quarta-feira, 8 de abril de 2015

O GENERAL DELLA ROVERE

~

O GENERAL DELLA ROVERE (1959)


“Il Generale della Rovere” data de 1959 e apresenta-se como um regresso de Roberto Rossellini ao seu período mais profundamente neo-realista. De certa forma é um retorno à época em que realizou “Roma, Cidade Aberta”, “Libertação” ou “Alemanha, Ano Zero”, voltando aos tempos da ocupação alemã de Itália, à resistência e ao heróico movimento popular de oposição larvar ao nazismo e ao fascismo. Depois de “O Medo”, o cineasta tinha viajado pela Índia, onde realizou uma série documental para televisão, que foi muito mal recebida pela crítica e o público, bem assim como uma longa-metragem para cinema sobre o mesmo tema, “India, Matri Bhumi”. As reacções não foram brilhantes e desde há muito que Rossellini era olhado por alguma crítica como um cineasta “arrumado” a quem os produtores já não confiavam uma lira, porque a perderiam de certeza.
Mas Moris Ergas e a Zebra Film resolvem apostar neste projecto, com argumento do habitual Sergio Amidei, aqui com a colaboração de Diego Fabbri, retirado de um romance de Indro Montanelli, que por sua vez se inspira numa história real. Conta Renzo Rossellini, filho do cineasta, que “o produtor tinha colocado uma condição: o filme teria de estar pronto para ser apresentado no Festival de Veneza, em fins de Agosto, e estávamos em Maio. Organizámo-nos por forma a filmarmos de dia, montarmos e dobrarmos à noite, algo completamente louco. Era um desafio. E conseguimos”. O filme passou em Veneza e arrebatou o Leão de Ouro, juntamente como “A Grande Guerra”, de Mario Monicelli. Depois disso, foi premiado em São Francisco, para melhor realização e melhores actores, Vittorio De Sica e Hannes Messemer, ganhou o Nastro d´Argento para melhor realização de 1959 em Itália, e alcançaria ainda o prémio do Office Catholique International (OCIC), além de diversas outras recompensas. A carreira do cineasta estava relançada, afinal não estava completamente “arrumado” como muitos pretendiam, e, anos depois, faria parte da lista dos 1000 melhores filmes de todos os tempos, elegidos pelo “The New York Times”.


Estamos em Génova, 1943, e acompanhamos a actividade nada escrupulosa de
Emanuele Bardone, um vigarista bem-falante, que gasta em jogo tudo o que arranja, e arranja o que pode da forma mais humilhante: faz-se passar por um coronel do exército italiano e, de conluio com um oficial alemão colocado num lugar estratégico, vai extorquindo dinheiro a famílias de presos políticos, com promessas de conseguir a libertação para os encarcerados. Até ao dia em que vai ter com a mulher de um prisioneiro, afirmando que tem grandes notícias e esta lhe diz que o marido acaba de ser executado e o denuncia às autoridades. Preso, Bardone aceita colaborar com os nazis. O coronel Mueller, das SS, está interessado em ter um denunciante atrás das grades da prisão de San Vittore que lhe vá indicando quem é quem entre os presos, em particular que identifique um, Fabrizio, que se sabe ser o chefe da resistência local, que os alemães têm a certeza de se encontrar entre os presos, mas que ignoram quem é. O filme irá depois acompanhar a consciencialização de Bardone no seu convívio diário com os presos, com a coragem que eles demonstram, com a dignidade que ele surpreende, com o fervor patriótico que o redime.
Todo o filme é admiravelmente conduzido por Rossellini que, apesar de partir de um romance com uma estrutura dramática muito definida, apesar de jogar com um elenco de grandes vedetas (sobretudo Vittorio De Sica e Hannes Messemer, ambos notáveis, mas também Vittorio Caprioli, Sandra Milo, Giovanna Ralli, Anne Vernon, para só citar algumas), apesar de jogar com cenas de um pendor trágico assinalável, que facilmente poderiam cair num melodramatismo pungente, apesar de tudo isso consegue uma unidade de tom assinalável, uma quase neutralidade narrativa que funciona muito bem, uma invulgar isenção de efeitos emocionais fáceis. Veja-se a sequência final, que tentaremos não revelar, mas onde o olhar distante de Rossellini se exime a qualquer efeito, qualquer aproximação do rosto de De Sica, integrando-o num plano de conjunto que assume todo o significado pessoal e colectivo.
Mas a qualidade do trabalho de Rossellini é, nesta obra, admirável. Atente-se em todas as sequências passadas no interior da cadeia, onde, sem qualquer recurso especial, com uma certa frieza de olhar, nos transporta ao clima claustrofóbico da instituição, ao horror do isolamento, ao terror que as situações insuflam naqueles homens que, todavia, os não fazem perder a dignidade, mas que muito pelo contrário os elevam a um plano mais nobre. Todas as cenas de exterior, com as famílias padecendo um outro tipo de dor e de horror são igualmente brilhantemente conduzidas.


Entre muitos outros que poderiam justificar atenção especial, há ainda um aspecto a merecer referência: a forma como Rossellini nos apresenta as suas personagens. Emanuele Bardone é um vigarista sem escrúpulos que negoceia com os nazis e aldraba vítimas indefesas em situações traumáticas, é um jogador compulsivo, mas simultaneamente é um sedutor nato, que consegue inclusive transmitir alguma simpatia (essa, aliás, uma das razões do sucesso das suas trapaças). O coronel Mueller é igualmente um homem de contrastes, que tão depressa pode enviar para a tortura ou a morte um prisioneiro incómodo, como manifestar a simpatia por Bardone ou a “compreensão” por uma situação mais delicada. São personagens “humanas”, não estereotipadas, e, neste particular, mais inquietantes do que monstros de uma só perversidade que o espectador relega logo para o estatuto de “anormais”. Não, são tão normais como eu ou você, que, todavia, se comportam de forma brutal, o que torna muito mais resvaladiços os terrenos que todos nós pisamos.
Depois deste triunfo, Rossellini voltaria ao tema em “Era notte a Roma”, antes de se interessar por filmar no Brasil uma obra sobre “A Geografia da Fome”, do etnólogo brasileiro Josué de Castro (que nunca concretizará). Prosseguiria a carreira com dois filmes históricos, “Viva l’Ìtalia” (1960) e “Vanina Vanini” (1961), voltando-se depois para a televisão educativa, com obras de um estilo quase docudocumental, sobre grandes figuras e grandes temas da História, sendo de destacar, por exemplo, o belíssimo “La Prise du Pouvoir par Louis XIV” ou “Atti degli Apostoli”.

O GENERAL DELLA ROVERE
Título original: Il Generale della Rovere

Realização: Roberto Rossellini (Itália, França, 1959); Argumento: Sergio Amidei, Diego Fabbri, Indro Montanelli, Roberto Rossellini, segundo romance de Indro Montanelli; Produção: Moris Ergas; Música: Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Carlo Carlini; Montagem: Cesare Cavagna, Anna Maria Montanari; Design de produção: Piero Zuffi; Direcção artística: Piero Zuffi; Guarda-roupa: Piero Zuffi; Assistentes de realização: Tinto Brass, Ruggero Deodato, Renzo Rossellini; Companhias de produção: Zebra Film, Société Nouvelle des Établissements Gaumont (SNEG); Intérpretes: Vittorio De Sica (Victorio Emanuele Bardone / Grimaldi), Hannes Messemer (S.S. Colonel Mueller), Vittorio Caprioli (Aristide Bianchelli), Nando Angelini, Herbert Fischer (sargento), Mary Greco (Vera), Bernardo Menicacci, Lucia Modugno (a resiatente), Luciano Pigozzi, Kurt Polter (oficial alemão), Giuseppe Rosetti (Pietro Valeri), Kurt Selge (Schrantz), Linda Veras, Sandra Milo (Valeria), Giovanna Ralli (Olga), Anne Vernon (Clara Fassio), Ester Carloni, Armando Annuale, Gianni Baghino, Baronessa Bazzani, Clarissa Corner, Lina De Rossi, Ivo Garrani, Franco Interlenghi, Piero Pastore, Roberto Rossellini (homem no gabinete da Gestapo), etc. Duração: 132 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Data de estreia em Portugal: 31 de Janeiro de 1972 (Estúdio Apolo 70). 

O MEDO

O MEDO (1954)

“Non Credo Più all'Amore”, também chamado “La Paura”, adaptando um romance de Stefan Zweig, "Angst", foi o quarto filme da tetralogia Ingrid Bergman, depois de “Stromboli”, “Europa 51” e “Viagem em Itália”, sendo igualmente o último filme rodado pela actriz sob a direcção de Rossellini, antes do seu divórcio, em 1957. Deve dizer-se que, para lá destas longas-metragens de cinema, Ingrid Bergman ainda apareceu em duas outras obras do marido, um episódio do colectivo “Siamo Donne”, precisamente chamado “Ingrid Bergman” (1952), e o teledramático “Giovanna d’Arco Al Rogo” (1954).
“O Medo” inspira-se evidentemente no género de “filme negro” norte-americano, criando um clima e impondo personagens e situações nitidamente suscitadas por este tipo de películas que teve em França e nos EUA os principais cultores. Até alguns aspectos técnico-artísticos, como a fotografia a preto e branco, da responsabilidade de Carlo Carlini e Heinz Schnackertz, ou a partitura musical, assinada por Renzo Rossellini, se mostram devedores do “film noire”. Neste caso, não se pode dizer que o cineasta se tenha mantido muito fiel ao seu princípio de recusar todo o tipo de efeitos e de dramatização. A música sublinha dramaticamente muitas sequências, e a própria ambiência fotográfica contribui para um clima de inquietação e suspense, aliás numa tradição igualmente muito hitchcoqueana.


Irene Wagner (Ingrid Bergman) é mulher de um cientista, Albert Wagner (Mathias Wieman), que esteve doente durante algum tempo, e depois enclausurado num campo de concentração (durante o III Reich, por ser judeu?; depois do fim da guerra, numa acção de desnazização?). Durante este tempo de ausência do marido, Irene tomou conta dos negócios do casal e orientou sabiamente a sua fábrica de produtos farmacêuticos, mas deixa-se igualmente levar para uma situação de adultério, mantendo um caso com Erich Baumann (Kurt Kreuger). Quando o marido regressa, Irene procura terminar a relação, mas por essa altura surge Johann Schultze (Renate Mannhardt), uma ex-amante de Erich, que inicia uma acção de chantagem, pedindo dinheiro para calar o caso e não o denunciar ao marido. Irene vai cedendo, até que as economias começam a rarear, mas angustia-se particularmente, sobretudo, a partir da altura em que Johann lhe rouba um anel de grande significado. O medo vai-se intensificando, Irene parece descontrolada, mas as revelações estão para vir e o volte-face final obedece a todos os requisitos deste tipo de obras.
No romance de Stefan Zweig (publicado em 1910), a acção passa-se em Viena de Áustria, o adultério de Irene surge mais por divertimento e jogo do que por falta de amor ao seu marido. Aparece então uma mulher a exercer chantagem, quando Irene sai de casa do amante, um jovem músico de certo sucesso. Percebe-se finalmente que a chantagista não é mais do que uma actriz, contratada pelo marido de Irene, para levar esta a confessar a culpa e poder depois perdoar-lhe. 
A contextualização do filme na Alemanha do pós-guerra tem o seu intuito óbvio. De resto, o clima em que todo o drama se desenrola é tenso e violento, de um ponto de vista psicológico. Rossellini consegue criar uma ambiência de medo larvar, sempre na iminência de que algo aconteça de irremediável. Mais uma vez, derradeiras cenas apontam para uma tragédia, a que a mão do destino (ou do milagre, sempre tão presente em Rossellini) obsta. A realização é brilhante, na sua eficácia narrativa, na sua simplicidade. O filme foi rodado muito rapidamente, em cerca de 30 dias, e marca uma preocupação invulgar no cinema deste autor, uma incursão pelos terrenos da interioridade, explorando sentimentos e emoções. Toda a interpretação é excelente, com particular destaque para Ingrid Bergman, num papel que parece ter sido pensado para si. O que, dadas as circunstâncias, terá mesmo sido.
Curiosidade suplementar: o romance de Stefan Zweig teve outras adaptações cinematográficas, para lá desta de Rossellini, em 1954. Um filme mudo de Hans Steinhoff, “Angst” (1928), com Elga Brink, Henry Edwards e Gustav Fröhlich, a que se seguiu “La Peur” (1936), de Victor Tourjansky, com Gaby Morlay, Charles Vanel, Suzy Prim e George Rigaud, e, de novo em França, “La Peur” (1992), de Daniel Vigne, com Nicola Farron, Maurice Baquet, Cinzia de Ponti e Hanns Zischler.


O MEDO
Título original: Non Credo Più all'Amore (La Paura)
Realização: Roberto Rossellini (Itália, RFA, 1954); Argumento: Sergio Amidei, Roberto Rossellini, Franz von Treuberg, segundo romance de Stefan Zweig ("Angst"); Produção: Herman Millakowsky; Música: Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Carlo Carlini, Heinz Schnackertz; Montagem: Jolanda Benvenuti, Walter Boos; Direcção de produção: Mario Del Papa, Jochen Genzow; Assistentes de realização: Pietro Servedio, Franz von Treuberg; Som: Carl Becker; Companhias de produção: Aniene Film, Ariston Film GmbH; Intérpretes: Ingrid Bergman (Irene Wagner), Mathias Wieman (Professor Albert Wagner), Renate Mannhardt (Luisa Vidor / Johann Schultze), Kurt Kreuger (Erich Baumann), Elise Aulinger (Haushaelterin), Edith Schultze-Westrum, Steffi Stroux, Annelore Wied, Rolf Deininger, Albert Herz, Klaus Kinski (actor de cabaret), Klara Kraft, Jürgen Micksch, Gabriele Seitz, Elisabeth Wischert, etc

VIAGEM A ITÁLIA


VIAGEM EM ITÁLIA (1953)

“Viaggio in Italia” data de 1953 e é o segundo tomo da tetralogia dedicada por Rossellini à então sua mulher e musa inspiradora, Ingrid Bergman. Dir-se-ia que, depois do cartão recebido pelo cineasta, com a actriz a oferecer-se para sua actriz, quando ele quisesse, Rossellini quis demonstrar a força do seu talento e o poder que o mesmo impunha, ao realizar “Strombolli”, onde sacrificou sobremaneira a actriz sueca que em italiano só sabia dizer “ti amo”.
Ingrid passou a prova, mas nos filmes seguintes Rossellini já lhe ofereceu um tratamento de vedeta, nomeadamente em “Viagem em Itália”, com um companheiro à altura (George Sanders) e direito a guarda-roupa especial, maquilhagem e tudo o mais. Depois de um primeiro round a impor a supremacia do génio, surgiram um segundo e terceiro a seduzir a actriz, após o que surgiria um quarto, “O Medo”, a prenunciar o divórcio, ou não se chamasse já no original “La Paura, Non Credo Più all'Amore”. Julgo portanto que estas quatro obras se encontram indissociáveis da história de amor vivida na realidade por realizador e actriz. Estranho seria que fosse outra de outra forma.
Por morte de um tio que vivia em Itália, perto de Nápoles, e que lhes deixou em herança uma bela “villa”, um casal de ingleses, Catherine (Ingrid Bergman) e Alexander Joyce (George Sanders) viajam até Itália, de carro. O casal, percebe-se rapidamente, atravessa um período de crise. Período longo, ao que se supõe pelo diálogo. “Esta é a primeira vez que estamos sós, desde o nosso casamento”, diz Catherine. Alex é um inglês imperturbável, frio, distante, metido consigo e com os seus negócios, que não deve dar grande importância aos sentimentos. Catherine é uma romântica que as circunstâncias adormeceram, frustrada nos seus sonhos, rabugenta por força das situações, remoendo o gelo que se instalara entre ambos. A sua entrada nas estradas italianas é sintomática do espírito que anima o casal. Não gostam do que vêem, Alex pede para ser ele a conduzir, e troca com a mulher, “senão adormece”, e os animais que se lhe atravessam no percurso indispõem-no visivelmente. A Inglaterra é obviamente diferente, e esta ambiência terceiro-mundista desagrada-lhe. Imaginam uma casa em ruínas e dificuldades em a vender rapidamente para regressarem a Londres. Mas o que se lhes depara é muito diferente: afinal o tio tinha bom gosto e uma vivenda excelentemente situada, mobilada e decorada, os vinhos da região são bons, a comida também, as pessoas simpáticas e prestáveis. Mas as noites em comum, apesar dos quartos separados, são difíceis de passar. E os dias são preenchidos com ocupações muito diversas. Catherine visita museus e monumentos, sempre guiada por cicerones oficiais que lhe recitam a lengalenga habitual, e confronta-se com uma cultura muito diversa da sua. As mulheres grávidas que circulam nas ruas levam-na a curiosas conclusões sobre a vida italiana. Ele, por seu turno, viaja até Capri, para tentar uma aventura de uma noite com uma conhecida recente, que delicadamente o afasta, depois vagueia pelas ruas, entretém-se em hotéis e bares, conversa com uma prostituta que finalmente descarta, para regressar a casa e decidir o divórcio com Catherine.


Tudo parece encaminhar-se para o desfecho previsível, quando surge uma visita às ruinas de Pompeia, onde acompanham a operação de desobstrução de uma múmia ainda enterrada na areia e na lava. Lentamente vai-se revelando um casal que foi apanhado pela erupção do Vesúvio e que se eternizou abraçado, no leito. Esta imagem impressiona sobremaneira Catherine, que se retira. Quando, no dia seguinte, o carro vagueia pelas ruas de Nápoles, é obrigado a parar para dar passagem à procissão em honra de San Gennaro. A multidão que a acompanha e que subitamente começa a clamar por “Milagre!” leva o casal a abraçar-se e a comungar nessa onda febril de devoção. Reconciliação? Até quando?
Esta obra provocou as mais violentas reacções aquando da sua estreia, criando uma polémica grande entre aqueles que a recusaram liminarmente e os que a aplaudiram, afirmando que aqui se iniciava o cinema moderno. 
Passados sessenta anos, cremos que nem uma nem outra das posições é defensável, presentemente. Não por acaso, o filme não aparece na lista dos 50 melhores filmes de todos os tempos, eleitos recentemente pela revista “Sight and Sound”, através de escrutínio de críticos e cineastas de todo o mundo. “Viagem em Itália” teve uma importância óbvia no seu tempo (tal como, por exemplo, “Breve Encontro”, de David Lean, em meados dos anos 40), mas não é a obra charneira de uma época, sequer a obra-prima indiscutível que os “Cahiers du Cinéma” proclamaram na altura. A realização procura afastar o dramatismo inerente a este tipo de histórias sentimentais, limpando-a de efeitos excessivos, e marca realmente uma ruptura com um cinema dominado por questões sociais, iniciando uma pesquisa intimista, que começa a interiorizar a análise das emoções e dos sentimentos individuais. Claro que “Viagem em Itália” antecipa outras obras, como algumas de Antonioni, onde a solidão no mundo moderno é objecto central de reflexão, tendo como ponto de partida personagens pertencentes à grande burguesia ocidental. É evidente, igualmente, a qualidade e a límpida clareza da realização de Rossellini, aqui magnificamente servida por dois actores notáveis, que, com uma inteligência e discrição de referir, conseguem transmitir uma invulgar paleta de complexas emoções. 
Um belíssimo filme, portanto, que se pode ver hoje em dia serenamente, longe das polémicas extremistas que desencadeou na década de 50 do século passado.



VIAGEM EM ITÁLIA
Título original: Viaggio in Italia

Realização: Roberto Rossellini (Itália, França, 1953); Argumento: Vitaliano Brancati, Roberto Rossellini, Antonio Pietrangeli, segundo romance de Colette ("Duo"); Produção: Adolfo Fossataro, Alfredo Guarini, Roberto Rossellini; Música (arranjos): Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Enzo Serafin; Montagem: Jolanda Benvenuti; Design de produção: Piero Filippone; Guarda-roupa: Fernanda Gattinoni; Direcção de produção: Marcello D'Amico, Mario Del Papa, Emimmo Salvi; Assistentes de realização: Marcello Caracciolo Di Laurino, Vladimiro Cecchi; Som: Gilles Barberis, Eraldo Giordani; Companhias de produção: Italia Film, Junior Film, Sveva Film, Les Films Ariane, Francinex, Société Générale de Cinématographie (S.G.C.); Intérpretes: Ingrid Bergman (Katherine Joyce), George Sanders (Alexander 'Alex' Joyce), Maria Mauban (Maria), Anna Proclemer (a prostituta), Paul Muller (Paul Dupont), Leslie Daniels (Tony Burton), Natalia Ray (Natalie), Jackie Frost (Betty), María Martín, Bianca Maria Cerasoli, Adriana Danieli, Lyla Rocco, etc. Duração: 97 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Data de estreia em Portugal: 28 de Outubro de 1955.

STROMBOLI


STROMBOLI (1950)

Julgo que o dever de um crítico não é exercer uma crítica ideológica. Ao crítico deve pedir-se que informe, esclareça, estabeleça um diálogo com a obra e com o leitor do texto/ espectador da obra criticada, e só em casos extremos de malignidade de propósitos se deverá pronunciar quanto às intenções da obra em questão. Um crítico deve assumir as suas opiniões políticas, religiosas, estéticas, quando se confronta com uma obra de arte, mas não deve condenar a obra em função de desajustes dessa natureza. Deve confrontar ideias, mas não se pode erguer em juiz plenipotenciário que declara que isto é justo e está certo, aquilo está errado e não vale. Cada autor tem a sua mundovisão, que tem de ser respeitada, sobretudo se é realmente um autor que impõe respeito pela qualidade do que cria.
Julgo totalmente injusto, por exemplo falando dos cineastas italianos de entre os anos 40 e 60 do século XX, criticar Visconti por ser comunista, Fellini por ser religioso e anti clerical, ou mesmo Rossellini por ser católico. Acredito que cada um deles julgava que a sua óptica era a mais justa para análise da sociedade, dos seus problemas, ou, mais profundamente, até da própria condição humana. Não será por aí que são grandes ou pequenos, autores a considerar ou artesãos como milhares de outros. É pela força da sua personalidade e pela grandeza da sua arte que se libertam da multidão e se tornam únicos.
Vem isto a propósito de “Stromboli”, de Roberto Rossellini, que assume uma muito discutível posição perante a situação do homem no mundo, perante a situação da mulher, perante o papel da igreja, para lá de muitos outros aspectos polémicos.
Mas antes, situemos a obra. Depois da sua trilogia da guerra, Rossellini roda dois filmes de transição, um com Anna Magnani, “L'Amore”, incluindo duas médias metragens, uma adaptando uma peça de Jean Cocteau, “La Voix Humaine”, outra “Le Miracle”, sobre ideia de Fellini, e “La Macchina Ammazzacattivi”, com base em Eduardo de Filippo e Fabrizio Sarazani. Estamos em 1948, e o cineasta recebe uma carta de uma célebre actriz que tinha Hollywood aos pés, sobretudo depois de “Casablanca”.
“Caro M. Rossellini, Vi os seus filmes “Roma, Cidade Aberta” e “Païsa”, e gostei muito deles. Se tiver necessidade de uma actriz sueca que fala muito bem inglês, que não esqueceu o seu alemão, que não se faz compreender muito bem em francês, e que em italiano nada mais sabe dizer senão “ti amo”, então eu estou pronta a ir fazer um filme consigo”. Assinava, Ingrid Bergman.


Compreensivelmente, Rossellini abandona o seu princípio de filmar com actores não profissionais (já o havia feito com Anna Magnani, então sua companheira na vida real), e convida Ingrid Bergman para interpretar “Stromboli, Terra di Dio”, cujas filmagens decorreram na isolada ilha de Stromboli, encimada pelo ameaçador vulcão que, nem por encomenda, entrou em erupção durante a rodagem. Era o primeiro título de um novo ciclo. desta feita uma tetralogia, esta dedicada a Ingrid Bergman, e que, além de “Stromboli” agrupa ainda “Europa 51” e “Viaggio in Italia”. Era igualmente o início de um idílio que iria dar muito que falar. Rossellini e Ingrid eram casados, a sua relação deu brado por todo o mundo, a actriz ficou grávida, as ligas de decência insurgiram-se, a América ficou chocada, repudiaram os adúlteros, e Ingrid Bergman ficou na lista negra de Hollywood.


Passemos ao filme e deixemos de lado os “faits divers” que, todavia, tiveram influência decisiva na carreira de ambos os intervenientes. “Stromboli” tem uma história simples: no pós-guerra, Karin (Ingrid Bergman) e Antonio (Mario Vitale) encontram-se num campo de refugiados, em Itália. Ela vem da Europa Central, ele de uma ilha de Itália, para onde quer regressar, mas casado facilita as burocracias. Por isso, pede em casamento Karin, que, depois de perceber que de outra maneira não sai do campo tão cedo, aceita a proposta. Casados, rumam ambos a Stromboli. Para Karin, o conceito de ilha não tem nada ver com Stromboli, uma ilha vulcânica em erupção, quase deserta, miserável, sem condições, onde a única actividade é a pesca, os costumes são primitivos, o homem detém todos os direitos sobre a mulher, os preconceitos imperam, a violência da natureza dita leis. O choque com a realidade que a espera é enorme, tanto mais que Karin é uma mulher de passado letrado, sofisticado. Vai tentando adaptar-se, mas com dificuldade. O padre que serve a comunidade é taxativo: aqui a vida é assim, temos que suportá-la enquanto tal, aprender a viver com o que temos e agradecer ao Senhor o que nos é dado. 
Como filosofia de vida, deixa algo a desejar, mas integra-se bem no espírito do cinema de Rossellini, pobre e puritano. Com actores não profissionais (enfim…), com o respeito pelas leis de Deus (enfim…, no que se refere aos outros, ele movimenta os maiores escândalos), no maior recato da humildade (enfim…, enquanto estiver em Stromboli e não regressar a Roma).


Há, pois, um evidente desencontro entre o que se diz e o que se faz. Não será todavia a maior crítica a exercer sobre a obra, mas sim sobre o espírito conformista, retrogrado, estratificado, de que a mesma dá sobejas mostras. Tudo o que vemos ao longo do filme merece a mais radical censura, desde as condições de vida da população, das relações entre homens e mulheres, do moralismo hipócrita dos habitantes, da violência extrema com que se enfrentam as leis da natureza. Existem mesmo sequências brutais, como a morte de um coelho por um furão, ou a pesca do atum, que hoje em dia dificilmente seriam filmadas ou, pelo menos, exibidas. Mas Rossellini filma-as e mostra-as em nome de uma autenticidade que julgamos aqui muito equívoca. Poderiam ainda servir como exemplo de comportamentos errados, que necessitavam de ser corrigidos, criticados. Não é isso que acontece. Rossellini põe os pescadores a rezar a Deus agradecendo a matança de atum e coloca Karin, no fim do filme, olhando a natureza e reconciliando-se aparentemente com a sua sorte.
Posto isto, o filme é magnificamente realizado, de um ponto de vista técnico, ainda que com reduzidos meios, e a interpretação de Ingrid Bergman é brilhante. Mas percebe-se nesta obra toda a polémica que envolveu sempre o cinema de Rossellini, com críticas acerbadas e defesas apaixonadas. Quase se pode pensar que “Stromboli” é a resposta católica a “A Terra Treme”, de Visconti. E comparações com “O Homem de Aran”, de Flaherty, parecem-me excessivas, se se abstrair o lado documental, pois as intenções de ambas são bem diversas.


STROMBOLI
Título original: Stromboli
Realização: Roberto Rossellini (Itália, EUA, 1950); Argumento: Roberto Rossellini, com colaboração de Art Cohn, Sergio Amidei,Gian Paolo Callegari,Renzo Cesana, Félix Morlión; Produção: Roberto Rossellini; Música: Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Otello Martelli; Montagem: Jolanda Benvenuti, Roland Gross, Alfred L. Werker (este na versão norte-americana); Assistentes de realização: Marcello Caracciolo Di Laurino; Som: Eraldo Giordani, Terry Kellum; Companhias de produção: Berit Films, RKO Radio Pictures; Intérpretes: Ingrid Bergman (Karin), Mario Vitale (Antonio), Renzo Cesana (padre), Mario Sponzo (homem no farol), Gaetano Famularo (homem com guitarra), Roberto Onorati, etc. Duração: 107 minutos; Sem distribuição DVD em Portugal; Data de estreia em Portugal: 23 de Novembro de 1950.

ALEMANHA, ANO ZERO


ALEMANHA, ANO ZERO (1948)

Terceiro filme do tríptico da guerra, “Alemanha, Ano Zero” passa para o outro lado do conflito. Depois de percorrer as feridas da Itália, em “Roma, Cidade Aberta” e “Libertação”, Rossellini vai observar a Alemanha, depois da derrota. Normalmente, a História é contada pelos vencedores, aqui Rossellini está igualmente do lado dos que acabaram de ganhar a guerra, mas está interessado em ver como se vive na Alemanha destroçada, arruinada, moribunda. Não é um projecto habitual. Sobretudo na perspectiva deste cineasta, que não está interessado em mostrar os assassinos no seu habitat devastado. Rossellini procura mostrar o drama que se vive em Berlim logo a seguir à derrocada. O drama físico, as casas esventradas, a falta de alimentos, de medicamentos, de todos os bens de primeira necessidade, mas também o drama moral, psicológico, as feridas internas que uma ideologia patológica instalou na sociedade, levando-a à loucura e prolongando os seus efeitos para lá da derrota.
Saltando as fronteiras, Rossellini não abandona o seu estilo de cinema, ainda que em “Alemanha, Ano Zero” exista um pouco mais de ficção do que nos dois títulos anteriores. Surge essencialmente um protagonista que leva o filme de início a fim, e que se oferece como estrutura central da obra: o pequeno Edmund, um miúdo louro, típico representante da raça ariana, doze anos sobrecarregados de responsabilidade e investido de uma ideologia que lhe impregnou a carne, mas de que ele desconhece obviamente as consequências (apesar de ter os seus efeitos bem reflectidos ao seu redor). O velho pai está acamado, sem poder ajudar a família, e desejando que a morte o leve. O irmão mais velho esconde-se num quarto interior, com receio de que o facto de ter pertencido às forças armadas nazis o incrimine. Uma irmã sobrevive com dificuldade, e Edmund faz pela vida nas ruas arruinadas de uma Berlim apocalíptica. Um professor encontra-o e põe-no a render no mercado negro, vendendo o que pode, mesmo que sejam discos com discursos de Hitler que, reproduzidos no meio dos destroços, assombram o presente com esses ecos do passado. São, aliás, ecos do passado que Rossellini capta, alguns dos quais se reflectem nos rostos e no íntimo desses jovens industriados para o horror.


Intercalando a ficção com imagens de actualidades, buscando essa autenticidade sem retoques que é apanágio do seu cinema, o cineasta colhe planos de uma dureza assombrosa que resulta da própria realidade não manipulada e que se impõem por essa autenticidade sem mácula. O registo é invulgarmente impactante pela sua crueza.
Depois há o segredo de Rossellini a observar o jovem Edmund, oscilando entre a pureza do seu rosto de menino e a impressionante gravidade de algumas expressões que o levaram precocemente à idade adulta. Aquela é uma criança que a vida violentou, a que foi retirada a alegria de uma brincadeira, de um jogo da bola, de uma meiguice materna. Ele foi lentamente transformado numa máquina de sobrevivência, no “homem da família”, com os valores adulterados pela necessidade, com as emoções embaciadas e aturdidas. Um momento de reflexão mais doloroso leva-o à decisão drástica que marca as derradeiras imagens deste “Ano Zero”.
Raras vezes um filme consegue ser assim tão impressionante e duro. Na maioria das vezes, o cinema mostra-se “ficção”, encenação, e o espectador reage em função dessa realidade que sabe ser espectáculo. Rossellini, que todavia também “encena” e “ficciona”, apesar de se basear em factos mais ou menos verídicos, ao que consta, consegue tornar “actualidades” essas imagens. A descrição da vida quotidiana nessa Berlim destroçada de meados da década de 40, é de uma autenticidade arrepiante. As casas superpovoadas, a prostituição, os pequenos roubos, a luta pelos mantimentos mais essenciais, as discussões sobre a forma mais económica de enterrar um cadáver, e de se aproveitar cada bem desse defunto que já não precisa de botas nem de camisa, tudo isso é de uma plausibilidade que desarma. As viagens de Edmund pelos escombros de uma cidade esventrada são a desolação extrema, a abjecção impossível a que a condição humana pode chegar. Nas primeiras imagens do filme, Edmundo cava sepulturas num cemitério. É o trabalho que consegue. Há quem diga que não é trabalho para a sua idade, mas o dilema coloca-se logo a seguir: sem aquele trabalho, como sobreviver? Roubando, necessariamente.


Depois há ainda a notar que o realizador parece olhar sem julgar, deixando essa avaliação para o espectador, que se confronta com os factos sem o auxílio de qualquer juízo prévio. Rossellini mostra, foi assim, é assim. O julgamento fica reservado ao púbico. Uma aposta incómoda. Esse o cinema de Rossellini, que não faz filmes para entreter, mas para serem úteis, ele próprio o escreveu.
A obra surge dedicada a Romolo Rossellini, irmão de Rossellini, desaparecido muito jovem num acidente, o que terá angustiado profundamente o cineasta, levando-o a atravessar um período de um niilismo sem esperança. “Alemanha, Ano Zero” é também o resultado desse doloroso percurso, onde a culpa de sobreviver parece habitar cada personagem. Muitos cineastas posteriores devem a “Alemanha, Ano Zero” inspiração, de Truffaut a Andrei Tarkovsky, de Ingmar Bergman a Wim Wenders, de Víctor Erice a Abbas Kiarostami, para só citar alguns.

ALEMANHA, ANO ZERO
Título original: Germania, Anno Zero
Realização: Roberto Rossellini (Itália, França, Alemanha, 1948); Argumento: Roberto Rossellini, com colaboração de Carlo Lizzani, Max Kolpé, Sergio Amidei, segundo uma ideia de Basilio Franchina; Produção: Roberto Rossellini, Salvo D'Angelo, Alfredo Guarini; Música: Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Robert Juillard; Montagem: Eraldo Da Roma; Direcção artística: Piero Filippone; Direcção de produção: Marcello Bollero, Alberto Manni, Alfredo Guarini; Assistentes de realização: Max Kolpé, Carlo Lizzani, Franz von Treuberg; Som: Kurt Doubrowsky; Companhias de produção: Tevere Film, SAFDI, Union Générale Cinématographique (UGC), Deutsche Film (DEFA); Intérpretes: Edmund Moeschke (Edmund), Ernst Pittschau (o pai), Ingetraud Hinze (Eva), Franz-Otto Krüger (Karl-Heinz), Erich Gühne (o professor), Heidi Blänkner (Frau Rademaker), Jo Herbst (Jo), Barbara Hintz (amiga de Eva), Christl Merker (Christl), Gaby Raak, Inge Rocklitz, Hans Sangen, Babsi Schultz-Reckewell, Franz von Treuberg, etc. Duração: 78 minutos; Sem estreia comercial, nem distribuição (DVD) em Portugal.


LIBERTAÇÂO



LIBERTAÇÃO (1946)


“Paisa” é o segundo título dedicado à “trilogia da guerra”, na qual Roberto Rossellini vai olhar a Itália ainda ocupada, mas em vésperas da libertação. Depois de “Roma, Cidade Aberta”, de 1945, e antes de “Alemanha, Ano Zero”, de 1948, este “Libertação” assume uma estrutura aparentemente invulgar, mas que de certa forma se integra plenamente no estilo e no tom usado pelo cineasta. Não se trata de uma história dramaticamente estruturada (já “Roma, Cidade Aberta” não o era, privilegiando a crónica, de apontamentos dispersos), mas de várias pequenas crónicas com alguma ordem interior a uni-las: todas se passam durante os últimos tempos da ocupação nazi (nos anos de 1943 a 1945), quando as tropas norte-americanas subiam já pela península transalpina, desde o sul, onde haviam desembarcado, com rumo ao norte, e cada episódio encontra uma lógica junto dos outros: a progressão é cronológica, do primeiro apontamento, mais antigo, para o último, mais recente, e essa progressão é igualmente geográfica, desde a Sicília, ao sul, durante o desembarque, até ao delta do rio Pó. São anotações que relatam acontecimentos protagonizados por indivíduos ou grupos sociais e que estão associados sempre a feitos, não direi heróicos, apesar de muitos o serem, mas de uma banalidade extraordinária, onde a condição humana é simultaneamente exaltada, mas igualmente vista pelo prisma contrário (conforme se olhe a opressão ou a luta pela libertação). Rossellini não elege igualmente um grupo humano como especialmente merecedor de encómios, tratando por igual o resistente comunista e o sacerdote católico, o miúdo da rua ou a mulher do povo. Também neste aspecto, “Libertação” prolonga o olhar humanista e simples de “Roma, Cidade Aberta”, marcando uma posição moral perante a Humanidade e a forma multifacetada como esta se expressa.
O argumento teve a colaboração de Alfred Hayes, Annalena Limentani, Sergio Amidei, Vasco Pratolini, Federico Fellini, Marcello Pagliero e Roberto Rossellini. Cada um dos seis episódios aparece isolado por um fundo negro, após o qual se integram algumas actualidades da época, o que confere à totalidade um tom documental muito caro a Rossellini. Digamos que as pequenas ficções prolongam harmoniosamente as imagens reais que para trás ficam, e as situam. Uma voz off completa esse enquadramento histórico. 


I. Sicília. 1943, as tropas norte-americanas desembarcam e um grupo de militares tenta chegar ao seu destino evitando os terrenos minados pelos nazis. Numa aldeia, Carmela, uma jovem italiana é “escolhida” para os guiar até junto das ruinas de um castelo que domina a região. Durante a noite, um soldado, Joe, é encarregue de ficar junto de Carmela, vigiando-a. Da desconfiança inicial, passam às confidências, perante as dificuldades da língua diferente. Uma bala de um alemão colhe Joe, Carmela é feita prisioneira pelos nazis que a tentam violar. Quando os outros norte-americanos chegam ao local, descobrem o corpo de Joe e imaginam a traição de Carmela, que todavia teve sorte bem diferente. Equívocos da guerra.


II. Numa Nápoles já libertada, onde se instalaram tropas norte-americanas, o caos social impera. As crianças tentam sobreviver através de todos os meios, entre os quais o roubo. Um miúdo encontra um soldado negro, completamente bêbado, a quem rouba as botas. Este, que trabalha para a polícia miliar, irá reencontrá-lo, desta vez a tentar roubar mercadoria de um camião. Capturado o jovem, este conduz o militar a um bairro miserável onde diz habitar e onde afirma encontrarem-se as botas roubadas. Mas tudo não passa de traumática imaginação do miúdo, cujos pais foram mortos durante os bombardeamentos. E as botas não são as daquele soldado. Equívocos da guerra. 
 

III. Subindo até Roma, vamos entrar na capital no dia em que esta é libertada pelos soldados aliados (6 de Junho de 1944). Francesca é uma romana jovem que acolhe um soldado americano em sua casa. Há, de um lado e do outro, olhares de pureza e de agradecimento. O soldado irá partir e voltar, meses mais tarde, e não reconhece Francesca, agora adaptada ao estilo de vida dos sobreviventes, que vendem o corpo para assegurar a vida. Num quarto de pensão particular, ela ouve as recordações amorosas desse solado que ficara preso pela imagem dessa Francesca que já não existe. Ou que existirá camuflada pelas necessidades? Francesca larga o soldado adormecido no quarto e deixa-lhe igualmente um bilhete com a morada da “anterior” Francesca. Mas o soldado acorda, amachuca o papel com a “morada de uma prostituta” e parte. Equívocos da guerra.  



IV. Florença é palco de batalha, rua a rua. Hariet, uma enfermeira americana, parte com um amigo, Massimo, que quer regressar a casa, para atravessar a cidade e chegar junto de Lupo, um pintor que se tornou chefe da resistência local. Depois de peripécias várias e perigos inumeráveis, depois de se cruzarem com um fleumático e entusiasta veterano da I Guerra Mundial que observa a guerra do alto do seu terraço, identificando cada munição que explode, Harriet e Massimo conhecem a sorte de Lupo, da boca de um moribundo que expira recolhido nos seus braços.


V. Na região da Emília-Romanha, onde a guerra ainda permanece acesa, um mosteiro recebe a visita de três capelões militares americanos. Mas dois deles são tidos como “no mau caminho”: um é protestante, o outro judeu. Trocam-se mantimentos, e os frades lembram aos americanos que o convento foi criado há mais de 500 anos, “antes ainda de Colombo ter descoberto a América”. Entre os alimentos racionados e a deliberação de “guiar ao bom caminho” os capelões “desviados”, tudo acaba na necessidade de se respeitarem as crenças de cada um.  


VI. No inverno de 1944, na região do delta do Pó, os corpos dos resistentes fuzilados pelos nazis boiam nas águas do rio, enquanto nas margens alemães e resistentes italianos e americanos trocam fogo. Um grupo tenta captar e sepultar condignamente mais um cadáver de um “partigiano”, quando é aprisionado pelos nazis, que liquidam sumariamente os italianos como “terroristas” e tratam os americanos como “prisoneiros de guerra”. Um americano revolta-se e sofre a mesma sorte dos italianos.
Ao longo destes seis episódios, que correspondem a uma outra “viagem por Itália”, no tempo e no espaço, volta a perceber-se a opção de narrativa de Rossellini. Longe das grandes ficções melodramáticas, perto dos homens comuns, não exaltando a narrativa através de qualquer tipo de efeito ou redundância, usando uma interpretação neutra, recorrendo essencialmente a actores não profissionais, tentando surpreender fundamentalmente as emoções no seu estado puro. Obviamente que o filme transborda de emoção, que se sente em cada plano a tragédia de Itália e do seu povo, que a dor marca os olhares e os gestos, que o heroísmo espreita a cada esquina, mas tudo decorre em serenidade e justeza. Um belíssimo filme que, depois de “Roma, Cidade Aberta”, lança internacionalmente Rossellini, o neo-realismo e o cinema italiano do pós-guerra.  


LIBERTAÇÃO
Título original: Paisà
Realização: Roberto Rossellini (Itália, 1946); Argumento: Sergio Amidei, Klaus Mann, Federico Fellini, Marcello Pagliero, Alfred Hayes, Vasco Pratolini, Rod E. Geiger; Produção: Rod E. Geiger, Roberto Rossellini, Mario Conti; Música: Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Otello Martelli; Montagem: Eraldo Da Roma; Direcção de produção: Augusto Dolfi, Ugo Lombardi, Alberto Manni; Assistentes de realização: Eugenia Handamir, Annalena Limentani, Federico Fellini, Massimo Mida; Som: Ovidio Del Grande, Valerio Secondini; Companhias de produção: Organizzazione Film Internazionali (OFI), Foreign Film Productions; Intérpretes: Carmela Sazio (Carmela), Robert Van Loon (Joe, o soldado americano), Benjamin Emanuel, Raymond Campbell, Harold Wagner, Albert Heinze, Merlin Berth, Mats Carlson, Leonard Parrish (todos no episodio I: Sicilia); Dots Johnson (Joe, o MP americano), Alfonsino Pasca (Pasquale (todos no episodio II: Napoli); Maria Michi (Francesca), Gar Moore (Fred, o soldado americano), (no episodio III: Roma); Harriet Medin (Harriet, enfermeira), Renzo Avanzo (Massimo) (no episodio IV: Firenze); William Tubbs (capitão Bill Martin) (no episodio V: Appennino Emiliano); Dale Edmonds (Dale, o agente OSS), Allan (soldado americano), Dan (soldado americano), Roberto Van Loel (soldado alemão), Cigolani (resistente) (todos no episodio VI: Porto Tolle), e ainda Giulio Panicali (narrador), Iride Belli, Lorena Berg, Pippo Bonazzi, Gianfranco Corsini, Leslie Daniels, Fattori, Elmer Feldman, Gigi Gori, Newell Jones, Giulietta Masina (jovem no episodio IV: Firenze), Carlo Pisacane, etc. Duração: 126 minutos; 134 minutos (versão restaurada); Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Data de estreia em Portugal: 21 de Janeiro de 1949.

ROMA, CIDADE ABERTA



ROMA, CIDADE ABERTA (1945)


“Ossessione” é de 1943, “La Terra Trema: Episodio del Mare” é de 1948, ambos de Visconti. “Roma, Città Aperta”, de 1945, traz a assinatura de Roberto Rossellini. Indiscutivelmente, são estes os três filmes mais importantes a marcarem o início do chamado neo-realismo. Mas desde logo as diferenças são algumas, bem assim como as características comuns. Neste caso, uma enorme necessidade de falar de temas simples e populares, de trazer para o ecrã o povo que dali andava arredado; a falta de meios que impunha um cinema pobre, tecnicamente imperfeito, mas esteticamente depurado, eticamente honesto, politicamente intencional; a utilização de actores não profissionais. Entre as diferenças, estas eram de raiz ideológica, ainda que nos primeiros tempos a união contra o invasor nazi e o fascismo mussoliniano disfarçassem as divergências. Um Visconti aristocrata e marxista, ao lado de um Fellini religioso mas libertário, um De Sica humanista, um Rossellini metafísico e democrata cristão, um Zavatini ou um Guiseppe De Santis abertamente comunistas são algumas das opções que logo se destacaram.
Rossellini é dos casos mais desconcertantes deste grupo. Inicialmente documentarista, assina depois três filmes que ficaram conhecidos pela sua “trilogia fascista”, “La Nave Bianca” (1941), “Un Pilota Ritorna” (1942) e “L'Uomo dalla Croce” (1943) (rodados na época do fascismo italiano, com fundos dos organismos oficiais e largamente premiados pelas entidades mussolinianas), passando imediatamente após a Libertação a uma nova “trilogia da guerra”, com “Roma, Cidade Aberta”, “Libertação” e “Alemanha, Ano Zero”, todos eles bem enquadrados no neo-realismo.
Durante uns tempos, o reconhecimento de Rossellini não foi unânime (ainda hoje não o é), tendo mesmo sido acusado de ter “passado do fascismo para a democracia cristã” por alguma crítica mais ortodoxa. Mas com o aparecimento dos “Cahiers du Cinéma” e de André Bazin, Truffaut, Rivette e alguns mais, Rossellini não foi só reabilitado, como colocado no lugar de mestre incontestável da modernidade, cineasta farol de um novo cinema. Nenhum outro cineasta italiano mereceu tantos elogios dos franceses desta corrente como Rossellini.


Em 1944 pode dizer-se que a indústria italiana de cinema tinha sido completamente destruída, não existiam estúdios, nem material técnico, nem laboratórios, nem sequer quantidade suficiente de uma mesma película para uma longa-metragem. Quando, em 1995, a “Cineteca Nazionale” restaurou o negativo de “Roma, Cidade Aberta” percebeu que o original era composto por três tipos de película: Ferrania C6, em exteriores, Agfa Super Pan e Agfa Ultra Rapid em interiores. Mesmo dentro de cada tipo de película existiam consideráveis alterações de densidade. Nenhuma unidade de tom era possível. Mas, um pouco também por causa disso, o que resultaria daí ofereceria uma tonalidade documental que agradava bastante ao autor.
Quando a II Guerra Mundial entrava nos seus últimos meses, Rossellini abandonava a realização de um filme, “Desiderio”, pois não tinha condições para o terminar (haveria de ser concluído por Marcello Pagliero, em 1946). Rossellini, porém, queria filmar a história de um padre católico, Don Pieto Morosini, que tinha sido fuzilado pelos nazis por ter auxiliado alguns resistentes italianos. O actor Aldo Fabrizi era o preferido para interpretar este papel e Rossellini, amigo de Fellini, pede a este para interceder junto do actor por forma a poder contar com a sua colaboração. Havia ainda a hipótese de rodar um documentário sobre o papel das crianças italianas na luta contra o opressor. Fellini e Sergio Amidei convencem Rossellini a reunir os dois projectos e escreveram um argumento ficcionado sobre estes temas. Estávamos em Agosto de 1944, dois meses depois das tropas norte-americanas terem libertado Roma da ocupação nazi. “Roma, Città Aperta” seria o cenário. Rossellini queria sinceridade máxima, autenticidade, total ausência de efeitos, nenhuma espectacularidade, actores predominantemente não profissionais, recrutados na rua, um olhar sem complacência. As falhas técnicas funcionariam como elemento estilístico, seria um cinema pobre, a película era comprada em pequenas quantidades, de qualidade desigual, por vezes sem qualidade, sem prazos de validade. Rodava-se com a luz natural, ou quase. A realidade sem subterfúgios. Roma devastada sem retoques. O povo italiano perante a tirania brutal do invasor, os resistentes em confronto com a opressão, o sentir do cidadão comum ao lado do guerrilheiro e frente ao oficial alemão. As crianças em magotes a fazer explodir o que pudessem. Comunistas, como o engenheiro que é denunciado por uma italiana vendida por um casaco de peles, lado a lado com padres católicos que os escondem em conventos. Mulheres indomáveis que gritam a dor e são assassinadas friamente com tiros de rajadas, no meio das ruas. Torturas intoleráveis e fuzilamentos sumários. “Roma, Città Aperta” quando os nazis sentem apertar à sua volta a ofensiva aliada e recrudescer a actividade dos “partigiani”, quando a batalha individual enxameia as ruas romanas, quando o sangue se verte generosamente em nome da liberdade, numa altura em que a luta é unitária.
Quando da sua estreia, a recepção italiana não foi entusiástica. O público não queria voltar a encarar a tragédia de que apenas saía, em condições traumáticas. Mas, fora de Itália, nos EUA ou em França, a recepção foi de triunfo crítico e mesmo popular. Juntamente com outras obras, como “Sciusciá”, “Ladrões de Bicicletas”, “A Terra Treme”, chamou a atenção para a cinematografia italiana e para o que se ficaria a conhecer por neo-realismo. Rossellini aproveitou a onda para tentar explicar que alguns filmes seus anteriores, como “La Nave Bianca”, já apresentavam características semelhantes às de “Roma, Cidade Aberta”, procurando deste modo justificar ter sido ele o verdadeiro criador desta corrente, o que alguns outros, nomeadamente os críticos marxistas, Aristarco, De Santis, Verdone, entre outros, não aceitam plenamente. Para estes, o neo-realismo era um questão moral, mas era igualmente um questão política, onde a luta de classes não podia deixar de figurar. Rossellini tinha uma perspectiva diversa, para ele bastava apresentar a realidade na sua simplicidade, na sua secura, para se atingir um quase estado de graça, que muitas obras suas ulteriores iriam confirmar.


De resto, num elenco quase sem actores, Aldo Fabrizi é um padre de uma humanidade e doçura extrema, que consegue todavia arrostar com o seu calvário com a maior dignidade, Anna Magnani, uma mulher que se celebraria, a partir daí, como símbolo da “mamma Roma”, com um desempenho que tornaria a sua presença algo de absolutamente inesquecível (sobretudo a tão citada cena de rua em que é alvejada), e Marcello Pagliero (que, além de actor, foi ainda argumentista e realizador), um resistente admirável na obstinácia com que enfrenta a tortura e a dor.
Finalmente, ainda em 1946, o Festival de Cannes atribui o Grande Prémio ao filme e o Sindacato Nazionale dei Giornalisti Cinematografici Italiani confere o Nastro d'Argento a esta obra, considerando-a a melhor italiana do ano, bem assim como o prémio de Melhor Actriz Secundária a Anna Magnani, igualmente em 1946. Na América, o National Board of Review premeia “Roma, Cidade Aberta”, com o prémio de Melhor Filme em Língua Estrangeira e Anna Mangani como Melhor Actriz, e o New York Film Critics Circle Awards, considera-o igualmente o Melhor Filme em Língua Estrangeira no ano de 46.

ROMA, CIDADE ABERTA
Título original: Roma, Città Aperta
Realização: Roberto Rossellini (Itália, 1945); Argumento: Sergio Amidei, Federico Fellini, Roberto Rossellini, Sergio Amidei, Alberto Consiglio; Produção: Giuseppe Amato, Ferruccio De Martino, Rod E. Geiger, Roberto Rossellini; Música: Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Ubaldo Arata; Montagem: Eraldo Da Roma, Jolanda Benvenuti; Design de produção: Rosario Megna; Direcção de produção: Ferruccio De Martino, Mario Del Papa; Assistentes de realização: Sergio Amidei, Federico Fellini; Som: Raffaele Del Monte; Efeitos visuais: Stefano Ballirano, Stefano Camberini, Pablo Mariano Picabea, Paolo Verrucci, Stefanacci; Companhias de produção: Excelsa Film; Intérpretes: Aldo Fabrizi (Don Pietro Pellegrini), Anna Magnani (Pina), Marcello Pagliero (Giorgio Manfredi / Luigi Ferraris), Vito Annichiarico (Piccolo Marcello), Nando Bruno (Agostino), Harry Feist (Major Bergmann), Giovanna Galletti (Ingrid), Francesco Grandjacquet (Francesco), Eduardo Passarelli, Maria Michi, Carla Rovere. Carlo Sindici, Joop van Hulzen, Ákos Tolnay, Caterina Di Furia, Laura Clara Giudice, Turi Pandolfini, Amalia Pellegrini, Spartaco Ricci, Doretta Sestan, Alberto Tavazzi, etc. Duração: 100 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Data de estreia em Portugal: 13 de Outubro de 1947.