NOITES
BRANCAS (1957)
Em “Le Notti Bianche”, Luchino
Visconti afasta-se aparentemente do neo-realismo que marcou toda a fase inicial
da sua carreira, optando por um romantismo extremado, que a rodagem da obra em
exteriores totalmente reconstruidos em estúdio acentua. Na verdade, esta
adaptação de uma novela de Fiódor Dostoiévski (datada de 1848), que procura
manter-se fiel ao espírito da obra literária, mas que permitiu a Visconti
grandes liberdades de criação, nomeadamente na caracterização das personagens
centrais, afasta-se bastante do realismo de “Obsessão”, “A Terra Treme” ou
“Belíssima”, inscrevendo-se num tom melodramático que já era uma constante no
autor, mas agora optando por uma atmosfera de um romantismo exacerbado, quer ao
nível da história, quer no plano do estilo escolhido.
A transposição para Itália
acaba por não trazer grandes alterações à estrutura narrativa. A Visconti não
interessava localizar geograficamente com precisão esta história de amores
obsessivos e/ou impossíveis. Esta é uma história fantástica, de todos os tempos
e de nenhum em particular, que se pode passar em qualquer ou em nenhum lugar.
Livorno terá sido a cidade de inspiração, mas nada está definido no filme. Não
será também por acaso que Visconti escolhe criteriosamente para a terceira
figura central (quase ausente, mas sempre presente como referência obsessiva)
Jean Marais, um actor francês que interpretou filmes mágicos de Jean Cocteau,
como “A Bela e o Monstro”. Ele aqui também não é uma personagem normal, mas um
arquétipo sonhado, alguém por quem se espera, um Ulisses que tem a sua Penélope
numa ponte de uma qualquer cidade italiana.
Mas os protagonistas reais são
outros: Mario (Marcello Mastroianni), um pequeno empregado solitário que chegou
a uma cidade desconhecida, e Natalia (Maria Schell), uma rapariga que vive com
a avó quase cega, que a prende a si através de um alfinete ligado à sua saia.
Ela também é introvertida, tímida e solitária. Mas um dia, um estranho (Jean
Marais) aluga um quarto na sua casa e ambos se juram amor eterno. O
desconhecido parte, porém promete regressar e reencontrar o seu amor, ao bater
das dez horas, na ponte onde se conheceram. A ponte passa a ser a partir daí um
lugar de peregrinação diária de Maria, que aí encontra um dia Mario. As
relações entre ambos começam pela desconfiança da jovem, mas progressivamente
ambos criam amizade e cumplicidades. Mario ama visivelmente Maria, mas esta não
esquece a promessa de um homem que um dia partiu e jurou voltar para os seus
braços. Maria mantém-se fiel ao prometido, apesar dos avanços de Mario. Numa
noite de neve, mais irreal ainda que todas as outras, a aproximação parece inevitável,
até que as dez horas são passadas… Na novela estamos na primavera, no filme
tudo decorre num inverno chuvoso e inesperadamente nevado. Na novela e no
filme, são quatro as noites que medeiam entre o encontro e o desenlace. Por
isso na adaptação de Robert Bresson, de 1971, o filme se chama “Quatre Nuits
d'un Rêveur”. Curiosamente, outra obra de referência obrigatória, bem assim
como um dos mais recentes filmes de James Gray, “Amor Duplo” (Two Lovers), de
2008, também ele partindo de Dostoiévski, ainda que de forma mais livre.
O filme anterior de Visconti
havia sido “Senso”, uma obra que lhe trouxera alguns dissabores junto dos
produtores. Ultrapassara em muito o orçamento inicial, tivera problemas com a censura,
não tivera a recepção esperada por parte tanto da crítica como do público.
Dividira opiniões em Veneza, não agradara totalmente aos ortodoxos do marxismo.
Durante três anos, o cineasta passara a encenador de óperas e de teatro, até se
abalançar num projecto cinematográfico de reduzido orçamento (400 milhões de
liras), poucos actores, e um cenário único, ainda que reconstruido em cenário,
no lendário estúdio 5 da Cinecittá, com ruas, praça, um canal, pontes e tudo o
mais que pudesse dar uma ideia de uma cidade portuária (como já dissemos, um
pouco à semelhança de Livorno). A produção era caseira, Visconti colocara
capitais próprios e estabeleceu uma co-produção com colaboradores, como o
próprio Marcello Mastroianni, o argumentista Suso Cecchio d’Amico e o produtor
Franco Cristaldi.
Curiosamente, “Noites Brancas”
marca uma aproximação do cinema de Visconti do teatro, tal como “Senso” havia
estabelecido uma relação muito próxima com a ópera (e também o teatro, por
arrasto). O realizador, ao definir o tom do filme, dissera que o mesmo “devia
parecer falso, mas que, quando se tivesse a sensação de que era falso, devia
parecer verdadeiro”. Esta contradição, ou duplicidade de tom, é um dos
fascínios deste filme invulgar, quase único na filmografia deste mestre
italiano, e seguramente uma das suas mais belas incursões fora do realismo mais
tradicional.
Esta belíssima história de amor
entre dois seres tímidos, introvertidos e solitários, oscilando entre a
realidade e o sonho, entre o que se deseja e o que se alcança, entre a ternura
e a desilusão, entre a alegria e o desespero, é muito bem servida pela
interpretação de Maria Schell e Mastrioanni, verdadeiros heróis de melodrama,
um género onde Maria Schell era, aliás, exímia, secundados por um magnífico
Jean Marais nessa personagem enigmática e misteriosa, e por Maria Zanoli, uma
prostituta inventada pelo realizador para dar continuidade à sua interpretação
em “Obsessão”. Também a fotografia de Guiseppe Rotunno, num preto e branco
enevoado e brumoso, relembrando clássicos franceses, como “Cais das Brumas” de
Marcel Carné, imprime à obra um clima perfeito para o pretendido.
NOITES BRANCAS
Título original: Le notti bianche
Realização: Luchino Visconti (Itália, França,
1957); Argumento: Suso Cecchi D'Amico, Luchino Visconti, segundo romance de
Fyodor Dostoevsky ("Noites Brancas/Belye noci"); Produção: Franco
Cristaldi; Música: Nino Rota; Fotografia (p/b): Giuseppe Rotunno; Montagem:
Mario Serandrei; Desing de produção: Mario Chiari; Decoração: Enzo Eusepi; Guarda-roupa:
Piero Tosi; Maquilhagem: Alberto De Rossi, Renata Magnanti; Direcção de
produção: Guglielmo Colonna, Pietro Notarianni; Assistentes de realização:
Nando Cicero, Albino Cocco; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Oscar Di
Santo, Vittorio Trentino; Companhias de produção: Cinematografica Associati,
Rank Film, Vides Cinematografica; Intérpretes:
Maria Schell (Natalia), Marcello Mastroianni (Mario), Jean Marais (inquilino),
Marcella Rovena (dona da pensão), Maria Zanoli (empregada), Elena Fancera,
Pietro Ceccarelli, Angelo Galassi, Renato Terra, Corrado Pani, Dirk Sanders,
Clara Calamai, Giorgio Albertazzi, Lys Assia, Romano Barbieri, Alberto Carloni,
Dino D'Aquilio, Enzo Doria, Anna Filippini, Carla Foscari, Ferdinando Gerra,
Giorgio Listuzzi, Leonilde Montesi, Sandro Moretti, Mimmo Palmara, Winni Riva,
Sandra Verani, etc. Duração: 97
minutos; Distribuição em Portugal (DVD): CristaldFilm / Alambique;
Classificação etária: M/12 anos; Data de estreia em Portugal: 13 de Maio de
1959.
Gostei muito. Vai de encontro com o que eu pensei do filme. Como havia lido o conto antes, apenas achei os protagonistas belos demais- eu os imaginei seres mais comuns- os dois estão belíssimos! Mas, é um filme lindo demais- um dos mais belos que vi! E tb sentia ao ver como se assistisse uma peça teatral com a magia do onírico sempre presente. Obrigada pela sua resenha.
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