LIBERTAÇÃO (1946)
“Paisa”
é o segundo título dedicado à “trilogia da guerra”, na qual Roberto Rossellini
vai olhar a Itália ainda ocupada, mas em vésperas da libertação. Depois de
“Roma, Cidade Aberta”, de 1945, e antes de “Alemanha, Ano Zero”, de 1948, este
“Libertação” assume uma estrutura aparentemente invulgar, mas que de certa
forma se integra plenamente no estilo e no tom usado pelo cineasta. Não se
trata de uma história dramaticamente estruturada (já “Roma, Cidade Aberta” não
o era, privilegiando a crónica, de apontamentos dispersos), mas de várias
pequenas crónicas com alguma ordem interior a uni-las: todas se passam durante
os últimos tempos da ocupação nazi (nos anos de 1943 a 1945), quando as tropas
norte-americanas subiam já pela península transalpina, desde o sul, onde haviam
desembarcado, com rumo ao norte, e cada episódio encontra uma lógica junto dos
outros: a progressão é cronológica, do primeiro apontamento, mais antigo, para
o último, mais recente, e essa progressão é igualmente geográfica, desde a
Sicília, ao sul, durante o desembarque, até ao delta do rio Pó. São anotações
que relatam acontecimentos protagonizados por indivíduos ou grupos sociais e
que estão associados sempre a feitos, não direi heróicos, apesar de muitos o
serem, mas de uma banalidade extraordinária, onde a condição humana é
simultaneamente exaltada, mas igualmente vista pelo prisma contrário (conforme
se olhe a opressão ou a luta pela libertação). Rossellini não elege igualmente
um grupo humano como especialmente merecedor de encómios, tratando por igual o
resistente comunista e o sacerdote católico, o miúdo da rua ou a mulher do
povo. Também neste aspecto, “Libertação” prolonga o olhar humanista e simples
de “Roma, Cidade Aberta”, marcando uma posição moral perante a Humanidade e a
forma multifacetada como esta se expressa.
O
argumento teve a colaboração de Alfred Hayes, Annalena Limentani, Sergio Amidei,
Vasco Pratolini, Federico Fellini, Marcello Pagliero e Roberto Rossellini. Cada
um dos seis episódios aparece isolado por um fundo negro, após o qual se
integram algumas actualidades da época, o que confere à totalidade um tom
documental muito caro a Rossellini. Digamos que as pequenas ficções prolongam
harmoniosamente as imagens reais que para trás ficam, e as situam. Uma voz off
completa esse enquadramento histórico.
I.
Sicília. 1943, as tropas norte-americanas desembarcam e um grupo de militares
tenta chegar ao seu destino evitando os terrenos minados pelos nazis. Numa
aldeia, Carmela, uma jovem italiana é “escolhida” para os guiar até junto das
ruinas de um castelo que domina a região. Durante a noite, um soldado, Joe, é
encarregue de ficar junto de Carmela, vigiando-a. Da desconfiança inicial,
passam às confidências, perante as dificuldades da língua diferente. Uma bala
de um alemão colhe Joe, Carmela é feita prisioneira pelos nazis que a tentam
violar. Quando os outros norte-americanos chegam ao local, descobrem o corpo de
Joe e imaginam a traição de Carmela, que todavia teve sorte bem diferente.
Equívocos da guerra.
II.
Numa Nápoles já libertada, onde se instalaram tropas norte-americanas, o caos
social impera. As crianças tentam sobreviver através de todos os meios, entre
os quais o roubo. Um miúdo encontra um soldado negro, completamente bêbado, a
quem rouba as botas. Este, que trabalha para a polícia miliar, irá
reencontrá-lo, desta vez a tentar roubar mercadoria de um camião. Capturado o
jovem, este conduz o militar a um bairro miserável onde diz habitar e onde
afirma encontrarem-se as botas roubadas. Mas tudo não passa de traumática
imaginação do miúdo, cujos pais foram mortos durante os bombardeamentos. E as
botas não são as daquele soldado. Equívocos da guerra.
III. Subindo até Roma, vamos entrar na capital no dia em que esta é libertada pelos soldados aliados (6 de Junho de 1944). Francesca é uma romana jovem que acolhe um soldado americano em sua casa. Há, de um lado e do outro, olhares de pureza e de agradecimento. O soldado irá partir e voltar, meses mais tarde, e não reconhece Francesca, agora adaptada ao estilo de vida dos sobreviventes, que vendem o corpo para assegurar a vida. Num quarto de pensão particular, ela ouve as recordações amorosas desse solado que ficara preso pela imagem dessa Francesca que já não existe. Ou que existirá camuflada pelas necessidades? Francesca larga o soldado adormecido no quarto e deixa-lhe igualmente um bilhete com a morada da “anterior” Francesca. Mas o soldado acorda, amachuca o papel com a “morada de uma prostituta” e parte. Equívocos da guerra.
IV. Florença é palco de batalha, rua a rua. Hariet, uma enfermeira americana, parte com um amigo, Massimo, que quer regressar a casa, para atravessar a cidade e chegar junto de Lupo, um pintor que se tornou chefe da resistência local. Depois de peripécias várias e perigos inumeráveis, depois de se cruzarem com um fleumático e entusiasta veterano da I Guerra Mundial que observa a guerra do alto do seu terraço, identificando cada munição que explode, Harriet e Massimo conhecem a sorte de Lupo, da boca de um moribundo que expira recolhido nos seus braços.
V. Na
região da Emília-Romanha, onde a guerra ainda permanece acesa, um mosteiro
recebe a visita de três capelões militares americanos. Mas dois deles são tidos
como “no mau caminho”: um é protestante, o outro judeu. Trocam-se mantimentos,
e os frades lembram aos americanos que o convento foi criado há mais de 500
anos, “antes ainda de Colombo ter descoberto a América”. Entre os alimentos
racionados e a deliberação de “guiar ao bom caminho” os capelões “desviados”,
tudo acaba na necessidade de se respeitarem as crenças de cada um.
VI. No
inverno de 1944, na região do delta do Pó, os corpos dos resistentes fuzilados
pelos nazis boiam nas águas do rio, enquanto nas margens alemães e resistentes
italianos e americanos trocam fogo. Um grupo tenta captar e sepultar
condignamente mais um cadáver de um “partigiano”, quando é aprisionado pelos
nazis, que liquidam sumariamente os italianos como “terroristas” e tratam os
americanos como “prisoneiros de guerra”. Um americano revolta-se e sofre a
mesma sorte dos italianos.
Ao
longo destes seis episódios, que correspondem a uma outra “viagem por Itália”,
no tempo e no espaço, volta a perceber-se a opção de narrativa de Rossellini.
Longe das grandes ficções melodramáticas, perto dos homens comuns, não
exaltando a narrativa através de qualquer tipo de efeito ou redundância, usando
uma interpretação neutra, recorrendo essencialmente a actores não
profissionais, tentando surpreender fundamentalmente as emoções no seu estado
puro. Obviamente que o filme transborda de emoção, que se sente em cada plano a
tragédia de Itália e do seu povo, que a dor marca os olhares e os gestos, que o
heroísmo espreita a cada esquina, mas tudo decorre em serenidade e justeza. Um
belíssimo filme que, depois de “Roma, Cidade Aberta”, lança internacionalmente
Rossellini, o neo-realismo e o cinema italiano do pós-guerra.
LIBERTAÇÃO
Título original: Paisà
Realização: Roberto Rossellini (Itália,
1946); Argumento: Sergio Amidei, Klaus Mann, Federico Fellini, Marcello
Pagliero, Alfred Hayes, Vasco Pratolini, Rod E. Geiger; Produção: Rod E.
Geiger, Roberto Rossellini, Mario Conti; Música: Renzo Rossellini; Fotografia
(p/b): Otello Martelli; Montagem: Eraldo Da Roma; Direcção de produção: Augusto
Dolfi, Ugo Lombardi, Alberto Manni; Assistentes de realização: Eugenia
Handamir, Annalena Limentani, Federico Fellini, Massimo Mida; Som: Ovidio Del
Grande, Valerio Secondini; Companhias de produção: Organizzazione Film
Internazionali (OFI), Foreign Film Productions; Intérpretes: Carmela Sazio (Carmela), Robert Van Loon (Joe, o
soldado americano), Benjamin Emanuel, Raymond Campbell, Harold Wagner, Albert Heinze,
Merlin Berth, Mats Carlson, Leonard Parrish (todos no episodio I: Sicilia);
Dots Johnson (Joe, o MP americano), Alfonsino Pasca (Pasquale (todos no
episodio II: Napoli); Maria Michi (Francesca), Gar Moore (Fred, o soldado
americano), (no episodio III: Roma); Harriet Medin (Harriet, enfermeira), Renzo
Avanzo (Massimo) (no episodio IV: Firenze); William Tubbs (capitão Bill Martin)
(no episodio V: Appennino Emiliano); Dale Edmonds (Dale, o agente OSS), Allan
(soldado americano), Dan (soldado americano), Roberto Van Loel (soldado
alemão), Cigolani (resistente) (todos no episodio VI: Porto Tolle), e ainda
Giulio Panicali (narrador), Iride Belli, Lorena Berg, Pippo Bonazzi, Gianfranco
Corsini, Leslie Daniels, Fattori, Elmer Feldman, Gigi Gori, Newell Jones,
Giulietta Masina (jovem no episodio IV: Firenze), Carlo Pisacane, etc. Duração: 126 minutos; 134 minutos (versão restaurada); Classificação
etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Data de
estreia em Portugal: 21 de Janeiro de 1949.
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