VIOLÊNCIA E PAIXÃO (1974)
Se se pode
falar já em "testamento" político e estético de Visconti a propósito
de obras como "O Leopardo", "Morte em Veneza" ou “Luís da
Baviera", é sobretudo com “Violência e Paixão" que essa
sensação" se instala com maior forca e amargura. Visconti adoecera
gravemente e poderá ter pensado estar a rodar o seu derradeiro filme. Sem
procurar identificar a personagem do "professor" consigo próprio, é
fundamentalmente ao nível da descrição dos ambientes que se instala esse
doloroso olhar pela vida que se sente escapar.
Como
sempre em Visconti, o cenário, o rigor da montagem, a precisão do pormenor, a
segurança um pouco teatral da marcação da figura humana movendo-se nele,
enunciam de imediato as intenções. Num escrit6rio forrado por estantes repletas
de livros, quadros, objectos de arte, pequenas mesas e confortáveis poltronas,
que se dispersam pela sala criando um labirinto onde o "professor" se
move com o à vontade de quem habita aquele espaço há longo tempo, irá decorrer
o essencial desta "conversa em família". A decoração é vigorosa.
Sente-se que uma presença masculina molda o cenário ao seu gosto, sem que mãos
femininas retoquem o “quadro", de um requinte e voluptuosidade estética
indisfarçáveis.
Aquela é a
"torre de marfim" onde um intelectual cortado do seu tempo sobrevive
com vestígios de um passado que toma por únicos interlocutores. Pelas paredes,
"conversation pieces" de pintores ingleses do século XVIII. O
"professor" fala essencialmente com essas telas de presenças
enigmáticas, enquanto o som de Mozart invade os aposentos.
O
"professor" deixou o trabalho há já algum tempo, entregando-se agora
a uma existência de puro deleite estético. A leitura, os discos, os quadros,
que restaura pacientemente, a sua colecção de obras de arte, a casa, refúgio
pessoal apenas compartilhado com uma velha criada. A solidão instalou-se no
interior daquelas paredes, mas uma estranha sabedoria, um pretenso conhecimento
da vida, dir-se-ia forrarem de serenidade aquele conjunto indissociável.
Subitamente,
a paz adquirida é quebrada pela intromissão de uma família que pretende alugar
o andar de cima. Capricho de uma marquesa que procura oferecer um apartamento
ao amante. O confronto estabelece-se. O "professor" começa por
recusar todo o diálogo, mas, pouco a pouco, cede perante a veemência dos
interesses manifestados e a sua própria curiosidade. A clausura do intelectual,
que deixa à porta de casa a vida sua contemporânea, começa a ser agitada pela
presença constante de uma nova aristocracia forjada pelo dinheiro, ostensiva na
grosseria do poder económico que tudo procura controlar e obter. Com a marquesa
Brumonti, outros representantes da vida moderna entram em cena: os filhos e o
amante trazem consigo os problemas de uma juventude à deriva, entre a ruptura
brusca com o sistema, através de um esquerdismo que Konrad diz ter corporizado
em Maio de 68, o pacto aberto com o fascismo (Stefano) ou a fuga a realidade,
através da droga, do sexo, da velocidade (Lietta).
Depois da
Alemanha dos anos 30, da Veneza de 1911, da Baviera de meados do século XIX,
Visconti fala-nos agora de uma decadência contemporânea de si mesmo. As figuras
que lhe invadem o apartamento não fazem parte dos fantasmas de um consciente
colectivo, não pertencem já à Historia. São a realidade actual. Uma realidade
que irá inclusive acordar velhos fantasmas pessoais, amores adormecidos,
imagens que o tempo torna diáfanas e imprecisas. Outras “conversas em família”
distantes, perdidas, só sonhadas.
Diante de
um professor em ruptura do presente, alimentando-se de um passado que manuseia
a seu belo prazer, passam agora personagens de um presente sem futuro, numa
confluência desesperada e angustiante, o que confere a "Violência e
Paixão" essa densidade amarga e dolorosa de um corpo corrompido, expondo
impudicamente as partes "tocadas" que esperam apenas a morte.
Inexorável.
Neste
crepúsculo de uma vida, que se debate ainda entre o fascínio da juventude (aqui
Konrad, em "Morte em Veneza", Tadzio) e a proximidade da morte, nesta
patética creditação sobre um rosto que envelhece e umas mãos que se abrem
impotentes, neste "requiem" trágico de um humanista que procura
"conciliar a política e a moral", e se sente afundar num cepticismo
sem fronteiras, nesta viagem melancólica que tem a doença por companheira,
Luchino Visconti confessa os dramas que sempre o habitaram e dilaceraram, com
uma emoção e uma subtileza admiráveis. "Violência e Paixão", nessa
busca incansável de um "tempo perdido", é ainda um lamento vigoroso e
uma promessa de amor adiado... enquanto o gráfico de um electrocardiograma se
desdobra, dando-nos a trajectória do pulsar de um coração e o seu momento
limite.
Luchino
Visconti pode ter morrido a 17 de Março de 1976, mas estas "conversas em
família" recordá-lo-ão para sempre, na cinemateca imaginária de outros
"professores" do futuro. Procurando transcender o espaço de um quadro
oitocentista, Visconti oferece-nos uma obra de arte de doloroso traçado, que se
destina ao diálogo com o futuro.
VIOLÊNCIA E PAIXÃO
Gruppo di famiglia in un interno
(original title)
Realização: Luchino
Visconti (Itália, 1974); Argumento: Enrico Medioli, Suso Cecchi D'Amico,
Luchino Visconti;Produção: Giovanni Bertolucci; Música: Franco Mannino; Fotografia (cor): Pasqualino
De Santis; Montagem: Ruggero Mastroianni; Desing de produção: Mario Garbuglia;
Decoração: Carlo Gervasi, Dario Simoni; Guarda-roupa: Maria Fanetti, Piero
Tosi; Maquilhagem: Maria Teresa Corridoni, Alberto De Rossi; Direcção de
produção: Lucio Trentini; Assistentes de realização: Albino Cocco, Alessio
Girotti, Giorgio Treves, Louise Vincent; Departamento de arte: Alvaro Belsole,
Italo Tomassi; Som: Claudio Maielli; Efeitos especiais: Eros Bacciucchi,
Giovanni Bacciucchi; Companhias de produção: Rusconi Film, Gaumont
International; Intérpretes: Burt
Lancaster (o Professor), Helmut Berger (Konrad Huebel), Silvana Mangano
(Marquesa Bianca Brumonti), Claudia Marsani (Lietta Brumonti), Stefano Patrizi
(Stefano), Elvira Cortese (Erminia), Philippe Hersent (porteira), Guy Tréjan,
Jean-Pierre Zola, Umberto Raho, Enzo Fiermonte, Romolo Valli, George Clatot,
Valentino Macchi, Vittorio Fanfoni, Lorenzo Piani, Margherita Horowitz, Claudia
Cardinale (mulher do Professor), Dominique Sanda (mãe do Professor), etc. Duração: 126 minutos; Distribuição em
Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/12 anos; Data
de estreia em Portugal: 24 de Março de 1978.
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