A AVENTURA (1960)
"L'Avventura"
data de 1960, e assinala o início de um ciclo que se vai prolongar por "A
Noite" ("La Notte', 1961), "O Eclipse"
("L'Eclisse", 1962) e "O Deserto Vermelho" ("Deserto
Rosso", 1964), um ciclo durante o qual Antonioni vai analisar alguns
aspectos da burguesia italiana, referindo a crise de sentimentos que a
caracteriza e que se torna particularmente visível a partir de meados dos anos
50, após o ressurgimento económico da Itália do pós-guerra e durante os
primórdios daquilo a que se convencionou chamar o "milagre" italiano,
e também "il boom".
Depois
de "O Grito”, Antonioni (que se filiara até aí num cinema de raiz
romanesca, denso e rigoroso), resolve explorar outros caminhos, afastando-se da
sua aproximação ao meio operário do Vale do Pó, aproximando-se dos meios
burgueses das grandes cidades. Esta mudança de direcção não representou, no
entanto, uma ruptura no seu pensamento. Apenas um deslocar de preocupações, que
passaram a ser expressas segundo uma outra estruturação dramática. "A
Aventura" lança as primeiras bases de um cinema intencionalmente não
romanesco, no sentido tradicional, usando um ritmo lento, que se comparou já ao
"nouveau roman" não sem razão, feito de silêncios e de movimento
pausados, um cinema de olhares e de objectos, um cinema que se queria de
ruptura com as estruturas convencionais e profundamente pessoal. Não foi de
estranhar, portanto, a reacção do público de Cannes (em 1960) ao receber a fita
com apupos e gritos de raiva. Um crítico afirmaria nessa altura: "Trata-se
uma obra de luxo realizada para cinco mil espectadores em todo o mundo".
Felizmente, alguns críticos também se enganam.
Regressemos
porém, a "Aventura”: Antonioni, numa entrevista publicada na época da
estreia, explicou o filme da seguinte forma: "Superficialmente
"L'Avventura” pode parecer uma história de amor um pouco misteriosa.
Durante uma excursão, uma rapariga desaparece. Isto cria um vazio que é
seguidamente preenchido por outros acontecimentos; para o noivo e para a amiga
da jovem, a sua procura torna-se numa espécie de itinerário sentimental, no fim
do qual ambos se encontram numa situação nova e verdadeiramente imprevista”.
Na
verdade, "A Aventura" consegue, de início, criar um clima de filme
policial, que se vai desenvolver ao longo de toda a obra, mas de que o centro
da acção se vai progressivamente afastando. História de um amor, “A
Aventura" é, antes de tudo o mais, relato de uma desagregação, mesmo
degradação humana. Desagregação ou degradação que se irá reflectir na figura de
Sandro, um arquitecto que lentamente vai cedendo perante novas ofertas que lhe
calam os projectos dos seus 23 anos; na figura de um empregado de hotel,
verdadeiro "robot" de eficiência e de desumanidade; no círculo de
amigos que organizam a excursão até às ilhas Líparis e na pintura dos quais
Antonioni exerce uma crítica violenta e desapiedada; ou, sobretudo, na figura
de Claudia (Monica Vitti), mulher que lentamente vai fazendo do ócio forma de
existência, até perder o domínio dos próprios sentimentos ("Há poucos
dias, ao pensar que Anna poderia estar morta, sentia-me morrer também. Agora já
nem choro. Do que tenho medo é que ela esteja viva. Tudo se está a transformar
com demasiada facilidade. Até a dor parece desaparecer"). Também em Anna
que, perante a derrota inevitável, preferiu o suicídio.
Solidão
e incomunicabilidade no seio de uma sociedade capitalista, industrializada,
ferozmente individualista ou egoísta, eis o tema de "A Aventura".
Agonia dos sentimentos num meio social habituado à cedência e ao disfarce,
"A Aventura" reflecte, porém, um ou outro aspecto em que é visível: o
seu envelhecimento formal, o que não deixa de ser aparentemente paradoxal. Num
arrojado filme de vanguarda na sua época, sentem-se mais as rugas passados
cinquenta anos. Na verdade, a própria radicalização da proposta para impor uma
ruptura no seu tempo, torna-se demasiado visível décadas depois. O que não
retira importância ao feito, ainda que o possa relegar para uma arq ueologia cinematográfica.
A
lentidão da sua escrita era ainda um elemento de estilo mal dominado por
Antonioni, bem como um ou outro rebuscamento da imagem (enquadramentos e
movimentos de câmara) extremamente denunciados. São, por outro lado, evidentes
a beleza de grande parte dos seus planos (nomeadamente na sequência das ilhas)
e a intencionalidade da narrativa, profundamente estudada e minuciosamente
cumprida.
Pode
dizer-se que o cinema de Antonioni tem sido, sobretudo depois de "O
Grito", uma tentativa de exploração do espaço interno das personagens por
si escolhidas. Espaço interno que, embora condicionado e delimitado pela
realidade circundante, raro abre para o exterior, construindo-se assim num
espaço fechado e, nas mais das vezes, vazio e não disponível. Preenchido
simplesmente pelo vazio. Por um egoísmo sem horizontes. Falou-se, e não sem
razão, da incomunicabilidade, da impossibilidade das relações (logo do amor, da
amizade) dentro dos esquemas conhecidos de uma sociedade industrial (ou
industrializada) e técnica (ou tecnicizada). Mas, sobretudo, de uma sociedade
orientada para o lucro fácil e o arrivismo. O homem, cada vez mais longe das
causas primeiras de uma civilização policroma, simultaneamente aliciante e
misteriosa, oscila nas suas convicções, perde o contacto com a realidade (e
consigo próprio, enquanto membro dessa realidade) e aliena-se. Donde falar-se
(e ainda com razão) de um tema central na obra de Antonioni: a alienação.
De
"O Grito” a "O Deserto Vermelho", Antonioni irá aprofundando a
análise do Homem alienado no seio de uma sociedade de consumo. Um tema muito em
voga nas décadas de 50 e 60, no interior do chamado “realismo socialista” de
inspiração comunista ortodoxa, na sua vertente ocidental (nos países de Leste,
o “realismo socialista” propuha sobretudo o “homem novo”), mas a que Antonioni
trouxe uma nova perspectiva e uma respiração moderna e não muito convencional,
como já vimos. Mas os seus protagonistas apresentam, quase todos, sintomas mais
ou menos vagos de uma tomada de consciência dessa alienação. Alienação nalguns
casos assumida, mas nunca contrariada. As tentativas de superação desse estado
revelam-se, em todos os casos, tímidas e receosas. A indiferença é,
consequentemente, o espírito que Antonioni denuncia. Indiferença é (dizem-nos)
o que se passa entre Sandro e Cláudia ("A Aventura") que, impotentes
para resolverem a crise que os atinge, resolvem continuar: indiferença é ainda
a solução de "A Noite" onde Giovanni e Lídia adiam uma ruptura
previsível: indiferença é o estado de Vittoria e Piero que atravessam "O
Eclipse;" indiferença é também a não-solução de Giuliana, em "O
Deserto Vermelho". Indiferença, veremos, será ainda a opção de Thomas, em
"BIow-Up". Ou o tédio.
A AVENTURA
Título original: L'avventura
Realização: Michelangelo Antonioni
(Itália, França, 1960); Argumento: Michelangelo Antonioni (ideia), Elio
Bartolini, Tonino Guerra; Produção: Amato Pennasilico; Música: Giovanni Fusco;
Fotografia (p/b): Aldo Scavarda; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção:
Piero Poletto; Guarda-roupa: Adriana Berselli; Maquilhagem: Galileo Mandini,
Ultimo Peruzzi; Direcção de produção: Enrico Bologna, Fernando Cinquini, Angelo
Corso, Luciano Perugia; Assistentes de realização: Gianni Arduini, Franco
Indovina; Som: Fausto Ancillai, Claudio Maielli, Nino Renda; Companhias de produção:
Cino del Duca, Produzioni Cinematografiche Europee (P.C.E.), Societé
Cinématographique Lyre; Intérpretes:
Gabriele Ferzetti (Sandro), Monica Vitti (Claudia), Lea Massari (Anna),
Dominique Blanchar (Giulia), Renzo Ricci (mãe de Anna), James Addams (Corrado),
Dorothy De Poliolo (Gloria Perkins), Lelio Luttazzi (Raimondo), Giovanni Petti
(Principe Goffredo), Esmeralda Ruspoli (Patrizia), Jack O'Connell, Angela
Tommasi Di Lampedusa, Franco Cimino, Prof. Cucco, Giovanni Danesi, Rita Mole,
Renato Pinciroli, Enrico Bologna, Vincenzo Tranchina, etc. Duração: 143 minutos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo
Filmes (DVD); Classificação etária: M / 12 anos;Data de estreia em Portugal: 16
de Outubro de 1969.
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