O ECLIPSE (1962)
“O
Eclipse” prolonga as duas obras anteriores de Antonioni. Mais do que qualquer
uma das outras, é um filme quase sem “estória”. Muito pouco se passa de
movimento exterior nesta obra que se vira sobretudo para o interior das
personagens, essencialmente para o íntimo de uma mulher em crise emocional. Do
que nos apercebemos é efectivamente dos efeitos exteriores de um colapso
interior. Antonioni volta a servir-se da paisagem urbana, nomeadamente da
arquitectura, dos ambientes, exteriores e interiores, para nos fazer acompanhar
a evolução de um estado de alma. Aparentemente pouco se passa durante as duas
horas da projecção de “O Eclipse”. Pouco acontece, no sentido mais convencional
e tradicional da expressão. Não há o que se possa chamar uma acção central,
definida; não há, sobretudo, qualquer tentativa de uma história movida a
peripécias de acção exterior.
Antonioni
pretende colocar o espectador perante factos, elementos dispersos, carregados
de significado e de intenção que, observados e apreendidos pelo nosso olhar,
recriariam o clima e o ambiente que procurou transmitir. Como tal, a película
não tem necessariamente um fim, nem sequer se poderá nela encontrar um início.
Tudo
começa e acaba como se tivesse sido colhido do natural, de improviso. O
ambiente surge de chofre, numa longa sequência de intercalados silêncios e
termina num silêncio muito mais pesado e denso, desumano e trágico. Não há
princípio, nem fim, neste eclipse. Tudo fica a pairar, em estado latente. Antonioni
explicou: “Detesto os filmes de mensagens. Procuro simplesmente contar, ou mais
precisamente mostrar, certas vicissitudes e espero que elas agradem, mesmo que
sejam amargas. (...) Mas é o próprio filme, acabado, que deve revelar o seu
significado. Se possuirmos ideias, e se somos sinceros na nossa narração, elas acabam
sempre por se impor”. Há aqui algum paradoxo, é óbvio. Se o filme se impõe é
porque traz dentro de si uma mensagem que se revela ao longo da sua projecção.
A propósito de “A Noite” falámos da defesa de uma tese. O que o cineasta
procura mostrar/demonstrar é que a sociedade sua contemporânea (anos 60,
Itália) se desumanizou, se coisificou, transformou as pessoas em coisas, em
números.
“No
plano da construção dramática, “O Eclipse” distingue-se pela sua originalidade.
Compreende quatro partes distintas: 45 minutos consagrados só a Vittoria, 40
minutos consagrados só a Piero, 39 minutos consagrados às suas relações, 10
minutos de poema sobre os objectos, consagrados a filmar a ausência de Vittoria
e de Piero” (Pierre Biltard – “Cinema 62”, N." 66).
O dia
amanhece. Num apartamento de classe média, Vittoria (Monica Vitti) rompe com
Roberto (Francisco Rabal). Apesar de tudo o que este alega, ela está inabalável
na sua resolução. Os objectos participam do desacordo. Um cinzeiro que se parte
é, significativamente, o sinal, o indício de que tudo é irremediável. Robert
Benayoun: “Os objectos, os surrealistas mostraram-no bem, têm uma “carga”
emotiva que depende sobretudo da sua posição relativa e que se exerce nos
próprios lugares que habitam. Mesmo que um só seja deslocado, o encantamento
cede o passo à inquietude, mesmo à ameaça”. (Positif, nº 49).
Vittoria
abandona Roberto e sai de casa, vai até à Bolsa procurar a mãe. Novo ambiente
nos é revelado, com a sua loucura, a sua alienação, a rivalidade sem escrúpulos.
Os números que se gritam. Mãe e filha encontram-se. Mas cada uma tem as suas
preocupações próprias e alheiam-se uma da outra.
De
regresso, Vittoria vai a casa de uma amiga, do Quénia, onde passa parte da
noite, conhecendo e deixando-se impressionar por uma África de bilhete-postal,
folclórica e frívola. Isto serve-lhe de pretexto para se deixar envolver por
todo o primitivismo negro, pelo amor instintivo e sensual.
No dia
seguinte, volta à Bolsa. Uma baixa catastrófica arruína muita gente. As altas
finanças ressentem-se do facto; os pequenos jogadores vão à falência,
completamente. A mãe é uma das vítimas. Vittoria conhece então um jovem
corrector, Piero (Alan Delon), rapaz trabalhador, atarefado e inteiramente
devotado às altas e baixas da Bolsa. Piero acompanha-a a casa e entre ambos
estabelece-se uma relação mais íntima. Alguns episódios dir-se-ia indicarem que
Piero e Vittoria viviam agora um amor. A separação virá, porém. Vittoria
pergunta: “Há, verdadeiramente, necessidade de amar?” Ao que o filme se encarregará
de responder negativamente. A película termina com uma longa e bela sequência
desumanizada, fria e coisificada, onde se vão vendo os diversos locais por onde
se foi construindo o idílio de Piero e Vittoria. Estão agora vazios de gente. A paisagem
é árida e sombria. O ambiente é pesado, metalizado, de lúgubres cinzentos. Uma
leve aragem faz oscilar os ramos de algumas árvores. A ausência dos amantes é,
então, sentida de maneira trágica. Cai a noite. Ilumina-se a cidade. Um grande
plano de um candeeiro da avenida surge ofuscante de luz.
Foi
Antonioni quem afirmou: “Não é verdade que o neo-realismo acabou, ele evolui,
pois um movimento, uma corrente, apenas acabam quando são substituídos por um
desenvolvimento posterior. (...) O neo-realismo do após-guerra, quando a
realidade era tão escaldante e imediata, chamava a atenção sobre a relação
existente entre a personagem e a realidade. Era justamente essa relação que era
importante e que criava um cinema de situação. Actualmente, ao invés, enquanto
a realidade mais ou menos se normalizou, parece-me mais interessante examinar o
que permaneceu nos personagens das suas experiências passadas”. Ou, de outro
modo: “Na hora actual, num cinema normalizado - bem ou mal -, a narrativa
prende-se menos às relações do indivíduo com o ambiente do que ao indivíduo em
si, em toda a sua complexa e inquietante verdade. O que é que atormenta e
impele o homem moderno? Daquilo que acontece, a si e ao mundo, quais são as
ressonâncias em si mesmo?”
Mas foi
igualmente o mesmo autor quem disse: “Penso que os homens de cinema deviam
estar sempre ligados, tal como a sua inspiração, ao seu tempo, não tanto para
exprimi-lo e interpretá-lo nos seus acontecimentos mais realistas e mais
trágicos (…), mas sobretudo para dele recolher as ressonâncias para podermos
ser conscientes e sinceros connosco mesmo, honestos e corajosos para com os
outros”.
A
respeito da sinceridade, fala mais adiante: “Ser sincero implica fazer uma obra
um pouco autobiográfica. Um realizador que trabalha sinceramente é um homem
antes de ser um autor e põe-se inteiramente nos seus filmes e exprime,
portanto, a sua moral, as suas opiniões”.
As
afirmações de Antonioni atrás transcritas servem para explicar, em certa
medida, o filme. Na realidade, se “O Eclipse” se pode considerar uma obra
enraizada num certo contexto que é analisado, não é menos verdade ser uma obra
nitidamente pessoal, não diremos autobiográfica, mas, pelo menos, reflexo de
uma posição moral e de opiniões bem próprias e características. A presença de
Monica Vitti, então mulher do realizador e sua actriz emblemática, ajuda a
confirmar este propósito.
O ritmo
cinematográfico de “O Eclipse” é voluntariamente lento e essa lentidão é
conseguida por sucessivos planos, de curta duração que, em lugar de fazer
avançar a acção, a retardam, fragmentando-a em imagens colhidas de diversos
ângulos. Há, como que uma análise, uma decomposição da realidade.
Nota-se,
por outro lado, em “O Eclipse”, como já o assinalámos, uma intromissão dos
próprios objectos na acção, no desenrolar do tema, na criação de um clima. É
frequente ver-se uma imagem que capta um cinzeiro, uma folha, um pedaço de
madeira, uma avenida deserta, uma faixa de passagem de peões, etc. Quase
diríamos ser o inorgânico a explicar o comportamento dos personagens.
Tal
como em “O Último Ano em Marienbad”, de Alain Resnais, uma obra de 1961,
contemporânea desta trilogia de Antonioni, mas cada caso expresso de uma forma
muito pessoal, podem e devem notar-se as flagrantes semelhanças entre Antonioni
e o “nouveau-roman”. A influência deve ser recíproca, mas é possível que tenham
sido os primitivos filmes de Antonioni a sugerirem a utilização desse processo
narrativo. Cremos que foi Claude Simon quem declarou que toda a sua obra
literária era directamente influenciada pelo cinema de Michelangelo Antonioni.
Por ouro lado, foi Alain Robbe-Grillet quem escreveu e dialogou “Marienbad”.
O ECLIPSE
Título original: L'Eclisse
Realização: Michelangelo Antonioni
(Itália, França, 1962); Argumento: Michelangelo Antonioni, Tonino Guerra, Elio
Bartolini, Ottiero Ottieri, Produção: Raymond Hakim, Robert Hakim; Música:
Giovanni Fusco; Fotografia (p/b): Gianni Di Venanzo; Montagem: Eraldo Da Roma;
Design de produção: Piero Poletto; Direcção artística: Piero Poletto; Guarda-roupa:
Bice Brichetto, Gitt Magrini; Maquilhagem: Franco Freda; Direcção de produção:
Giorgio Baldi, Danilo Marciani; Assistentes de realização: Gianni Arduini,
Franco Indovina; Som: Renato Cadueri, Claudio Maielli; Companhias de produção:
Cineriz, Interopa Film, Paris Film; Intérpretes:
Alain Delon (Piero), Monica Vitti (Vittoria), Francisco Rabal (Riccardo), Lilla
Brignone (mãe de Vittoria), Rossana Rory (Anita), Mirella Ricciardi (Marta),
Louis Seigner (Ercoli), Cyrus Elias, etc. Duração:
126 minutos; Classificação etária: M/17 anos (na estreia em salas de cinema);
Distribuição em Portugal (na estreia em salas de cinema): Filmes Lusomundo;
Distribuição em Portugal (DVD): inexistente; Distribuição (DVD): The Criterion
Collection (legendas em inglês).
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