sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O ECLIPSE


O ECLIPSE (1962)

“O Eclipse” prolonga as duas obras anteriores de Antonioni. Mais do que qualquer uma das outras, é um filme quase sem “estória”. Muito pouco se passa de movimento exterior nesta obra que se vira sobretudo para o interior das personagens, essencialmente para o íntimo de uma mulher em crise emocional. Do que nos apercebemos é efectivamente dos efeitos exteriores de um colapso interior. Antonioni volta a servir-se da paisagem urbana, nomeadamente da arquitectura, dos ambientes, exteriores e interiores, para nos fazer acompanhar a evolução de um estado de alma. Aparentemente pouco se passa durante as duas horas da projecção de “O Eclipse”. Pouco acontece, no sentido mais convencional e tradicional da expressão. Não há o que se possa chamar uma acção central, definida; não há, sobretudo, qualquer tentativa de uma história movida a peripécias de acção exterior.
Antonioni pretende colocar o espectador perante factos, elementos dispersos, carregados de significado e de intenção que, observados e apreendidos pelo nosso olhar, recriariam o clima e o ambiente que procurou transmitir. Como tal, a película não tem necessariamente um fim, nem sequer se poderá nela encontrar um início.
Tudo começa e acaba como se tivesse sido colhido do natural, de improviso. O ambiente surge de chofre, numa longa sequência de intercalados silêncios e termina num silêncio muito mais pesado e denso, desumano e trágico. Não há princípio, nem fim, neste eclipse. Tudo fica a pairar, em estado latente. Antonioni explicou: “Detesto os filmes de mensagens. Procuro simplesmente contar, ou mais precisamente mostrar, certas vicissitudes e espero que elas agradem, mesmo que sejam amargas. (...) Mas é o próprio filme, acabado, que deve revelar o seu significado. Se possuirmos ideias, e se somos sinceros na nossa narração, elas acabam sempre por se impor”. Há aqui algum paradoxo, é óbvio. Se o filme se impõe é porque traz dentro de si uma mensagem que se revela ao longo da sua projecção. A propósito de “A Noite” falámos da defesa de uma tese. O que o cineasta procura mostrar/demonstrar é que a sociedade sua contemporânea (anos 60, Itália) se desumanizou, se coisificou, transformou as pessoas em coisas, em números.
“No plano da construção dramática, “O Eclipse” distingue-se pela sua originalidade. Compreende quatro partes distintas: 45 minutos consagrados só a Vittoria, 40 minutos consagrados só a Piero, 39 minutos consagrados às suas relações, 10 minutos de poema sobre os objectos, consagrados a filmar a ausência de Vittoria e de Piero” (Pierre Biltard – “Cinema 62”, N." 66).
O dia amanhece. Num apartamento de classe média, Vittoria (Monica Vitti) rompe com Roberto (Francisco Rabal). Apesar de tudo o que este alega, ela está inabalável na sua resolução. Os objectos participam do desacordo. Um cinzeiro que se parte é, significativamente, o sinal, o indício de que tudo é irremediável. Robert Benayoun: “Os objectos, os surrealistas mostraram-no bem, têm uma “carga” emotiva que depende sobretudo da sua posição relativa e que se exerce nos próprios lugares que habitam. Mesmo que um só seja deslocado, o encantamento cede o passo à inquietude, mesmo à ameaça”. (Positif, nº 49).


Vittoria abandona Roberto e sai de casa, vai até à Bolsa procurar a mãe. Novo ambiente nos é revelado, com a sua loucura, a sua alienação, a rivalidade sem escrúpulos. Os números que se gritam. Mãe e filha encontram-se. Mas cada uma tem as suas preocupações próprias e alheiam-se uma da outra.
De regresso, Vittoria vai a casa de uma amiga, do Quénia, onde passa parte da noite, conhecendo e deixando-se impressionar por uma África de bilhete-postal, folclórica e frívola. Isto serve-lhe de pretexto para se deixar envolver por todo o primitivismo negro, pelo amor instintivo e sensual.
No dia seguinte, volta à Bolsa. Uma baixa catastrófica arruína muita gente. As altas finanças ressentem-se do facto; os pequenos jogadores vão à falência, completamente. A mãe é uma das vítimas. Vittoria conhece então um jovem corrector, Piero (Alan Delon), rapaz trabalhador, atarefado e inteiramente devotado às altas e baixas da Bolsa. Piero acompanha-a a casa e entre ambos estabelece-se uma relação mais íntima. Alguns episódios dir-se-ia indicarem que Piero e Vittoria viviam agora um amor. A separação virá, porém. Vittoria pergunta: “Há, verdadeiramente, necessidade de amar?” Ao que o filme se encarregará de responder negativamente. A película termina com uma longa e bela sequência desumanizada, fria e coisificada, onde se vão vendo os diversos locais por onde se foi construindo o idílio de Piero e Vittoria. Estão agora vazios de gente. A paisagem é árida e sombria. O ambiente é pesado, metalizado, de lúgubres cinzentos. Uma leve aragem faz oscilar os ramos de algumas árvores. A ausência dos amantes é, então, sentida de maneira trágica. Cai a noite. Ilumina-se a cidade. Um grande plano de um candeeiro da avenida surge ofuscante de luz.
Foi Antonioni quem afirmou: “Não é verdade que o neo-realismo acabou, ele evolui, pois um movimento, uma corrente, apenas acabam quando são substituídos por um desenvolvimento posterior. (...) O neo-realismo do após-guerra, quando a realidade era tão escaldante e imediata, chamava a atenção sobre a relação existente entre a personagem e a realidade. Era justamente essa relação que era importante e que criava um cinema de situação. Actualmente, ao invés, enquanto a realidade mais ou menos se normalizou, parece-me mais interessante examinar o que permaneceu nos personagens das suas experiências passadas”. Ou, de outro modo: “Na hora actual, num cinema normalizado - bem ou mal -, a narrativa prende-se menos às relações do indivíduo com o ambiente do que ao indivíduo em si, em toda a sua complexa e inquietante verdade. O que é que atormenta e impele o homem moderno? Daquilo que acontece, a si e ao mundo, quais são as ressonâncias em si mesmo?”



Mas foi igualmente o mesmo autor quem disse: “Penso que os homens de cinema deviam estar sempre ligados, tal como a sua inspiração, ao seu tempo, não tanto para exprimi-lo e interpretá-lo nos seus acontecimentos mais realistas e mais trágicos (…), mas sobretudo para dele recolher as ressonâncias para podermos ser conscientes e sinceros connosco mesmo, honestos e corajosos para com os outros”.
A respeito da sinceridade, fala mais adiante: “Ser sincero implica fazer uma obra um pouco autobiográfica. Um realizador que trabalha sinceramente é um homem antes de ser um autor e põe-se inteiramente nos seus filmes e exprime, portanto, a sua moral, as suas opiniões”.
As afirmações de Antonioni atrás transcritas servem para explicar, em certa medida, o filme. Na realidade, se “O Eclipse” se pode considerar uma obra enraizada num certo contexto que é analisado, não é menos verdade ser uma obra nitidamente pessoal, não diremos autobiográfica, mas, pelo menos, reflexo de uma posição moral e de opiniões bem próprias e características. A presença de Monica Vitti, então mulher do realizador e sua actriz emblemática, ajuda a confirmar este propósito.
O ritmo cinematográfico de “O Eclipse” é voluntariamente lento e essa lentidão é conseguida por sucessivos planos, de curta duração que, em lugar de fazer avançar a acção, a retardam, fragmentando-a em imagens colhidas de diversos ângulos. Há, como que uma análise, uma decomposição da realidade.
Nota-se, por outro lado, em “O Eclipse”, como já o assinalámos, uma intromissão dos próprios objectos na acção, no desenrolar do tema, na criação de um clima. É frequente ver-se uma imagem que capta um cinzeiro, uma folha, um pedaço de madeira, uma avenida deserta, uma faixa de passagem de peões, etc. Quase diríamos ser o inorgânico a explicar o comportamento dos personagens.
Tal como em “O Último Ano em Marienbad”, de Alain Resnais, uma obra de 1961, contemporânea desta trilogia de Antonioni, mas cada caso expresso de uma forma muito pessoal, podem e devem notar-se as flagrantes semelhanças entre Antonioni e o “nouveau-roman”. A influência deve ser recíproca, mas é possível que tenham sido os primitivos filmes de Antonioni a sugerirem a utilização desse processo narrativo. Cremos que foi Claude Simon quem declarou que toda a sua obra literária era directamente influenciada pelo cinema de Michelangelo Antonioni. Por ouro lado, foi Alain Robbe-Grillet quem escreveu e dialogou “Marienbad”.

O ECLIPSE
Título original: L'Eclisse

Realização: Michelangelo Antonioni (Itália, França, 1962); Argumento: Michelangelo Antonioni, Tonino Guerra, Elio Bartolini, Ottiero Ottieri, Produção: Raymond Hakim, Robert Hakim; Música: Giovanni Fusco; Fotografia (p/b): Gianni Di Venanzo; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Piero Poletto; Direcção artística: Piero Poletto; Guarda-roupa: Bice Brichetto, Gitt Magrini; Maquilhagem: Franco Freda; Direcção de produção: Giorgio Baldi, Danilo Marciani; Assistentes de realização: Gianni Arduini, Franco Indovina; Som: Renato Cadueri, Claudio Maielli; Companhias de produção: Cineriz, Interopa Film, Paris Film; Intérpretes: Alain Delon (Piero), Monica Vitti (Vittoria), Francisco Rabal (Riccardo), Lilla Brignone (mãe de Vittoria), Rossana Rory (Anita), Mirella Ricciardi (Marta), Louis Seigner (Ercoli), Cyrus Elias, etc. Duração: 126 minutos; Classificação etária: M/17 anos (na estreia em salas de cinema); Distribuição em Portugal (na estreia em salas de cinema): Filmes Lusomundo; Distribuição em Portugal (DVD): inexistente; Distribuição (DVD): The Criterion Collection (legendas em inglês).

Sem comentários:

Enviar um comentário