quarta-feira, 8 de abril de 2015

O INTRUSO


O INTRUSO (1976)

Mais uma vez, Luchino Visconti surpreende e causa polémica, sobretudo nos meios marxistas, ao adaptar um romance de Gabriele D'Annunzio, poeta e escritor que ele sempre declarou muito admirar, mas que sempre também se viu colado ao fascismo italiano. Desde início que fora polémico, bastando para tanto afirmar-se aristocrata, comunista e homossexual. O que parecia paradoxal nos anos 40. Depois, o seu gosto pela ópera e o melodrama dir-se-ia quadrar-se mal com as intenções realistas da sua opção política, e estética, dentro desses parâmetros. Finalmente, alguns títulos mostraram-no longe do neo-realismo inicial, mas não das suas ideias igualitárias. Mais para o fim da vida arriscou escolhas no mínimo polémicas. Para produtor de “Violência e Paixão” tinha aceitado Edilio Rusconi, um industrial de direita, o que levantou críticas cerradas dos marxistas. Visconti terá dito apenas que nunca pedira declarações de intenções políticas aos seus produtores. Agora, volta a espantar com a escolha de D'Annunzio.
Anteriormente, tinha tentado adaptar “Esta Noite Improvisa-se”, de Pirandelo, para a televisão, mas o projecto falhara. Aliás, nunca chegará a dirigir para televisão. Depois, interessa-se por “Il Piacere”, de D'Annunzio, mas os direitos já estavam adquiridos por outrem. Elege “L’Innocente”, prepara o argumento com Enrico Medioli e Suso Cecchio d’Amico, mas a doença atrasa o princípio da rodagem. Muito doente, vê agravada a situação com uma queda, que provoca fractura de ombro e perna direita. Depois de um tempo no hospital, será em cadeira de rodas e muito depauperado que inicia as filmagens. Desespera mas não se rende: “Dantes era livre. Utilizava o corpo da forma mais natural do mundo. Agora subitamente descobri que nunca mais posso fazer algumas coisas. Perdi a liberdade.” E noutra confidência: “Nem a velhice nem a doença esgotaram o meu desejo de viver, de trabalhar, continuar a fazer cinema. Com paixão. Porque é necessário arder de paixão sempre que se inicia algo.”


Para esta adaptação de “L’Innocente”, Visconti pretendia Alain Delon e Romy Schneider, como protagonistas, o que não consegue. Para o trio principal irá contar com Giancarlo Giannini (Tullio Hermil), Laura Antonelli (Giuliana Hermil) e Jennifer O'Neill (Teresa Raffo), que darão excelente conta do recado.
Toda a acção decorre nos ambientes romanos aristocráticos de finais do século XIX, num embriagante "dolce far niente". Festas, jantares, saraus musicais, sessões de esgrima e tardes e noites de sexo preenchem o calendário. Tullio Hermil é casado com a bela Giuliana, mas tem como amante a não menos bela Teresa Raffo, que todavia lhe desperta o desejo que a esposa já esgotara. Até ao dia em que aparece Filippo d'Arborio (Marc Porel), escritor, que desperta a paixão de Giuliana e os ciúmes de Tullio, que volta a desejar a mulher e a tenta reconquistar. Claro que toda esta trama se precipita no mais denso melodrama, cujas peripécias elidimos para não retirar o interesse ao espectador. Mas sempre podemos acrescentar que o título original, “L’Innocente” se coaduna muito melhor às intenções e à possível moralidade do texto, que a tradução portuguesa, “O Intruso”. Também se deve acrescentar que romance e filme optam por desenlaces diferentes, sendo que Visconti é muito mais radical na forma como castiga Tullio. Mas, como sempre neste autor, os retratos da aristocracia que desenha, e que evidentemente o seduzem, tendem ao declínio social e ao desaparecimento como casta privilegiada e sem sentido no mundo actual. Este é, pois, mais um rosto da decadência de uma classe social, detentora de direitos que não merecem. Visconti continua coerente com os seus gostos aristocráticos (neste aspecto o filme é de uma elegância estilística e de uma beleza notável, ao nível de ambientes, guarda-roupa, adereços, etc.) e com a razão do seu pensamento social (marxista ou apenas socialista). Há ainda na personagem de Tullio um aspecto que terá seduzido Visconti: o seu radical ateísmo e a consciência do seu “crime” que o levará a agir enquanto tal.


Visconti assina aqui o seu derradeiro filme, mais um testamento a acrescentar a “Violência e Paixão”. Este é um testamento envolto nas mais sumptuosas paisagens de interiores e exteriores que o seu cinema nos ofereceu. Mario Garbuglia, Carlo Gervasi e Piero Tosi assinam este voluptuoso bailado de tecidos e adereços com uma sensualidade digna de nota. Aliás, este será um dos filmes mais sensuais, mais carnais de toda a filmografia viscontineana, com uma ou duas cenas de amor dignas de figurar em antologias do género. Terão as incapacidades físicas de Visconte sido sublimadas nessas cenas de uma tão intensa paixão carnal?
Outra curiosidade a referir é que os véus que, por vezes, cobrem o rosto de Giuliana Hermil terão sido influenciados pelos véus de Eleonora Duse, uma das mais marcantes actrizes de finais do século XIX, que foi amante de Gabriele D'Annunzio, um admirador confesso de Friedrich Nietzsche e do seu ideal de superhomem, cuja moral se encontra “acima do bem ou do mal”. Mas Tullio sabe-se irreparavelmente condenado. Ele próprio o confessa, quando aceita que “D’Arborio foi a única pessoa de quem senti inveja ao comparar-me com ele. Nós estudámos, viajamos, lemos, somos ricos, inteligentes, hábeis, educados… para quê?”
Visconti morre a 17 de Março de 1976. Dois dias depois, as cerimónias fúnebres decorrem na igreja romana de San Ignacio. Uma cerimónia civil, com a presença do Secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer, e uma solenidade religiosa, com a comparência do Presidente da República, Giovanni Leoni, encerram a vida de Visconti, um autor “cujo cinema só poderia ter sido realizado por ele”, como alguém afirmou. “O Intruso” encontra-se ainda em fase de misturas finais. Estreia em Cannes, a 15 de Maio do mesmo ano.

O INTRUSO
Título original: L'innocente

Realização: Luchino Visconti (Itália, França, 1976); Argumento: Suso Cecchi D'Amico, Enrico Medioli, Luchino Visconti, segundo romance de Gabriele D'Annunzio; Produção: Giovanni Bertolucci, Lucio Trentini; Música: Franco Mannino; Fotografia (cor): Pasqualino De Santis; Montagem: Ruggero Mastroianni; Desing de produção: Mario Garbuglia; Decoração: Carlo Gervasi; Guarda-roupa: Piero Tosi; Maquilhagem: Maria Teresa Corridoni, Aldo Signoretti; Direcção de produção: Rossella Angeletti; Assistentes de realização: Albino Cocco, Giorgio Treves, Alessio Girotti; Companhias de produção: Rizzoli Film, Les Films Jacques Leitienne, Imp.Ex.Ci., Francoriz Production; Intérpretes: Giancarlo Giannini (Tullio Hermil), Laura Antonelli (Giuliana Hermil), Jennifer O'Neill (Teresa Raffo), Rina Morelli (mãe de Tullior), Massimo Girotti (conde Stefano Egano), Didier Haudepin (Federico Hermil), Marie Dubois (princesa), Roberta Paladini (Miss Elviretta), Claude Mann (príncipe), Marc Porel (Filippo d'Arborio), Philippe Hersent, Elvira Cortese, Siria Betti, Enzo Musumeci Greco, Alessandra Vazzoler, Marina Pierro, Vittorio Zarfati, Alessandro Consorti, Filippo Perego, Margherita Horowitz, Riccardo Satta, etc. Duração: 125 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): inexistente; Classificação etária: M/12 anos; Data de estreia em Portugal: 14 de Janeiro de 1977; Cópia italiana com legendas em inglês.

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