quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A AVENTURA


A AVENTURA (1960)

"L'Avventura" data de 1960, e assinala o início de um ciclo que se vai prolongar por "A Noite" ("La Notte', 1961), "O Eclipse" ("L'Eclisse", 1962) e "O Deserto Vermelho" ("Deserto Rosso", 1964), um ciclo durante o qual Antonioni vai analisar alguns aspectos da burguesia italiana, referindo a crise de sentimentos que a caracteriza e que se torna particularmente visível a partir de meados dos anos 50, após o ressurgimento económico da Itália do pós-guerra e durante os primórdios daquilo a que se convencionou chamar o "milagre" italiano, e também "il boom".
Depois de "O Grito”, Antonioni (que se filiara até aí num cinema de raiz romanesca, denso e rigoroso), resolve explorar outros caminhos, afastando-se da sua aproximação ao meio operário do Vale do Pó, aproximando-se dos meios burgueses das grandes cidades. Esta mudança de direcção não representou, no entanto, uma ruptura no seu pensamento. Apenas um deslocar de preocupações, que passaram a ser expressas segundo uma outra estruturação dramática. "A Aventura" lança as primeiras bases de um cinema intencionalmente não romanesco, no sentido tradicional, usando um ritmo lento, que se comparou já ao "nouveau roman" não sem razão, feito de silêncios e de movimento pausados, um cinema de olhares e de objectos, um cinema que se queria de ruptura com as estruturas convencionais e profundamente pessoal. Não foi de estranhar, portanto, a reacção do público de Cannes (em 1960) ao receber a fita com apupos e gritos de raiva. Um crítico afirmaria nessa altura: "Trata-se uma obra de luxo realizada para cinco mil espectadores em todo o mundo". Felizmente, alguns críticos também se enganam.
Regressemos porém, a "Aventura”: Antonioni, numa entrevista publicada na época da estreia, explicou o filme da seguinte forma: "Superficialmente "L'Avventura” pode parecer uma história de amor um pouco misteriosa. Durante uma excursão, uma rapariga desaparece. Isto cria um vazio que é seguidamente preenchido por outros acontecimentos; para o noivo e para a amiga da jovem, a sua procura torna-se numa espécie de itinerário sentimental, no fim do qual ambos se encontram numa situação nova e verdadeiramente imprevista”.


Na verdade, "A Aventura" consegue, de início, criar um clima de filme policial, que se vai desenvolver ao longo de toda a obra, mas de que o centro da acção se vai progressivamente afastando. História de um amor, “A Aventura" é, antes de tudo o mais, relato de uma desagregação, mesmo degradação humana. Desagregação ou degradação que se irá reflectir na figura de Sandro, um arquitecto que lentamente vai cedendo perante novas ofertas que lhe calam os projectos dos seus 23 anos; na figura de um empregado de hotel, verdadeiro "robot" de eficiência e de desumanidade; no círculo de amigos que organizam a excursão até às ilhas Líparis e na pintura dos quais Antonioni exerce uma crítica violenta e desapiedada; ou, sobretudo, na figura de Claudia (Monica Vitti), mulher que lentamente vai fazendo do ócio forma de existência, até perder o domínio dos próprios sentimentos ("Há poucos dias, ao pensar que Anna poderia estar morta, sentia-me morrer também. Agora já nem choro. Do que tenho medo é que ela esteja viva. Tudo se está a transformar com demasiada facilidade. Até a dor parece desaparecer"). Também em Anna que, perante a derrota inevitável, preferiu o suicídio.
Solidão e incomunicabilidade no seio de uma sociedade capitalista, industrializada, ferozmente individualista ou egoísta, eis o tema de "A Aventura". Agonia dos sentimentos num meio social habituado à cedência e ao disfarce, "A Aventura" reflecte, porém, um ou outro aspecto em que é visível: o seu envelhecimento formal, o que não deixa de ser aparentemente paradoxal. Num arrojado filme de vanguarda na sua época, sentem-se mais as rugas passados cinquenta anos. Na verdade, a própria radicalização da proposta para impor uma ruptura no seu tempo, torna-se demasiado visível décadas depois. O que não retira importância ao feito, ainda que o possa relegar para uma arq      ueologia cinematográfica.
A lentidão da sua escrita era ainda um elemento de estilo mal dominado por Antonioni, bem como um ou outro rebuscamento da imagem (enquadramentos e movimentos de câmara) extremamente denunciados. São, por outro lado, evidentes a beleza de grande parte dos seus planos (nomeadamente na sequência das ilhas) e a intencionalidade da narrativa, profundamente estudada e minuciosamente cumprida.
Pode dizer-se que o cinema de Antonioni tem sido, sobretudo depois de "O Grito", uma tentativa de exploração do espaço interno das personagens por si escolhidas. Espaço interno que, embora condicionado e delimitado pela realidade circundante, raro abre para o exterior, construindo-se assim num espaço fechado e, nas mais das vezes, vazio e não disponível. Preenchido simplesmente pelo vazio. Por um egoísmo sem horizontes. Falou-se, e não sem razão, da incomunicabilidade, da impossibilidade das relações (logo do amor, da amizade) dentro dos esquemas conhecidos de uma sociedade industrial (ou industrializada) e técnica (ou tecnicizada). Mas, sobretudo, de uma sociedade orientada para o lucro fácil e o arrivismo. O homem, cada vez mais longe das causas primeiras de uma civilização policroma, simultaneamente aliciante e misteriosa, oscila nas suas convicções, perde o contacto com a realidade (e consigo próprio, enquanto membro dessa realidade) e aliena-se. Donde falar-se (e ainda com razão) de um tema central na obra de Antonioni: a alienação.
De "O Grito” a "O Deserto Vermelho", Antonioni irá aprofundando a análise do Homem alienado no seio de uma sociedade de consumo. Um tema muito em voga nas décadas de 50 e 60, no interior do chamado “realismo socialista” de inspiração comunista ortodoxa, na sua vertente ocidental (nos países de Leste, o “realismo socialista” propuha sobretudo o “homem novo”), mas a que Antonioni trouxe uma nova perspectiva e uma respiração moderna e não muito convencional, como já vimos. Mas os seus protagonistas apresentam, quase todos, sintomas mais ou menos vagos de uma tomada de consciência dessa alienação. Alienação nalguns casos assumida, mas nunca contrariada. As tentativas de superação desse estado revelam-se, em todos os casos, tímidas e receosas. A indiferença é, consequentemente, o espírito que Antonioni denuncia. Indiferença é (dizem-nos) o que se passa entre Sandro e Cláudia ("A Aventura") que, impotentes para resolverem a crise que os atinge, resolvem continuar: indiferença é ainda a solução de "A Noite" onde Giovanni e Lídia adiam uma ruptura previsível: indiferença é o estado de Vittoria e Piero que atravessam "O Eclipse;" indiferença é também a não-solução de Giuliana, em "O Deserto Vermelho". Indiferença, veremos, será ainda a opção de Thomas, em "BIow-Up". Ou o tédio.

A AVENTURA
Título original: L'avventura

Realização: Michelangelo Antonioni (Itália, França, 1960); Argumento: Michelangelo Antonioni (ideia), Elio Bartolini, Tonino Guerra; Produção: Amato Pennasilico; Música: Giovanni Fusco; Fotografia (p/b): Aldo Scavarda; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Piero Poletto; Guarda-roupa: Adriana Berselli; Maquilhagem: Galileo Mandini, Ultimo Peruzzi; Direcção de produção: Enrico Bologna, Fernando Cinquini, Angelo Corso, Luciano Perugia; Assistentes de realização: Gianni Arduini, Franco Indovina; Som: Fausto Ancillai, Claudio Maielli, Nino Renda; Companhias de produção: Cino del Duca, Produzioni Cinematografiche Europee (P.C.E.), Societé Cinématographique Lyre; Intérpretes: Gabriele Ferzetti (Sandro), Monica Vitti (Claudia), Lea Massari (Anna), Dominique Blanchar (Giulia), Renzo Ricci (mãe de Anna), James Addams (Corrado), Dorothy De Poliolo (Gloria Perkins), Lelio Luttazzi (Raimondo), Giovanni Petti (Principe Goffredo), Esmeralda Ruspoli (Patrizia), Jack O'Connell, Angela Tommasi Di Lampedusa, Franco Cimino, Prof. Cucco, Giovanni Danesi, Rita Mole, Renato Pinciroli, Enrico Bologna, Vincenzo Tranchina, etc. Duração: 143 minutos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes (DVD); Classificação etária: M / 12 anos;Data de estreia em Portugal: 16 de Outubro de 1969.

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