quarta-feira, 8 de abril de 2015

OS MALDITOS



OS MALDITOS (1969)


Alemanha, Fevereiro de 1933. A família do Barão Joaquim von Essenbeck, potentado do aço, festeja o seu aniversário, no mesmo dia em que o Reichstag aparece em chamas. Na vasta mesa de jantar, reúnem-se os diversos membros da família: Sophie, filha do Barão, e o seu amante, Friedrich Bruckmann, director da fábrica de aço; Martin, filho de Sophie; Konstantin, dirigente das S.A., sobrinho do Barão e pretendente a um lugar de comando na sua fábrica; Elisabeth, sobrinha de Joaquim, casada com Herbert Thalmann, o único democrata sincero na família; as duas filhas menores deste casamento; um filho de Konstantin, Gunther, estudante de música, que o pai procura transformar num administrador; finalmente, o primo Aschenbach, fanático SS.
Importante definir os diversos membros desta estranha reunião de família, dado que todo o filme de Visconti roda em volta deles. O próprio cineasta haveria de chamar ao seu filme um "retrato de família" que ultrapassa essa condição para se situar a um outro nível, mais geral. Simbolicamente, é a Alemanha nazi que é bisturizada pela fria análise histórica, política, económica e social de Visconti. São sobretudo as relações entre o capital e o poder político que são estudadas em "Os Malditos". A forma como um e outro se interligam e se condicionam. Um dos membros da família Essenbeck (precisamente o liberal Herbert) bem denuncia este facto ao dizer: "o nazismo é uma criação nossa. Fomos nos que o alimentámos e financiámos."


Senão, vejamos como se articulam os diferentes elementos dos Essenbeck, em relação à conquista do poder, através da manipulação do capital. Para a Alemanha hitleriana, a indústria do aço era extremamente importante, essencial mesmo. Não só por ser uma indústria básica, mas sobretudo por ser uma das bases do fabrico de material bélico. Para se poder contar com um exército bem equipado (não só para a repressão interna, como para a expansão externa) era necessário ter uma forte indústria bélica, logo uma siderurgia gigantesca. No caso presente, os Essenbeek possuíam-na. Mas o barão Von Essenbeck declara, nesse jantar de aniversário, que pretendia situar-se num plano de neutralidade face ao ascendente poder nazi. Importava, portanto, afastar esse elemento, se necessário pela eliminação pura e simples. O que acontece com uma circunstância adicional. Como Herbert, o liberal da família, se declara contra a ascensão das forcas nacional-socialistas, ele acaba por ser envolvido na mesma onda e denunciado à Gestapo como autor da morte do velho barão. A arma do crime indica, muito indiscretamente, Herbert como culpado. De uma assentada, são afastados dois elementos incómodos, continuando a honra do "clã" acima de toda a suspeita.
Ficam, portanto, em jogo três fortes concorrentes com intenções algo diferentes. Por um lado, Friedrich, que, através de Sophie, procura controlar toda a fábrica; por outro, Konstantin, que procura pôr a fábrica a trabalhar para o armamento das SA; finalmente, o primo Aschenbach, que procura "servir lealmente" Hitler e colocar à disposição das SS o produto da siderurgia.
Mas, se o processo se vai lentamente clarificando, não é menos verdade que ficam ainda peças importantes que podem conduzir o jogo para várias saídas. Importa prosseguir na depuração: é chegada a vez de eliminar Konstantin, o que acontece durante a célebre "noite das facas longas", durante a qual o Estado-Maior das SA é completamente dizimado por uma carga de metralha dos SS. Restam, nesta altura, duas figuras que se poderiam completar, mas Aschenbach não confia em demasia na lealdade de Friedrich. Assim sendo, e servindo-se da cumplicidade de Martin, filho de Sophie, Aschenbach consegue controlar a situação: o casamento oficial de Friedrich e Sophie (que poderia ser a legalização de uma situação de força e poderio para o primeiro) acaba por ser simplesmente a antecâmara de um suicídio, servido em cápsula de cianeto pelo perverso Martin. Daqui em diante, a siderurgia dos Essenbeck está indissociavelmente ligada ao poder político nazi. Submetido o poder económico ao poder político (não esquecer que o poder económico havia criado o poder político anteriormente), está solidificado o estado nazi. A aventura expansionista irá começar. Com as consequências que todos sabemos.


O filme de Visconti poderá parecer, pela descrição atrás esboçada, uma espécie de operação matemática ilustrada em imagem, o que tem o seu quê de verdade, mas não basta. Trata-se efectivamente de um filme que demonstra, por A mais B, em progressão algébrica, como se gerou um monstro, mas a construção da obra não denuncia, sequer vagamente, qualquer tipo de simplismo demonstrativo. Visconti é, na realidade, um fabuloso narrador, um pintor de ambientes admirável, um soberbo retratista da decadência de uma sociedade. Já assim fora em "Sentimento", assim prosseguira em “Rocco e os Seus Irmãos" ou “O Leopardo". O fôlego lírico e trágico do grande mestre italiano concede a cada nova película o estatuto de tragédia social. É precisamente do entrelaçar profundo destas duas opções, uma respiração lírica e trágica e um traçado didáctico e algo demonstrativo, que surge a originalidade fecunda do cinema de Visconti.
Houve quem falasse, a propósito deste filme, de uma tragédia de Shakespeare, encenada como se se tratasse de uma ópera de Wagner. O sopro gélido do destino dos Nibelungos é mais do que evidente. A clareza de análise de um Shakespeare está sempre presente. Com a delicadeza suprema de um aristocrata, Visconti olha (e aproxima-se, como nesses travellings sucessivos, que aprofundam o olhar) a decadência de uma família e, através dela, a decadência de um certo Ocidente. A amálgama entre a febre do poder e a corrupção para o atingir, entre a perversidade e a doença, entre o assassinato e o estupro, conduzem os Essenbeck a um gradual mas inevitável afundamento moral, quando na aparência a Alemanha ressurgia triunfalista e conquistadora. Visconti, como raros, consegue transformar esta odisseia da mesquinhez e da traição numa fabulosa lição política (logo, ética) e num espectáculo sumptuoso, onde a espectacularidade dos meios, em lugar de abafar as intenções, as sublinha discretamente.
Director de actores à altura dos mais reputados, em "Os Malditos" tem Visconti à sua disposição um conjunto de personalidades de maleabilidade insuperável, o que ajuda a transformar esta película numa obra-prima de um classicismo depurado na sua construção, com sequências de um barroquismo absorvente, jogando por vezes até com elementos expressionistas. Referência a uma corrente estética que prenunciou o advento da monstruosidade alemã.


OS MALDITOS
Título original: La caduta degli dei ou Götterdämmerung

Realização: Luchino Visconti (Itália, RFA, 1969); Argumento: Nicola Badalucco, Enrico Medioli, Luchino Visconti; Produção: Attilio D'Onofrio, Ever Haggiag, Alfred Levy, Pietro Notarianni; Música: Maurice Jarre; Fotografia (cor): Pasqualino De Santis, Armando Nannuzzi; Montagem: Ruggero Mastroianni; Desing de produção: Vincenzo Del Prato; Direcção artística: Pasquale Romano; Guarda-roupa: Piero Tosi; Maquilhagem: Mauro Gavazzi, Luciano Vito; Direcção de produção: Giuseppe Bordogni, Anna Davini, Ernst Egerer, Hugo Leeb, Umberto Sambuco, Bruno Sassaroli, Gilberto Scarpellini; Assistentes de realização: Albino Cocco, Fanny Wessling; Som: Vittorio Trentino; Companhias de produção: Ital-Noleggio Cinematografico, Praesidens, Pegaso Cinematografica, Eichberg-Film; Intérpretes: Dirk Bogarde (Frederick Bruckmann), Ingrid Thulin (Sophie Von Essenbeck), Helmut Griem (Aschenbach), Helmut Berger (Martin Von Essenbeck), Renaud Verley (Gunther Von Essenbeck), Umberto Orsini (Herbert Thallman), Reinhard Kolldehoff (Konstantin Von Essenbeck), Albrecht Schoenhals (Joachim Von Essenbeck), Florinda Bolkan (Olga), Nora Ricci (gpvernanta), Charlotte Rampling (Elisabeth Thallman), Irina Wanka (Lisa), Karin Mittendorf (Thilde Thallman), Valentina Ricci (Erika Thalman), Wolfgang Hillinger, Bill Vanders, Howard Nelson Rubien, Werner Hasselmann, Peter Dane, Mark Salvage, Karl-Otto Alberty, John Frederick, Richard Beach, Klaus Höhne, Ernst Kuhr, Peter Brandt, Wolfgang Ehrlich, Ester Carloni, Antonietta Fiorito, Jessica Dublin, Piero Morgia, Karl Hass, Judith Burnett, Al Cliver, etc. Duração: 156 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Warner Brothers; Classificação etária: M/16 anos; Data de estreia em Portugal: 18 de Dezembro de 1969. 

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