A NOITE (1961)
Anterior
a “O Eclipse” (1962) e posterior a “A Aventura” (1960), “A Noite” estabelece a
ligação entre estes três filmes, todos eles com características muito
semelhantes, depois ainda prolongados por “Deserto Vermelho”, este porém já
fotografado a cores, o que nesse caso tem uma importância não meramente
circunstancial. Todas estas obras constituem um tríptico, ou uma tetralogia (se
lhe acrescentarmos “O Deserto Vermelho”) onde se tenta fazer uma análise das
relações entre os seres humanos, ou, mais precisamente, das relações entre
casais, onde o tema amor ocupa destacado lugar.
A forma
como os filmes se estruturam obedece ao esquema de uma tese, que se procura
documentar com o explanar de algumas situações previamente definidas e
seleccionadas para o efeito que se tem em mente: demonstrar a
incomunicabilidade, o isolamento angustiante, o egoísmo congénito a que conduz
uma sociedade burguesa, bem instalada na vida, sem se preocupar com os
problemas da sociedade como um todo, mas apenas olhando para o seu bem-estar
material. Esta era a realidade italiana do pós-guerra, do milagre económico,
que conduzia a esta aridez de sentimentos, a esse despojamento de emoções, a
esta frieza de afectos. O que há de mais discutível no filme é este tom de
tese, mas um dos aspectos mais interessantes da obra é a forma como o cineasta
executa esse trajecto não só através do que mostra, mas sobretudo de como
mostra, isto é, da forma estilística e plástica como o consegue.
Giovanni
Pontano (Marcello Mastroianni) e Lidia (Jeanne Moreau) são casados e vão
visitar um amigo, Tommaso Garani (Bernhard Wicki), escritor, que se encontra
numa clínica, à beira da morte. Certamente cancro. As imagens iniciais, que
acompanham o genérico, são muito elucidativas sobre a realidade que o filme irá
abordar seguidamente. São imagens de uma cidade moderna, arranha-céus,
edifícios de linhas lisas, de paredes espelhadas. Um elevador exterior vai
descendo lentamente sobre essa realidade. Como que entrando nela,
aprofundando-a, observando-a demoradamente. A caminho da doença, da morte, de
um certo mal-estar, de uma evidente crise de sentimentos. Onde, apesar de tudo,
sobressai a ideia de uma certa amizade. Passada. Que a doença e a morte tornam
inevitavelmente remota.
Abandonada
a clínica, não sem antes uma rapariga internada se aproximar de Giovanni com
ideias muito definidas sobre o que pretende - sexo a todo o custo - o casal
dirige-se a uma livraria onde Giovanni é homenageado com um beberete de
lançamento do seu novo livro. Lidia havia anteriormente vagueado pelas ruas e
arredores de Milão, parando aqui e ali e sorrindo para um ou outro transeunte
que com ela se cruzam. Interpõe-se entre dois jovens que lutam. Sente-se a sua
necessidade de intervir. Alheada das grandes construções modernas, Lidia pára em
casas arruinadas, com passado, com a superfície a esfarelar-se e a ruir como
caliça. Um mundo acaba.
À noite
ambos saem, primeiro assistem a uma sessão de strip-tease num cabaret, depois
passam o resto da noite em casa dos Gherardini, família de um industrial
riquíssimo que convida Giovanni a trabalhar para a sua firma. No início, a
festa parece uma reunião de sonâmbulos, depois anima-se em redor de um cavalo e
cavaleiro que se encontram no jardim. Até de madrugada, marido e mulher, cada
um por seu lado, vão estabelecendo contactos com novos conhecimentos. Giovanni
interessa-se por Valentine (Monica Vitti), filha do dono da casa, uma mulher
que se pressente também ela mal integrada naquele universo que se movimenta sem
sentido. Lídia adivinha o interesse de Giovanni, surpreende um beijo furtivo,
descobre essa nova paixão do marido. Ela própria aceita uma boleia de um
desconhecido, para um passeio nocturno de carro.
Ao
nascer do dia seguinte, Giovanni e Lidia reaproximam-se, mas sabem que o seu
amor fracassou. Lidia confessa mesmo “Já não te amo, tu também já não me amas”,
mas o marido tenta reatar o que já nada salvará. Ambos o reconhecem apesar dos
beijos que trocam estendidos na relva.
Mais
uma vez Antonioni se abeira de uma crise de sentimentos, a ruína dos afectos,
numa sociedade que lentamente vai resvalando para uma impessoalidade que a
arquitectura retrata admiravelmente. Nestas superfícies modernas, as emoções
resvalam sem apego. Esta crise, que dura um dia, que se aproxima da tragédia
grega pela unidade de tempo, espaço e personagens, inicia-se com um
acontecimento de mau agoiro (a morte do amigo na clínica), estende-se e vai
evoluindo ao longo de quase vinte e quatro horas.
Esta
trilogia da erosão dos sentimentos na sociedade italiana visa uma crítica
objectiva à situação caótica de um tempo sem valores, ou que progressivamente
se vai deles afastando. O homem quase se coisifica, tal como os objectos que o
cineasta filma longamente, ou essas paredes frias, cheias de arestas cortantes,
sem a espessura das paredes de outrora. Antonioni aponta obviamente os males,
os vícios – em “A Noite” o meio industrial, os multimilionários que “compram”
intelectuais para enfeitarem as suas empresas e se dedicam bucolicamente ao
cultivo de rosas.
Poderá discutir-se
a forma como Antonioni chega a essas conclusões, não a sinceridade da sua
denúncia, bem enraizada numa observação crítica e expressa num aparente
formalismo também ele distante e gélido. Afinal esse olhar de Antonioni é o
equivalente encontrado pelo autor para exprimir por imagens o que pretende
dizer, sem o recurso a muitas palavras. É o próprio Giovanni quem, a certa
altura do filme, afirma encontrar-se em crise. Não “de sobre o que escrever,
mas de como o escrever”. Novas realidades pressupõem novas abordagens, e o
cinema de Antonioni é bem o representante fidedigno dessa nova realidade
italiana, que nada tinha já a ver com a Itália do fascismo e do fim da guerra,
a Itália do primeiro tempo do neo-realismo.
Antonioni,
numa mesma linha de raciocínio, foi sempre um cineasta, um artista, aberto à
novidade e ao que está na moda. Nesta trilogia ele interpenetra o cinema e o
“nouveau roman”, como mais tarde irá assumir o digital (“O Mistério de
Oberwald”), como noutras obras se deixara contaminar pela estética psicadélica
(em “Blow Up” e sobretudo em “Zabriskie Point”), como tentará compreender o
fenómeno da contracultura (em “Zabriskie Point”), como viajará até à China (em
“Chung Kuo”), como investirá num erotismo de anos 80 (em “Identificação de uma
Mulher), etc.
De
resto, “A Noite” é uma brilhante obra de arte, onde planos e movimentos de
câmara existem pela necessidade íntima dos acontecimentos que retratam e das
intenções do autor que os comenta. Tudo se enquadra de forma a tornar clara uma
frase citada no filme: “a democracia é a forma de aceitar as coisas como elas
são”. Ao que Giovanni contrapõe que o escritor que tal afirmou o disse com
ironia e não como o que nessa altura era aceite como verdade. Logo, para
Antonioni a democracia seria, muito pelo contrário, e sem ironia, “a forma de
alterar as coisas”.
A NOITE
Título original: La Notte
Realização: Michelangelo Antonioni
(Itália, França, 1961); Argumento: Michelangelo Antonioni, Ennio Flaiano,
Tonino Guerra; Produção: Emanuele Cassuto; Música: Giorgio Gaslini; Fotografia
(p/b): Gianni Di Venanzo; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Piero
Zuffi; Maquilhagem: Micheline Chaperon, Franco Freda, Simone Knapp, Amalia
Paoletti; Direcção de produção: Roberto Cocco, Paolo Frascá; Assistentes de
realização: Franco Indovina, Berto Pelosso; Som: Claudio Maielli; Companhias de
produção: Nepi Film, Silver Films, Sofitedip; Intérpretes: Marcello Mastroianni (Giovanni Pontano), Jeanne Moreau
(Lidia), Monica Vitti (Valentina Gherardini), Bernhard Wicki (Tommaso Garani),
Rosy Mazzacurati (Rosy), Maria Pia Luzi (uma convidada), Guido A. Marsan
(Fanti), Vittorio Bertolini, Vincenzo Corbella (Mr. Gherardini), Ugo Fortunati
(Cesarino), Gitt Magrini (Signora Gherardini), Giorgio Negro (Roberto), Odile
Jean, Valentino Bompiani, Roberto Danesi, Umberto Eco, Giansiro Ferrata,
Giorgio Gaslin, Alceo Guatelli, Ottiero Ottieri, Salvatore Quasimodo, Ettore
Univelli, Eraldo Volonte, etc. Duração:
117 minutos; Classificação etária: M/17 anos (na estreia em salas de cinema);
M/ 12 anos (em DVD); Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Estreia
em Portugal: 16 de Julho de 1964 (Cinema S. Jorge).
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