Bonotti; Direcção artística:
Aldo Buzzi; Decoração: Luigi Gervasi; Guarda-roupa: Aldo Buzzi; Maquilhagem:
Argentina Ferri, Eligio Trani; Direcção de produção: Bianca Lattuada, Gastone
Rotellini; Assistentes de realiazão: Augusto Carloni, Angelo D'Alessandro,
Massimo Mida; Companhia de produção: Capitolium; Intérpretes: Peppino De Filippo (Checco Dalmonte), Carla Del Poggio
(Liliana "Lilly" Antonelli), Giulietta Masina (Melina Amour), Folco
Lulli (Adelmo Conti), Franca Valeri (Mitzy, a coreografa húngara), Carlo Romano
(Enzo La Rosa), John Kitzmiller (John, trompetista), Silvio Bagolini (Bruno
Antonini), Dante Maggio (Remo), Alberto Bonucci (cómico), Vittorio Caprioli
(cómico), Giulio Calì (mágico Edison Will), Mario De Angelis (Maestro), Checco
Durante, Joe Falletta (Pistolero Bill), Giacomo Furia (Duke), Renato Malavasi,
Fanny Marchiò, Gina Mascetti (Valeria del Sole), Vania Orico (Moema, bailarina
brasileira), Enrico Piergentili (pai de Melina), Marco Tulli, Alberto Lattuada,
Carlo Bianco, Patrizia Caronti, Rina Dei, Italo Dragosei, Barbara Leite,
Giovanna Ralli, etc. Duração: 93
minutos; Distribuição em Portugal (DVD): inexistente, Edição no Brasil:
Versátil Home Video; Classificação etária: M/ 12 anos.
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