sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A NOITE


A NOITE (1961)

Anterior a “O Eclipse” (1962) e posterior a “A Aventura” (1960), “A Noite” estabelece a ligação entre estes três filmes, todos eles com características muito semelhantes, depois ainda prolongados por “Deserto Vermelho”, este porém já fotografado a cores, o que nesse caso tem uma importância não meramente circunstancial. Todas estas obras constituem um tríptico, ou uma tetralogia (se lhe acrescentarmos “O Deserto Vermelho”) onde se tenta fazer uma análise das relações entre os seres humanos, ou, mais precisamente, das relações entre casais, onde o tema amor ocupa destacado lugar.
A forma como os filmes se estruturam obedece ao esquema de uma tese, que se procura documentar com o explanar de algumas situações previamente definidas e seleccionadas para o efeito que se tem em mente: demonstrar a incomunicabilidade, o isolamento angustiante, o egoísmo congénito a que conduz uma sociedade burguesa, bem instalada na vida, sem se preocupar com os problemas da sociedade como um todo, mas apenas olhando para o seu bem-estar material. Esta era a realidade italiana do pós-guerra, do milagre económico, que conduzia a esta aridez de sentimentos, a esse despojamento de emoções, a esta frieza de afectos. O que há de mais discutível no filme é este tom de tese, mas um dos aspectos mais interessantes da obra é a forma como o cineasta executa esse trajecto não só através do que mostra, mas sobretudo de como mostra, isto é, da forma estilística e plástica como o consegue.


Giovanni Pontano (Marcello Mastroianni) e Lidia (Jeanne Moreau) são casados e vão visitar um amigo, Tommaso Garani (Bernhard Wicki), escritor, que se encontra numa clínica, à beira da morte. Certamente cancro. As imagens iniciais, que acompanham o genérico, são muito elucidativas sobre a realidade que o filme irá abordar seguidamente. São imagens de uma cidade moderna, arranha-céus, edifícios de linhas lisas, de paredes espelhadas. Um elevador exterior vai descendo lentamente sobre essa realidade. Como que entrando nela, aprofundando-a, observando-a demoradamente. A caminho da doença, da morte, de um certo mal-estar, de uma evidente crise de sentimentos. Onde, apesar de tudo, sobressai a ideia de uma certa amizade. Passada. Que a doença e a morte tornam inevitavelmente remota.
Abandonada a clínica, não sem antes uma rapariga internada se aproximar de Giovanni com ideias muito definidas sobre o que pretende - sexo a todo o custo - o casal dirige-se a uma livraria onde Giovanni é homenageado com um beberete de lançamento do seu novo livro. Lidia havia anteriormente vagueado pelas ruas e arredores de Milão, parando aqui e ali e sorrindo para um ou outro transeunte que com ela se cruzam. Interpõe-se entre dois jovens que lutam. Sente-se a sua necessidade de intervir. Alheada das grandes construções modernas, Lidia pára em casas arruinadas, com passado, com a superfície a esfarelar-se e a ruir como caliça. Um mundo acaba.
À noite ambos saem, primeiro assistem a uma sessão de strip-tease num cabaret, depois passam o resto da noite em casa dos Gherardini, família de um industrial riquíssimo que convida Giovanni a trabalhar para a sua firma. No início, a festa parece uma reunião de sonâmbulos, depois anima-se em redor de um cavalo e cavaleiro que se encontram no jardim. Até de madrugada, marido e mulher, cada um por seu lado, vão estabelecendo contactos com novos conhecimentos. Giovanni interessa-se por Valentine (Monica Vitti), filha do dono da casa, uma mulher que se pressente também ela mal integrada naquele universo que se movimenta sem sentido. Lídia adivinha o interesse de Giovanni, surpreende um beijo furtivo, descobre essa nova paixão do marido. Ela própria aceita uma boleia de um desconhecido, para um passeio nocturno de carro.


Ao nascer do dia seguinte, Giovanni e Lidia reaproximam-se, mas sabem que o seu amor fracassou. Lidia confessa mesmo “Já não te amo, tu também já não me amas”, mas o marido tenta reatar o que já nada salvará. Ambos o reconhecem apesar dos beijos que trocam estendidos na relva.
Mais uma vez Antonioni se abeira de uma crise de sentimentos, a ruína dos afectos, numa sociedade que lentamente vai resvalando para uma impessoalidade que a arquitectura retrata admiravelmente. Nestas superfícies modernas, as emoções resvalam sem apego. Esta crise, que dura um dia, que se aproxima da tragédia grega pela unidade de tempo, espaço e personagens, inicia-se com um acontecimento de mau agoiro (a morte do amigo na clínica), estende-se e vai evoluindo ao longo de quase vinte e quatro horas.
Esta trilogia da erosão dos sentimentos na sociedade italiana visa uma crítica objectiva à situação caótica de um tempo sem valores, ou que progressivamente se vai deles afastando. O homem quase se coisifica, tal como os objectos que o cineasta filma longamente, ou essas paredes frias, cheias de arestas cortantes, sem a espessura das paredes de outrora. Antonioni aponta obviamente os males, os vícios – em “A Noite” o meio industrial, os multimilionários que “compram” intelectuais para enfeitarem as suas empresas e se dedicam bucolicamente ao cultivo de rosas.
Poderá discutir-se a forma como Antonioni chega a essas conclusões, não a sinceridade da sua denúncia, bem enraizada numa observação crítica e expressa num aparente formalismo também ele distante e gélido. Afinal esse olhar de Antonioni é o equivalente encontrado pelo autor para exprimir por imagens o que pretende dizer, sem o recurso a muitas palavras. É o próprio Giovanni quem, a certa altura do filme, afirma encontrar-se em crise. Não “de sobre o que escrever, mas de como o escrever”. Novas realidades pressupõem novas abordagens, e o cinema de Antonioni é bem o representante fidedigno dessa nova realidade italiana, que nada tinha já a ver com a Itália do fascismo e do fim da guerra, a Itália do primeiro tempo do neo-realismo.
Antonioni, numa mesma linha de raciocínio, foi sempre um cineasta, um artista, aberto à novidade e ao que está na moda. Nesta trilogia ele interpenetra o cinema e o “nouveau roman”, como mais tarde irá assumir o digital (“O Mistério de Oberwald”), como noutras obras se deixara contaminar pela estética psicadélica (em “Blow Up” e sobretudo em “Zabriskie Point”), como tentará compreender o fenómeno da contracultura (em “Zabriskie Point”), como viajará até à China (em “Chung Kuo”), como investirá num erotismo de anos 80 (em “Identificação de uma Mulher), etc.
De resto, “A Noite” é uma brilhante obra de arte, onde planos e movimentos de câmara existem pela necessidade íntima dos acontecimentos que retratam e das intenções do autor que os comenta. Tudo se enquadra de forma a tornar clara uma frase citada no filme: “a democracia é a forma de aceitar as coisas como elas são”. Ao que Giovanni contrapõe que o escritor que tal afirmou o disse com ironia e não como o que nessa altura era aceite como verdade. Logo, para Antonioni a democracia seria, muito pelo contrário, e sem ironia, “a forma de alterar as coisas”.

A NOITE
Título original: La Notte

Realização: Michelangelo Antonioni (Itália, França, 1961); Argumento: Michelangelo Antonioni, Ennio Flaiano, Tonino Guerra; Produção: Emanuele Cassuto; Música: Giorgio Gaslini; Fotografia (p/b): Gianni Di Venanzo; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Piero Zuffi; Maquilhagem: Micheline Chaperon, Franco Freda, Simone Knapp, Amalia Paoletti; Direcção de produção: Roberto Cocco, Paolo Frascá; Assistentes de realização: Franco Indovina, Berto Pelosso; Som: Claudio Maielli; Companhias de produção: Nepi Film, Silver Films, Sofitedip; Intérpretes: Marcello Mastroianni (Giovanni Pontano), Jeanne Moreau (Lidia), Monica Vitti (Valentina Gherardini), Bernhard Wicki (Tommaso Garani), Rosy Mazzacurati (Rosy), Maria Pia Luzi (uma convidada), Guido A. Marsan (Fanti), Vittorio Bertolini, Vincenzo Corbella (Mr. Gherardini), Ugo Fortunati (Cesarino), Gitt Magrini (Signora Gherardini), Giorgio Negro (Roberto), Odile Jean, Valentino Bompiani, Roberto Danesi, Umberto Eco, Giansiro Ferrata, Giorgio Gaslin, Alceo Guatelli, Ottiero Ottieri, Salvatore Quasimodo, Ettore Univelli, Eraldo Volonte, etc. Duração: 117 minutos; Classificação etária: M/17 anos (na estreia em salas de cinema); M/ 12 anos (em DVD); Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Estreia em Portugal: 16 de Julho de 1964 (Cinema S. Jorge).

Sem comentários:

Enviar um comentário