SENTIMENTO (1954)
“Senso” estabelece uma óbvia
ruptura com os filmes anteriores de Visconti. Passa-se da realidade presente
para a História, por um lado; por outro, abandona-se o neo-realismo puro e duro
e assume-se um realismo crítico muito na linha de um certo pensamento marxista
influenciado sobretudo por Gramsci. O ensaísta e crítico Guido Aristarco tocou
no ponto ao dizer que se passava “da crónica à história”. Creio que esta é uma
conclusão irrefutável. Mas, simultaneamente, Visconti mantém-se completamente
coerente com o seu anterior trajecto, se possível imprimindo ainda uma maior
consistência ao seu estilo. O melodrama social de “Obsessão” ou “Belíssima” é
preservado, se possível ultrapassado. O seu olhar refinado e “culto” sobre a
realidade não se altera, mas intensifica-se. O tom operático que se anunciava
já, instala-se. Mas Visconti afasta-se das personagens “positivas” e passa a
interessar-se por figuras ou grupos sociais que carregam consigo uma decadência
de classe evidente. Dá a entender que Visconti não acredita tanto no “homem
novo”, mas que sabe que o “homem velho” está destinado a desaparecer. Sabe-o,
sente-o, por experiência própria: ele é um representante privilegiado desse
passado. Alguns dos seus filmes seguintes acentuam esta tendência: "II
Gattopardo", "La Caduta degli Dei", "Morte a Venezia",
"Ludwig", "Gruppo di Famiglia in un Interno" ou
"L'Innocente".
“Senso” inicia-se com uma
representação de “Il Trovatore”, de Guiseppe Verdi, no palco do Teatro “La
Fenice”, de Veneza, durante a primavera de 1866. Este início de filme vai
marcá-lo sob diversos pontos de vista. Por um lado, anuncia o tom operático de
todo o filme, o que, de um ponto de vista estilístico, é um feito brilhante da
parte de Visconti. Salta do palco para as ruas de Veneza e os cenários
continuam a ser teatrais no melhor sentido do termo. Alida Valli, percorrendo
as ruas desta cidade, e posteriormente de Verona, é uma sombra que atravessa
palcos, envolta nas suas sumptuosas vestes, e mesmo os encontros com Farley
Granger ficam marcados pela mesma tonalidade romanesca e romântica que a música
temperamental de Verdi (e também de Bruckner e Nino Rota) não deixa de
sublinhar. Estamos, portanto, no domínio da representação, do teatro, da ópera,
do melodrama sentimental e social.
O que nos leva a outra
característica importada de Verdi: a arte como veículo de inspiração política,
social, revolucionária. Verdi foi um dos heróis do Ressurgimento, período que
medeou entre 1815 e 1870 e permitiu a unificação da Itália, tendo acontecido
essencialmente sob o comando de dois independentistas denodados, ainda que com
ideias diversas, o Rei Victor Emanuel II, da Casa de Saboia, partidário
obviamente da monarquia, e Giuseppe Garibaldi (ao lado de Giuseppe Mazzini),
republicano. Antes desta guerra que se prolongou ao longo de várias décadas e
muitas peripécias, com avanços e retornos, o território contra a Itália, estava
ocupado pela Áustria (a maior parte) e pelo Papa (a região romana).
Sucessivamente, foram sendo libertados os Reinos da Sardenha, da Lombardia, do
Vêneto, das Duas Sicílias, do Ducado de Módena e Reggio, do Grão-ducado da
Toscana, do Ducado de Parma e dos Estados Pontifícios. A acção de “Senso”
passa-se precisamente no ano de 1866, aquando da libertação do Reino de Vêneto,
cuja capital era Veneza.
Na noite em que decorre a
representação de “Il Trovatore”, os revolucionários aproveitam o final de um
dos actos da ópera para lançarem panfletos e pequenos ramos de flores (verdes,
vermelhas e brancas, as cores da Itália libertada) sobre a plateia onde se
encontravam alguns altos dignatários militares e civis do dominador austríaco.
No decorrer deste incidente, o marquês Roberto Ussoni, partidário da revolta e
um dos instigadores da acção, trava-se de razões com o tenente austríaco Franz
Mahler, e ambos parecem caminhar para um duelo. Entretanto, nos camarotes, a
condessa Lívia Serpieri, adepta dos revolucionários (e casada com o conde
Serpieri, colaboracionista com o ocupante), apercebe-se da sorte de Ussoni, seu
primo, e resolve intervir, pedindo para falar com Mahler, a fim de o dissuadir
do duelo. Percebe-se que o encontro entre Lívia e Franz é fulminante e Lívia
acaba apaixonada pelo jovem militar. O que decorre desta colisão é uma
envolvente e irracional história de amor e perdição que levará Lívia a trair os
seus ideais e Franz a revelar-se um delator, um cobarde, um desertor e,
fundamentalmente, um arrivista sem escrúpulos. De degrau em degrau, de infâmia
em infâmia, nesta escalada de uma paixão sem futuro, Lívia cede à tentação da
vingança.
É muito curiosa esta relação
ópera-melodrama com a realidade vivida no filme. Quando Mahler pergunta a Lívia
se gosta de ópera, esta responde “não gosto quando salta do palco, quando
alguém aí se comporta como herói de um melodrama”. E, no entanto, o que irá
acontecer, e Visconti sublinha-o bem na sua realização, é a ópera saltar para
as ruas de Veneza e os protagonistas se comportarem como heróis de um
melodrama.
Para lá de esboçar uma
panorâmica histórica do conflito militar e político que está na origem da
Itália moderna, Visconti atém-se sobretudo à questão amorosa, que todavia se
cruza com a intriga social de forma muito inteligente, mostrando como o amor
pode ofuscar a racionalidade e conduzir à perfídia. No tempo, falava-se muito
de alienação e este é o típico caso de uma alienação amorosa, obsessiva, que
conduz à perdição de todos os seus intervenientes. Estamos, portanto, nos
terrenos do melodrama mais radical, mas alicerçado em fortes componentes
políticas e sociais. Este é o retrato de uma sociedade decadente, que subverte
valores sociais a interesses pessoais. O conde Serpieri é um exemplo do
aristocrata que se procura manter à tona da água, sobrevivendo em todas as
situações, mudando de casaca quando o acha conveniente. Lívia, devastada pela
paixão, segue o mesmo caminho, ainda que por razões que o melodrama tende a justificar
melhor: é em nome de um amor absoluto que ela trai, que se humilha, que se
transforma numa assassina (como é acusada por um oficial austríaco). Amores
fatídicos, portanto.
O filme parte de um romance de
Camillo Boito, escrito em 1883, e que representava um olhar revolucionário
sobre a realidade italiana de então. A adaptação do argumento esteve a cargo de
Luchino Visconti, Suso Cecchi D'Amico, com a colaboração de Carlo Alianello,
Giorgio Bassani, Giorgio Prosperi, e ainda de Tennessee Williams e Paul Bowles,
nos diálogos ingleses. A adaptação procura manter-se fiel ao original,
introduzindo-lhe, porém, algumas alterações que vão no sentido de acentuar
certos aspectos que interessavam a Visconti. Lívia deixa de ser a dissoluta
protagonista do romance e dá-se enfase à personagem de Ussoni, um aristocrata
nacionalista.
Todo o filme é de um
barroquismo notável, de um bom gosto inexcedível, jogando admiravelmente com os
exteriores, utilizados em forma de cenário teatral, e com os interiores
sobrecarregados de adereços, mesclando sabiamente as cores e as tonalidades.
Para isso, muito terá contribuído a óptima fotografia de G.R. Aldo e de Robert
Krasker (que substituiu o primeiro, após a sua morte, num acidente). Mas todo
cuidado cénico, da responsabilidade de Ottavio Scotti, bem como a decoração, a
cargo de Gino Brosio, e o sumptuoso guarda-roupa com a assinatura de Marcel
Escoffier e Piero Tosi se organizam de forma brilhante. Uma palavra ainda à
montagem de Mario Serandrei, um dos habituais colaboradores de Visconti, que
vai assim construindo à sua volta uma equipa fiel que o acompanhará em muitos
filmes. Refira-se ainda que o autor voltou a contar como assistentes com
Francesco Rosi e Franco Zeffirelli, este pela última vez, depois de algumas
desavenças ideológicas (e consta que sentimentais, igualmente), além de Aldo
Trionfo, Giancarlo Zagni e Jean-Pierre Mocky (este último que se tornaria
igualmente um cineasta de importância, no quadro da cinematografia francesa).
Na interpretação, Alida Valli é fabulosa na sua composição da atormentada e
apaixonada Lívia, Farley Granger consegue dar o cinismo do arrivista que depois
se revela, e todos os restantes estão à altura do que Visconti lhes exigiu, ou
não fosse o cineasta um óptimo director de actores.
Estreado no Festival de Veneza,
“Senso” ira perder o Leão de Ouro para "Romeo e Giulietta" de Renato
Castellani, uma obra extremamente interessante, mas definitivamente menor ao
lado da obra-prima de Visconti. Mas a sorte do filme não ficaria por aí. A censura
impôs cortes, dado o ambiente político em que a obra decorre. A crítica também
se dividiu, com Aristarco a defendê-la e alguns mentores do neo-realismo a
atacá-la, como foi o caso de Luigi Chairini, que objectava contra a
desvirtuação do espírito neo-realista.
SENTIMENTO
Título original: Senso
Realização: Luchino Visconti (Itália, 1954);
Argumento: Luchino Visconti, Suso Cecchi D'Amico, com colaboração de Carlo
Alianello, Giorgio Bassani, Giorgio Prosperi, segundo romance de Camillo Boito;
Colaboração nos diálogos Tennessee Williams, Paul Bowles; Fotografia (cor):
G.R. Aldo, Robert Krasker; Montagem: Mario Serandrei; Desing de produção:
Ottavio Scotti; Decoração: Gino Brosio; Guarda-roupa: Marcel Escoffier, Piero
Tosi; Maquilhagem: Alberto De Rossi;
Direcção de produção: Domenico
Forges Davanzati, Marcello Giannini, Gabriele Silvestri; Assistentes de
realização: Francesco Rosi, Aldo Trionfo, Giancarlo Zagni, Franco Zeffirelli,
Jean-Pierre Mocky; Som: Aldo Calpini, Vittorio Trentino; Companhia de produção:
Lux Film; Intérpretes: Alida Valli
(condessa Livia Serpieri), Farley Granger (tenente Franz Mahler), Heinz Moog
(conde Serpieri), Rina Morelli (Laura, a governanta), Christian Marquandn
(oficial boémio), Sergio Fantoni (Luca), Tino Bianchi (capitão Meucci), Ernst
Nadherny (comandante de Verona), Tonio Selwart (coronel Kleist), Marcella
Mariani (Clara, prostituta), Massimo Girotti (Roberto Ussoni), Franco Arcalli,
Aldo Bajocchi, Ottone Candiani, Nando Cicero,Claudio Coppetti, Cristoforo De
Hartungen, Tony Di Mitri, Eugenio Incisivo, Marianne Leibl, Jean-Pierre Mocky,
Spartaco Nale, Ivy Nicholson, Mimmo Palmara, Winni Riva, Goliarda Sapienza,
Renato Terra, Gustl Untersulzner, Mario Valente, etc. Duração: 122 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Cristal Film /
Alambique; Classificação etária: M/12 anos; Data de estreia em Portugal: 30 de
Novembro de 1955.
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