quarta-feira, 8 de abril de 2015

SENTIMENTO



SENTIMENTO (1954)


“Senso” estabelece uma óbvia ruptura com os filmes anteriores de Visconti. Passa-se da realidade presente para a História, por um lado; por outro, abandona-se o neo-realismo puro e duro e assume-se um realismo crítico muito na linha de um certo pensamento marxista influenciado sobretudo por Gramsci. O ensaísta e crítico Guido Aristarco tocou no ponto ao dizer que se passava “da crónica à história”. Creio que esta é uma conclusão irrefutável. Mas, simultaneamente, Visconti mantém-se completamente coerente com o seu anterior trajecto, se possível imprimindo ainda uma maior consistência ao seu estilo. O melodrama social de “Obsessão” ou “Belíssima” é preservado, se possível ultrapassado. O seu olhar refinado e “culto” sobre a realidade não se altera, mas intensifica-se. O tom operático que se anunciava já, instala-se. Mas Visconti afasta-se das personagens “positivas” e passa a interessar-se por figuras ou grupos sociais que carregam consigo uma decadência de classe evidente. Dá a entender que Visconti não acredita tanto no “homem novo”, mas que sabe que o “homem velho” está destinado a desaparecer. Sabe-o, sente-o, por experiência própria: ele é um representante privilegiado desse passado. Alguns dos seus filmes seguintes acentuam esta tendência: "II Gattopardo", "La Caduta degli Dei", "Morte a Venezia", "Ludwig", "Gruppo di Famiglia in un Interno" ou "L'Innocente".
“Senso” inicia-se com uma representação de “Il Trovatore”, de Guiseppe Verdi, no palco do Teatro “La Fenice”, de Veneza, durante a primavera de 1866. Este início de filme vai marcá-lo sob diversos pontos de vista. Por um lado, anuncia o tom operático de todo o filme, o que, de um ponto de vista estilístico, é um feito brilhante da parte de Visconti. Salta do palco para as ruas de Veneza e os cenários continuam a ser teatrais no melhor sentido do termo. Alida Valli, percorrendo as ruas desta cidade, e posteriormente de Verona, é uma sombra que atravessa palcos, envolta nas suas sumptuosas vestes, e mesmo os encontros com Farley Granger ficam marcados pela mesma tonalidade romanesca e romântica que a música temperamental de Verdi (e também de Bruckner e Nino Rota) não deixa de sublinhar. Estamos, portanto, no domínio da representação, do teatro, da ópera, do melodrama sentimental e social.


O que nos leva a outra característica importada de Verdi: a arte como veículo de inspiração política, social, revolucionária. Verdi foi um dos heróis do Ressurgimento, período que medeou entre 1815 e 1870 e permitiu a unificação da Itália, tendo acontecido essencialmente sob o comando de dois independentistas denodados, ainda que com ideias diversas, o Rei Victor Emanuel II, da Casa de Saboia, partidário obviamente da monarquia, e Giuseppe Garibaldi (ao lado de Giuseppe Mazzini), republicano. Antes desta guerra que se prolongou ao longo de várias décadas e muitas peripécias, com avanços e retornos, o território contra a Itália, estava ocupado pela Áustria (a maior parte) e pelo Papa (a região romana). Sucessivamente, foram sendo libertados os Reinos da Sardenha, da Lombardia, do Vêneto, das Duas Sicílias, do Ducado de Módena e Reggio, do Grão-ducado da Toscana, do Ducado de Parma e dos Estados Pontifícios. A acção de “Senso” passa-se precisamente no ano de 1866, aquando da libertação do Reino de Vêneto, cuja capital era Veneza.
Na noite em que decorre a representação de “Il Trovatore”, os revolucionários aproveitam o final de um dos actos da ópera para lançarem panfletos e pequenos ramos de flores (verdes, vermelhas e brancas, as cores da Itália libertada) sobre a plateia onde se encontravam alguns altos dignatários militares e civis do dominador austríaco. No decorrer deste incidente, o marquês Roberto Ussoni, partidário da revolta e um dos instigadores da acção, trava-se de razões com o tenente austríaco Franz Mahler, e ambos parecem caminhar para um duelo. Entretanto, nos camarotes, a condessa Lívia Serpieri, adepta dos revolucionários (e casada com o conde Serpieri, colaboracionista com o ocupante), apercebe-se da sorte de Ussoni, seu primo, e resolve intervir, pedindo para falar com Mahler, a fim de o dissuadir do duelo. Percebe-se que o encontro entre Lívia e Franz é fulminante e Lívia acaba apaixonada pelo jovem militar. O que decorre desta colisão é uma envolvente e irracional história de amor e perdição que levará Lívia a trair os seus ideais e Franz a revelar-se um delator, um cobarde, um desertor e, fundamentalmente, um arrivista sem escrúpulos. De degrau em degrau, de infâmia em infâmia, nesta escalada de uma paixão sem futuro, Lívia cede à tentação da vingança.

É muito curiosa esta relação ópera-melodrama com a realidade vivida no filme. Quando Mahler pergunta a Lívia se gosta de ópera, esta responde “não gosto quando salta do palco, quando alguém aí se comporta como herói de um melodrama”. E, no entanto, o que irá acontecer, e Visconti sublinha-o bem na sua realização, é a ópera saltar para as ruas de Veneza e os protagonistas se comportarem como heróis de um melodrama.
Para lá de esboçar uma panorâmica histórica do conflito militar e político que está na origem da Itália moderna, Visconti atém-se sobretudo à questão amorosa, que todavia se cruza com a intriga social de forma muito inteligente, mostrando como o amor pode ofuscar a racionalidade e conduzir à perfídia. No tempo, falava-se muito de alienação e este é o típico caso de uma alienação amorosa, obsessiva, que conduz à perdição de todos os seus intervenientes. Estamos, portanto, nos terrenos do melodrama mais radical, mas alicerçado em fortes componentes políticas e sociais. Este é o retrato de uma sociedade decadente, que subverte valores sociais a interesses pessoais. O conde Serpieri é um exemplo do aristocrata que se procura manter à tona da água, sobrevivendo em todas as situações, mudando de casaca quando o acha conveniente. Lívia, devastada pela paixão, segue o mesmo caminho, ainda que por razões que o melodrama tende a justificar melhor: é em nome de um amor absoluto que ela trai, que se humilha, que se transforma numa assassina (como é acusada por um oficial austríaco). Amores fatídicos, portanto.
O filme parte de um romance de Camillo Boito, escrito em 1883, e que representava um olhar revolucionário sobre a realidade italiana de então. A adaptação do argumento esteve a cargo de Luchino Visconti, Suso Cecchi D'Amico, com a colaboração de Carlo Alianello, Giorgio Bassani, Giorgio Prosperi, e ainda de Tennessee Williams e Paul Bowles, nos diálogos ingleses. A adaptação procura manter-se fiel ao original, introduzindo-lhe, porém, algumas alterações que vão no sentido de acentuar certos aspectos que interessavam a Visconti. Lívia deixa de ser a dissoluta protagonista do romance e dá-se enfase à personagem de Ussoni, um aristocrata nacionalista.
Todo o filme é de um barroquismo notável, de um bom gosto inexcedível, jogando admiravelmente com os exteriores, utilizados em forma de cenário teatral, e com os interiores sobrecarregados de adereços, mesclando sabiamente as cores e as tonalidades. Para isso, muito terá contribuído a óptima fotografia de G.R. Aldo e de Robert Krasker (que substituiu o primeiro, após a sua morte, num acidente). Mas todo cuidado cénico, da responsabilidade de Ottavio Scotti, bem como a decoração, a cargo de Gino Brosio, e o sumptuoso guarda-roupa com a assinatura de Marcel Escoffier e Piero Tosi se organizam de forma brilhante. Uma palavra ainda à montagem de Mario Serandrei, um dos habituais colaboradores de Visconti, que vai assim construindo à sua volta uma equipa fiel que o acompanhará em muitos filmes. Refira-se ainda que o autor voltou a contar como assistentes com Francesco Rosi e Franco Zeffirelli, este pela última vez, depois de algumas desavenças ideológicas (e consta que sentimentais, igualmente), além de Aldo Trionfo, Giancarlo Zagni e Jean-Pierre Mocky (este último que se tornaria igualmente um cineasta de importância, no quadro da cinematografia francesa). Na interpretação, Alida Valli é fabulosa na sua composição da atormentada e apaixonada Lívia, Farley Granger consegue dar o cinismo do arrivista que depois se revela, e todos os restantes estão à altura do que Visconti lhes exigiu, ou não fosse o cineasta um óptimo director de actores.
Estreado no Festival de Veneza, “Senso” ira perder o Leão de Ouro para "Romeo e Giulietta" de Renato Castellani, uma obra extremamente interessante, mas definitivamente menor ao lado da obra-prima de Visconti. Mas a sorte do filme não ficaria por aí. A censura impôs cortes, dado o ambiente político em que a obra decorre. A crítica também se dividiu, com Aristarco a defendê-la e alguns mentores do neo-realismo a atacá-la, como foi o caso de Luigi Chairini, que objectava contra a desvirtuação do espírito neo-realista.


SENTIMENTO
Título original: Senso

Realização: Luchino Visconti (Itália, 1954); Argumento: Luchino Visconti, Suso Cecchi D'Amico, com colaboração de Carlo Alianello, Giorgio Bassani, Giorgio Prosperi, segundo romance de Camillo Boito; Colaboração nos diálogos Tennessee Williams, Paul Bowles; Fotografia (cor): G.R. Aldo, Robert Krasker; Montagem: Mario Serandrei; Desing de produção: Ottavio Scotti; Decoração: Gino Brosio; Guarda-roupa: Marcel Escoffier, Piero Tosi; Maquilhagem: Alberto De Rossi;  Direcção de  produção: Domenico Forges Davanzati, Marcello Giannini, Gabriele Silvestri; Assistentes de realização: Francesco Rosi, Aldo Trionfo, Giancarlo Zagni, Franco Zeffirelli, Jean-Pierre Mocky; Som: Aldo Calpini, Vittorio Trentino; Companhia de produção: Lux Film; Intérpretes: Alida Valli (condessa Livia Serpieri), Farley Granger (tenente Franz Mahler), Heinz Moog (conde Serpieri), Rina Morelli (Laura, a governanta), Christian Marquandn (oficial boémio), Sergio Fantoni (Luca), Tino Bianchi (capitão Meucci), Ernst Nadherny (comandante de Verona), Tonio Selwart (coronel Kleist), Marcella Mariani (Clara, prostituta), Massimo Girotti (Roberto Ussoni), Franco Arcalli, Aldo Bajocchi, Ottone Candiani, Nando Cicero,Claudio Coppetti, Cristoforo De Hartungen, Tony Di Mitri, Eugenio Incisivo, Marianne Leibl, Jean-Pierre Mocky, Spartaco Nale, Ivy Nicholson, Mimmo Palmara, Winni Riva, Goliarda Sapienza, Renato Terra, Gustl Untersulzner, Mario Valente, etc. Duração: 122 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Cristal Film / Alambique; Classificação etária: M/12 anos; Data de estreia em Portugal: 30 de Novembro de 1955. 

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