PROFISSÃO REPÓRTER (1975)
Continuando a deambular pelo mundo,
recolhendo imagens e sons (qual repórter), Antonioni viaja até à China de Mao
Tse Tung, que lhe abre as portas para um longo documentário. Os resultados,
porém, não agradaram às entidades oficiais chinesas, que tentaram
"vetar" o filme um pouco por todo o lado. Estamos em 1972. Dois anos
depois, com "The Passenger", a rota de Michelangelo prossegue.
Continuando a trabalhar fora de Itália, o cenário muda, agora estende-se do
Norte de África até Londres, Munique e Espanha.
David Locke (Jack Nicholson),
jornalista inglês, "de formação americana", encontra-se no Norte de
Africa, tentando entrar em contacto com os guerrilheiros de um país não
identificado. Frustrada a tentativa, encontra num pequeno hotel incrustado no
deserto um outro hóspede que fisicamente se lhe assemelha muito. É esse mesmo
Robertson que aparece morto no seu quarto. Locke não resiste ao apelo da
aventura, troca as fotos dos passaportes, as vestes, as bagagens, e anuncia a
morte de David Locke, o repórter. A partir daí ele será Robertson, uma
incógnita que procurará desvendar. Donde o título original: "The Passenger",
o passageiro, aquele que viaja a bordo de um corpo que não é o seu, fugindo de
uma vida que lhe não diz já nada.
Entre a bagagem de Robertson descobre
uma agenda com vários encontros marcados para as próximas semanas: Munique,
Londres, Barcelona. E alguns nomes enigmáticos: Daisy, Melisa, Lucy. De
"rendez vous" em "rendez vous", Locke descobre a verdadeira
actividade de Robertson: tráfico de armas. No momento, procurando vender armas
a um grupo de guerrilheiros que tudo indica serem os mesmos com quem Locke
procurara estabelecer contacto em África.
Entretanto, em Londres, a mulher que
se desinteressara de Locke há algum tempo, considerando-o um jornalista
demasiado contemplativo, que aceita veicular a mentira, sem questionar a
realidade até ao fim (o que é documentado com uma entrevista com o chefe
político do país africano em questão, um presidente que anuncia eleições para o
ano seguinte e não admite a presença da oposição, "porque não há oposição.
Todos procuram trabalhar para o País. É um país cheio de futuro!"),
sente-se profundamente atraída por Locke, quando este é dado como morto. Inicia
mesmo um inquérito particular que procura saber em que circunstânciasse deu
essa morte. O inquérito levá-la-á até ao verdadeiro Robertson, o outro hóspede
do hotel onde Locke falecera. Estabelecesse assim um duplo
"suspense", no interior deste filme que, tal como "A
Aventura" ou "Blow Up", vai assentar a sua estrutura dramática
numa intriga de fundo vagamente policial, ainda que continuamente coarctada nos
seus possíveis desenvolvimentos. Temos por um lado Locke percorrendo o caminho
que Robertson nunca chegou a efectuar, para deste modo saber quem ele era, o
descobrir como “identidade” (e através dele, o mundo); por outro lado, há
Rachel procurando chegar a Locke que julga morto, perseguindo Robertson que
continuamente se lhe escapa.
O interesse central de Antonioni não
se dirige, porém, para esta intriga que possibilita o "suspense", mas
para as razões que levam ao "disfarce" de Locke. Quando este encontra
uma rapariga inglesa, estudante de arquitectura, que visita em Barcelona as
casas projectadas por Gaudi, e ela lhe pergunta quem ele é, a resposta
adivinha-se: "Alguém que se faz passar por outro". Mais tarde, Maria
(Maria Schneider) volta a colocar-lhe uma pergunta definitiva: "De que
foges?". Locke, pedindo-lhe para se voltar para trás, indica-lhe o
cenário: a sua fuga é de todo um passado, de tudo o que para trás vai ficando
até esse momento de um furtivo presente roubado a alguém.
Incapaz de penetrar a realidade com as
armas que o jornalismo lhe concede (incapaz de penetrar a fotografia até à
minúcia, como fazia Thomas, em "Blow Up"), Locke viaja agora sob a
aparência de outro. As primeiras sensações são de libertação (veja-se a
sequência no teleférico de Barcelona, com Locke "voando" por sobre a
cidade, braços abertos para o espaço que se lhe oferece, numa situação muito
semelhante à que o jovem de 'Zabriskie Point" experimenta ao pilotar um
avião roubado). Mas viver "disfarçado" comporta igualmente os seus
riscos. Conhecer o mundo por interposta pessoa não será tão produtivo como
enfrentá-lo directamente. Por vezes a crueza da realidade circundante mostra-se
de uma agressividade insuportável. Locke, momentos antes de "sair de
campo" neste filme que o acompanha de princípio a fim, conta a Maria uma
história que funcionará como "chave": "um amigo cego consegue um
dia, através de uma operação, passar a ver. Ao princípio, o mundo encanta-o. As
cores, as formas, os volumes. Mas, à medida que vai conhecendo o mundo, este
mostra-se bem mais pobre do que aquele outro que ele idealizara quando cego, e
suicida-se."
A história é premonitória, Maria
sabe-o. Locke fecha-se num quarto de uma pensão espanhola, abre a janela que se
estende para uma praça, e espera a chegada dos enviados de um país africano.
Num plano sequência admirável, de longuíssima duração (fala-se em sete minutos,
que não controlámos), a câmara começa por deixar Locke encerrado na sua
“prisão” (a identidade de Robertson e o seu negócio de tráfego de armas),
enquanto na praça se ouvem os acordes de um carro anunciando uma tourada. De
morte. A vítima fica estendida numa cama, esperando deliberadamente a estocada
final. De suicídio se trata, ainda que de assassinato se fale. Locke chegou ao
fim da caminhada. Ele que morrera já no corpo de Robertson, oferece-se agora
com a nova identidade. A experiência não se mostrara enriquecedora. Cortado do
mundo de que só retinha as aparências, Locke perpetuava um novo caso de alienação.
Quando a recusa e aceita penetrar no significado último e profundo da
realidade, esta esmaga-o. A câmara continua a viajar, sai agora do quarto,
rompendo as grades, percorre a pequena praça, volta-se sobre si própria,
regressa ao hotel "Gloria dela Osuna", onde, por entre as grades de
um quarto, se redescobre Locke, enquanto a mulher lhe verifica a identidade.
"Reconhece-o?", perguntam as autoridades. "Nunca o vi",
garante Rachel.
Primeira incursão de Antonioni em
terra africana, "Profissão: Repórter" prolonga, no entanto, as
referências que à África se fazem ao longo de vários filmes seus, de "A
Noite" a "Blow Up". Sempre associado à ideia de nostalgia, de
exotismo, o continente que aqui nos aparece no deserto dos seus horizontes,
ajuda a caracterizar pela imagem o espaço vazio de um personagem em crise. Num
universo em constante ruptura emocional, que é o de Antonioni, são ainda as
mulheres quem quase sempre comanda o jogo, neste caso quer através de Rachel
que investiga "Robertson", quer de Maria que, por meio de vários
expedientes, consegue furtar Locke das diversas armadilhas em que continuamente
se vê envolvido.
Mantendo a coerência da sua pesquisa,
permanecendo perfeitamente fiel a uma temática que se mostra obcecante no
interior da sua filmografia (por muitas inflexões de rumo que possa comportar),
Michelangelo Antonioni volta a atingir um momento alto da sua carreira, neste
filme rigorosamente trabalhado, milimetricamente calculado, por onde se sente,
todavia, perpassar a sinceridade espontânea de algumas das dúvidas maiores que
preocupam de há muito o cineasta. Numa sociedade em crise de valores, num mundo
em mutação e vertigem, qual o lugar do homem, viajante transitório? No
caligrafismo da sua escrita depurada, Antonioni procura visar o essencial, os
sentimentos deteriorados, a realidade difusa, um frente a frente de um doloroso
pessimismo. Será dentro de nós que nos teremos de encontrar, conclui Antonioni.
Ninguém pode viajar "à boleia". Os “passengers” acabam sempre por
pagar bilhete.
PROFISSÃO:
REPÓRTER
Título
original: Professione: Reporter
Realização: Michelangelo
Antonioni (Itália, Espanha, França, 1975);
Argumento:
Mark Peploe, Mark Peploe, Peter Wollen, Michelangelo Antonioni, Miguel De
Echarri; Produção: Carlo Ponti, Alessandro von Norman; Música: Ivan Vandor;
Fotografia (cor): Luciano Tovoli; Montagem: Michelangelo Antonioni, Franco
Arcalli; Direcção artística: Piero Poletto; Decoração: Osvaldo Desideri;
Guarda-roupa: Louise Stjernsward; Maquilhagem: Adalgisa Favella, Franco Freda;
Direcção de produção: Ennio Onorati; Assistentes de realização: Enrica
Antonioni, Hercules Bellville, Federico Canudas, Ina Fritsche, Enrico Sannia,
Claudio Taddei; Som: Cyril Collick; Companhias de produção: Compagnia
Cinematografica Champion, CIPI Cinematografica S.A., Les Films Concordia;
Intérpretes: Jack Nicholson (David Locke), Maria Schneider (rapariga), Jenny
Runacre (Rachel Locke), Ian Hendry (Martin Knight), Steven Berkoff (Stephen),
Ambroise Bia (Achebe), José María Caffarel, James Campbell, Manfred Spies,
Jean-Baptiste Tiemele, Ángel del Pozo, Charles Mulvehill, Narciso Pula, Miquel
Bordoy, Jaime Doria, Joan Gaspart, Gustavo Re, etc. Duração:126 minutos;
Distribuição em Portugal (DVD): Sony Pictures Classics; Classificação etária:
M/ 12 anos; Classificação etária: M / 12 anos.
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