VIAGEM EM ITÁLIA (1953)
“Viaggio
in Italia” data de 1953 e é o segundo tomo da tetralogia dedicada por
Rossellini à então sua mulher e musa inspiradora, Ingrid Bergman. Dir-se-ia
que, depois do cartão recebido pelo cineasta, com a actriz a oferecer-se para
sua actriz, quando ele quisesse, Rossellini quis demonstrar a força do seu
talento e o poder que o mesmo impunha, ao realizar “Strombolli”, onde
sacrificou sobremaneira a actriz sueca que em italiano só sabia dizer “ti amo”.
Ingrid
passou a prova, mas nos filmes seguintes Rossellini já lhe ofereceu um
tratamento de vedeta, nomeadamente em “Viagem em Itália”, com um companheiro à
altura (George Sanders) e direito a guarda-roupa especial, maquilhagem e tudo o
mais. Depois de um primeiro round a impor a supremacia do génio, surgiram um
segundo e terceiro a seduzir a actriz, após o que surgiria um quarto, “O Medo”,
a prenunciar o divórcio, ou não se chamasse já no original “La Paura, Non Credo
Più all'Amore”. Julgo portanto que estas quatro obras se encontram
indissociáveis da história de amor vivida na realidade por realizador e actriz.
Estranho seria que fosse outra de outra forma.
Por
morte de um tio que vivia em Itália, perto de Nápoles, e que lhes deixou em
herança uma bela “villa”, um casal de ingleses, Catherine (Ingrid Bergman) e
Alexander Joyce (George Sanders) viajam até Itália, de carro. O casal,
percebe-se rapidamente, atravessa um período de crise. Período longo, ao que se
supõe pelo diálogo. “Esta é a primeira vez que estamos sós, desde o nosso
casamento”, diz Catherine. Alex é um inglês imperturbável, frio, distante,
metido consigo e com os seus negócios, que não deve dar grande importância aos
sentimentos. Catherine é uma romântica que as circunstâncias adormeceram,
frustrada nos seus sonhos, rabugenta por força das situações, remoendo o gelo
que se instalara entre ambos. A sua entrada nas estradas italianas é
sintomática do espírito que anima o casal. Não gostam do que vêem, Alex pede
para ser ele a conduzir, e troca com a mulher, “senão adormece”, e os animais
que se lhe atravessam no percurso indispõem-no visivelmente. A Inglaterra é
obviamente diferente, e esta ambiência terceiro-mundista desagrada-lhe.
Imaginam uma casa em ruínas e dificuldades em a vender rapidamente para
regressarem a Londres. Mas o que se lhes depara é muito diferente: afinal o tio
tinha bom gosto e uma vivenda excelentemente situada, mobilada e decorada, os
vinhos da região são bons, a comida também, as pessoas simpáticas e prestáveis.
Mas as noites em comum, apesar dos quartos separados, são difíceis de passar. E
os dias são preenchidos com ocupações muito diversas. Catherine visita museus e
monumentos, sempre guiada por cicerones oficiais que lhe recitam a lengalenga
habitual, e confronta-se com uma cultura muito diversa da sua. As mulheres
grávidas que circulam nas ruas levam-na a curiosas conclusões sobre a vida
italiana. Ele, por seu turno, viaja até Capri, para tentar uma aventura de uma
noite com uma conhecida recente, que delicadamente o afasta, depois vagueia
pelas ruas, entretém-se em hotéis e bares, conversa com uma prostituta que
finalmente descarta, para regressar a casa e decidir o divórcio com Catherine.
Tudo
parece encaminhar-se para o desfecho previsível, quando surge uma visita às
ruinas de Pompeia, onde acompanham a operação de desobstrução de uma múmia
ainda enterrada na areia e na lava. Lentamente vai-se revelando um casal que
foi apanhado pela erupção do Vesúvio e que se eternizou abraçado, no leito.
Esta imagem impressiona sobremaneira Catherine, que se retira. Quando, no dia
seguinte, o carro vagueia pelas ruas de Nápoles, é obrigado a parar para dar
passagem à procissão em honra de San Gennaro. A multidão que a acompanha e que
subitamente começa a clamar por “Milagre!” leva o casal a abraçar-se e a
comungar nessa onda febril de devoção. Reconciliação? Até quando?
Esta
obra provocou as mais violentas reacções aquando da sua estreia, criando uma
polémica grande entre aqueles que a recusaram liminarmente e os que a
aplaudiram, afirmando que aqui se iniciava o cinema moderno.
Passados
sessenta anos, cremos que nem uma nem outra das posições é defensável,
presentemente. Não por acaso, o filme não aparece na lista dos 50 melhores
filmes de todos os tempos, eleitos recentemente pela revista “Sight and Sound”,
através de escrutínio de críticos e cineastas de todo o mundo. “Viagem em
Itália” teve uma importância óbvia no seu tempo (tal como, por exemplo, “Breve
Encontro”, de David Lean, em meados dos anos 40), mas não é a obra charneira de
uma época, sequer a obra-prima indiscutível que os “Cahiers du Cinéma”
proclamaram na altura. A realização procura afastar o dramatismo inerente a
este tipo de histórias sentimentais, limpando-a de efeitos excessivos, e marca
realmente uma ruptura com um cinema dominado por questões sociais, iniciando
uma pesquisa intimista, que começa a interiorizar a análise das emoções e dos
sentimentos individuais. Claro que “Viagem em Itália” antecipa outras obras,
como algumas de Antonioni, onde a solidão no mundo moderno é objecto central de
reflexão, tendo como ponto de partida personagens pertencentes à grande
burguesia ocidental. É evidente, igualmente, a qualidade e a límpida clareza da
realização de Rossellini, aqui magnificamente servida por dois actores
notáveis, que, com uma inteligência e discrição de referir, conseguem
transmitir uma invulgar paleta de complexas emoções.
Um
belíssimo filme, portanto, que se pode ver hoje em dia serenamente, longe das
polémicas extremistas que desencadeou na década de 50 do século passado.
VIAGEM EM ITÁLIA
Título original: Viaggio in
Italia
Realização: Roberto Rossellini (Itália,
França, 1953); Argumento: Vitaliano Brancati, Roberto Rossellini, Antonio
Pietrangeli, segundo romance de Colette ("Duo"); Produção: Adolfo
Fossataro, Alfredo Guarini, Roberto Rossellini; Música (arranjos): Renzo
Rossellini; Fotografia (p/b): Enzo Serafin; Montagem: Jolanda Benvenuti; Design
de produção: Piero Filippone; Guarda-roupa: Fernanda Gattinoni; Direcção de
produção: Marcello D'Amico, Mario Del Papa, Emimmo Salvi; Assistentes de
realização: Marcello Caracciolo Di Laurino, Vladimiro Cecchi; Som: Gilles
Barberis, Eraldo Giordani; Companhias de produção: Italia Film, Junior Film,
Sveva Film, Les Films Ariane, Francinex, Société Générale de Cinématographie
(S.G.C.); Intérpretes: Ingrid
Bergman (Katherine Joyce), George Sanders (Alexander 'Alex' Joyce), Maria
Mauban (Maria), Anna Proclemer (a prostituta), Paul Muller (Paul Dupont),
Leslie Daniels (Tony Burton), Natalia Ray (Natalie), Jackie Frost (Betty),
María Martín, Bianca Maria Cerasoli, Adriana Danieli, Lyla Rocco, etc. Duração: 97 minutos; Classificação etária: M/ 12
anos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Data de estreia em
Portugal: 28 de Outubro de 1955.
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