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quarta-feira, 8 de abril de 2015

VIOLÊNCIA E PAIXÃO



VIOLÊNCIA E PAIXÃO (1974)


Se se pode falar já em "testamento" político e estético de Visconti a propósito de obras como "O Leopardo", "Morte em Veneza" ou “Luís da Baviera", é sobretudo com “Violência e Paixão" que essa sensação" se instala com maior forca e amargura. Visconti adoecera gravemente e poderá ter pensado estar a rodar o seu derradeiro filme. Sem procurar identificar a personagem do "professor" consigo próprio, é fundamentalmente ao nível da descrição dos ambientes que se instala esse doloroso olhar pela vida que se sente escapar. 
Como sempre em Visconti, o cenário, o rigor da montagem, a precisão do pormenor, a segurança um pouco teatral da marcação da figura humana movendo-se nele, enunciam de imediato as intenções. Num escrit6rio forrado por estantes repletas de livros, quadros, objectos de arte, pequenas mesas e confortáveis poltronas, que se dispersam pela sala criando um labirinto onde o "professor" se move com o à vontade de quem habita aquele espaço há longo tempo, irá decorrer o essencial desta "conversa em família". A decoração é vigorosa. Sente-se que uma presença masculina molda o cenário ao seu gosto, sem que mãos femininas retoquem o “quadro", de um requinte e voluptuosidade estética indisfarçáveis.
Aquela é a "torre de marfim" onde um intelectual cortado do seu tempo sobrevive com vestígios de um passado que toma por únicos interlocutores. Pelas paredes, "conversation pieces" de pintores ingleses do século XVIII. O "professor" fala essencialmente com essas telas de presenças enigmáticas, enquanto o som de Mozart invade os aposentos.


O "professor" deixou o trabalho há já algum tempo, entregando-se agora a uma existência de puro deleite estético. A leitura, os discos, os quadros, que restaura pacientemente, a sua colecção de obras de arte, a casa, refúgio pessoal apenas compartilhado com uma velha criada. A solidão instalou-se no interior daquelas paredes, mas uma estranha sabedoria, um pretenso conhecimento da vida, dir-se-ia forrarem de serenidade aquele conjunto indissociável.
Subitamente, a paz adquirida é quebrada pela intromissão de uma família que pretende alugar o andar de cima. Capricho de uma marquesa que procura oferecer um apartamento ao amante. O confronto estabelece-se. O "professor" começa por recusar todo o diálogo, mas, pouco a pouco, cede perante a veemência dos interesses manifestados e a sua própria curiosidade. A clausura do intelectual, que deixa à porta de casa a vida sua contemporânea, começa a ser agitada pela presença constante de uma nova aristocracia forjada pelo dinheiro, ostensiva na grosseria do poder económico que tudo procura controlar e obter. Com a marquesa Brumonti, outros representantes da vida moderna entram em cena: os filhos e o amante trazem consigo os problemas de uma juventude à deriva, entre a ruptura brusca com o sistema, através de um esquerdismo que Konrad diz ter corporizado em Maio de 68, o pacto aberto com o fascismo (Stefano) ou a fuga a realidade, através da droga, do sexo, da velocidade (Lietta).


Depois da Alemanha dos anos 30, da Veneza de 1911, da Baviera de meados do século XIX, Visconti fala-nos agora de uma decadência contemporânea de si mesmo. As figuras que lhe invadem o apartamento não fazem parte dos fantasmas de um consciente colectivo, não pertencem já à Historia. São a realidade actual. Uma realidade que irá inclusive acordar velhos fantasmas pessoais, amores adormecidos, imagens que o tempo torna diáfanas e imprecisas. Outras “conversas em família” distantes, perdidas, só sonhadas.
Diante de um professor em ruptura do presente, alimentando-se de um passado que manuseia a seu belo prazer, passam agora personagens de um presente sem futuro, numa confluência desesperada e angustiante, o que confere a "Violência e Paixão" essa densidade amarga e dolorosa de um corpo corrompido, expondo impudicamente as partes "tocadas" que esperam apenas a morte. Inexorável.
Neste crepúsculo de uma vida, que se debate ainda entre o fascínio da juventude (aqui Konrad, em "Morte em Veneza", Tadzio) e a proximidade da morte, nesta patética creditação sobre um rosto que envelhece e umas mãos que se abrem impotentes, neste "requiem" trágico de um humanista que procura "conciliar a política e a moral", e se sente afundar num cepticismo sem fronteiras, nesta viagem melancólica que tem a doença por companheira, Luchino Visconti confessa os dramas que sempre o habitaram e dilaceraram, com uma emoção e uma subtileza admiráveis. "Violência e Paixão", nessa busca incansável de um "tempo perdido", é ainda um lamento vigoroso e uma promessa de amor adiado... enquanto o gráfico de um electrocardiograma se desdobra, dando-nos a trajectória do pulsar de um coração e o seu momento limite.
Luchino Visconti pode ter morrido a 17 de Março de 1976, mas estas "conversas em família" recordá-lo-ão para sempre, na cinemateca imaginária de outros "professores" do futuro. Procurando transcender o espaço de um quadro oitocentista, Visconti oferece-nos uma obra de arte de doloroso traçado, que se destina ao diálogo com o futuro.

VIOLÊNCIA E PAIXÃO
Gruppo di famiglia in un interno (original title)

Realização: Luchino Visconti (Itália, 1974); Argumento: Enrico Medioli, Suso Cecchi D'Amico, Luchino Visconti;Produção: Giovanni Bertolucci; Música:  Franco Mannino; Fotografia (cor): Pasqualino De Santis; Montagem: Ruggero Mastroianni; Desing de produção: Mario Garbuglia; Decoração: Carlo Gervasi, Dario Simoni; Guarda-roupa: Maria Fanetti, Piero Tosi; Maquilhagem: Maria Teresa Corridoni, Alberto De Rossi; Direcção de produção: Lucio Trentini; Assistentes de realização: Albino Cocco, Alessio Girotti, Giorgio Treves, Louise Vincent; Departamento de arte: Alvaro Belsole, Italo Tomassi; Som: Claudio Maielli; Efeitos especiais: Eros Bacciucchi, Giovanni Bacciucchi; Companhias de produção: Rusconi Film, Gaumont International; Intérpretes: Burt Lancaster (o Professor), Helmut Berger (Konrad Huebel), Silvana Mangano (Marquesa Bianca Brumonti), Claudia Marsani (Lietta Brumonti), Stefano Patrizi (Stefano), Elvira Cortese (Erminia), Philippe Hersent (porteira), Guy Tréjan, Jean-Pierre Zola, Umberto Raho, Enzo Fiermonte, Romolo Valli, George Clatot, Valentino Macchi, Vittorio Fanfoni, Lorenzo Piani, Margherita Horowitz, Claudia Cardinale (mulher do Professor), Dominique Sanda (mãe do Professor), etc. Duração: 126 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/12 anos; Data de estreia em Portugal: 24 de Março de 1978.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

PERFUME DE MULHER



PERFUME DE MULHER (1974)


Dino Risi era já neste período seguramente um dos mestres da comédia italiana e dos grandes cineastas transalpinos que o pós-guerra revelou. Curiosamente, só nos últimos anos a crítica internacional (estamos a referirmo-nos à crítica francesa e anglo-saxónica, aquela que aparentemente pautava os critérios de muito boa gente, um pouco por todo o lado, por esse mundo além) o “descobrira”. Em França, por exemplo, o ano de 1975 foi particularmente fértil para essa “revelação”. Estreia de alguns títulos nunca aí vistos (entre eles “Uma Vida Difícil”, por exemplo), reposição de outros (“A Ultrapassagem” é um caso), ao mesmo tempo que apreciam as suas obras mais recentes (“Em Nome do Povo Italiano”, “Sexo Louco”, “Perfume de Mulher”…). Este acontecimento vinha mostrar igualmente como, por vezes, a vilipendiada crítica portuguesa (alguma que se não regia, nem rege, por figurinos estrangeiros...) se encontrava bem no cimo da onda, chamando a atenção para obras e autores que só muito tempo depois seriam reconhecidos internacionalmente. Há já longos anos que alguns críticos portugueses se batiam com ardor pelo cinema rigoroso e sarcástico deste moralista de riso demolidor e finura de traço que tão modelarmente retratava uma sociedade ao longo de uma vasta e quase sempre honrosa carreira.
Fausto (Vittorio Gassman), ex-capitão de infantaria, retirado do activo na força da idade, em virtude de um acidente com uma bomba que lhe levou a vista e o braço esquerdo, vive sozinho, em Turim, unicamente sob os cuidados de uma velha tia. Cínico, duro, sarcástico, de uma agressividade permanente, Fausto, dissimula assim a amargura que a solidão provoca. O exército coloca ao seu serviço um jovem soldado que o irá acompanhar durante uma deambulação por algumas cidades italianas, viagem que terminará em Nápoles. Não será senão aqui que o espectador perceberá que esta viagem não é outra coisa senão uma despedida, um olhar retrospectivo para o que ficou para trás. Fausto, ferozmente agarrado à vida e aos seus prazeres, recusa toda a forma de piedade, sente sobretudo a falta das mulheres, do “belo sexo” que ele reconhece pelo “perfume”. Mas a arrogância não lhe permite aceitar qualquer outra forma de relação que não seja o amor que se compra nas ruas de Génova. Sara, uma rapariga que o ama desde muito antes do seu infeliz acidente, de quem Fausto guarda o retrato bem junto ao revólver, na sua mala de viagem, representa para ele o inaceitável: a abdicação, a humilhação, o aceitar de uma condição de dependência que sempre recusara até aí. Por isso, a sua viagem é, à partida, uma viagem sem regresso. O suicídio é a meta derradeira. Mas a coragem falta no último instante. O que altera por completo os dados do problema. Fausto cai em si e descobre a sua fraqueza e admite-a. Com desespero e raiva lança um grito final em busca de Sara. E ela aí está, companheira dedicada, pronta ao sacrifício. Amor?  


Uma das características do cinema de Dino Risi é ser um cinema de deriva, acompanhando pessoas em viagem em busca de si próprias, que esbarram com o seu auto-retrato descoberto ao espelho da vida e com o retrato “do outro”, que de início ignoram com um quase desprezo, mas a quem depois se afeiçoam.
 “Perfume de Mulher” coloca ao espectador várias questões curiosas. Primeiramente, na linha de um certo cinema americano que decorre “kerouakianamente” “na estrada”, este é o percurso de dois homens, bastante diferentes entre si, que ao longo de uma viagem se vão descobrindo um ao outro. Os laços que se estabelecem entre os dois não serão de amizade, mas de necessidade. Esses laços impõem uma convivência. Fausto, fanfarrão e senhor de si, vai conduzindo o jogo de bengala na mão e olhos vendados pela cegueira. Apesar desse “handicap” é ele ainda o guia. Pela experiência que demonstra, pela segurança que manifesta, pela invulnerabilidade que dir-se-ia possuir. O jovem Giovanni, entre a delicadeza e a inexperiência, entre a raiva e a piedade, é o contrário de Fausto, completando-o, todavia. Os dias que ambos vivem em comum serão outros tantos dias de experiência recíproca. No final, Giovanni parte, possivelmente mais forte, seguramente desencantado com a fragilidade revelada por Fausto.
Mas esta “viagem em Itália” é ainda pretexto para uma panorâmica rápida, mas cáustica, sobre a sociedade italiana, retratada em apontamentos breves, carregados de significado. Nas ruas, nas carruagens de comboio, nas salas de hotéis, nos terraços de Nápoles, um pouco por todo o lado vai surgindo o perfil de uma sociedade, olhada ora com acidez crítica, ora com a melancólica ternura de um poeta do quotidiano.
A figura de Fausto é, igualmente, um precioso manancial de referências críticas. Através dele escalpeliza-se com rigor e lucidez alguns mitos abertamente mediterrânicos, como o militarismo, o don-juanismo, o machismo “derrubador”, admiravelmente personificados pelo talento, aqui disciplinado, de Vittorio Gassman, num dos mais belos papéis da sua carreira.
Dino Rísi, por seu turno, oscilando perigosamente entre o grotesco e trágico, entre a comédia de costumes e “análise psicológica”, com subtileza e sensibilidade, mostra-se um cineasta perfeitamente amadurecido, na posse de todas as suas faculdades, dominando os meios expressivos de que dispõe, bem assim como os actores sob as suas ordens, Além de Gassman, são de referir, Alessandro Momo, que “Malícia” revelara e a morte precocemente levou (e que seria certamente um grande actor), e Agostina Belli, aliás belíssima.



PERFUME DE MULHER
Título original: Profumo di Donna ou Scent of a Woman ou Sweet Smell of Woman ou That Female Scent 
Realização: Dino Risi (Itália, 1974); Argumento: Ruggero Maccari, Dino Risi, segundo romance de Giovanni Arpino ("Il buio e il mare"); Produção: Pio Angeletti, Adriano De Micheli; Música: Armando Trovajoli; Fotografia (cor): Claudio Cirillo; Montagem: Alberto Gallitti; Design de produção: Lorenzo Baraldi; Guarda-roupa: Benito Pérsico; Assistentes de Realização: Claudio Risi; Companhias de produção: Dean Film; Intérpretes: Vittorio Gassman (capitão Fausto Consolo), Alessandro Momo (Bertazzi, chamado Ciccio), Agostina Belli (Sara), Moira Orfei (Mirka), Franco Ricci (Raffaele), Elena Veronese (Michelina), Lorenzo Piani, Stefania Spugnini (Cândida), Torindo Bernardi   Vincenzo), Marisa Volonnino (Ines), Carla Mancini, Alvaro Vitali (Vittorio), Sergio Di Pinto, Vernon Dobtcheff (Don Carlo), etc. Duração: 103 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais; Estreia em Portugal: 31 de Janeiro de 1976.