quarta-feira, 8 de abril de 2015

MORTE EM VENEZA


MORTE EM VENEZA (1971)

O cinema de Visconti refina-se. Entre Thomas Mann e Marcel Proust, dois dos autores que mais o influenciariam da fase derradeira da sua vida, o cineasta inicia a sua fase de testamentos artísticos, quando a doença o começa a diminuir fisicamente. O seu olhar não se limita a registar mecanicamente o que vê. As imagens filtram uma nostalgia de quem procura o equilíbrio de um tempo perdido, mas reflectem também a lucidez de quem sabe que a história é irreversível e que o futuro nada pode esperar dessas épocas passadas, a não ser a lição da prática política que elas encerram.
"Morte em Veneza", prémio do 25º aniversário no festival de Cannes de 1971, baseia-se numa novela homónima do alemão Thomas Mann. Para lá de outras alterações dignas de nota, há a salientar o seguinte: na novela, Gustav Von Aschenbach, o protagonista, era escritor, e Mann anuncia-o como "o autor da lúcida e vigorosa épica em prosa sobre a vida de Frederico, o Grande"; no filme, Gustav Von Aschenbach é compositor e aparece ligado às 3ª e 5ª Sinfonias de Gustav Mahler, que servem de pano de fundo ao desenrolar da obra. Há aqui uma nítida intenção de Visconti de colar a personagem de Gustav Von Aschenbach a Gustav Mahler, que aliás servira de inspiração óbvia a Thomas Mann.
A base "anedótica" de "Morte em Veneza" é reduzida e enuncia-se rapidamente: Gustav von Achenbach, doente, deixa os países da Europa Central (Alemanha? Áustria?) para passar um período de repouso no Lido de Veneza. Aí irá encontrar Tadzio, um adolescente polaco, por quem mais tarde se confessa apaixonado. Será Tadzio quem obrigará Aschenbach a permanecer em Veneza, mesmo depois de saber que a cólera domina a cidade, corroendo-lhe as pedras e arruinando a população. E será ainda por amor de Tadzio que Aschenbach se deixará morrer recostado numa cadeira de lona, numa praia deserta, em Veneza...


A intriga de "Morte em Veneza é, pois, quase inexistente. O próprio amor de Aschenbach por Tadzio não ultrapassa o soliloquio. E, no entanto, Visconti agarra o espectador durante horas.
Obra de profunda penetração psicológica, "Morte em Veneza" assenta toda a sua estrutura no olhar. No olhar de Aschenbach percorrendo os salões elegantes de Veneza ou as suas praias; nos olhares de Aschenbach procurando Tadzio, aceitando a sedução ou provocando-a. É ainda o olhar que nos revela a doença e a morte invadindo Veneza: a morte de um vagabundo na estação de caminhos-de-ferro, as proclamações coladas nas paredes das ruas da cidade, que os funcionários da câmara percorrem, desinfectando-as com baldes de cal...
E a morte comanda o jogo. É a morte que atravessa uma época, despojando-a. Aschenbach é um símbolo que sobressai de uma sociedade que pertence a um mundo em lenta decomposição, que se agarra desesperadamente às últimas imagens de uma furtiva beleza. Amor e morte são os limites que definem a existência de Von Aschenbach. Dois ou três "flash-backs" mostram-nos o compositor discutindo (ou melhor, furtando-se à discussão): será o artista obrigado a permanecer, puro e casto, ou deverá deixar-se possuir pelo que de "diabólico" e perverso o habita?
Von Aschenbach, que sempre lutara por uma arte inconspurcada, irá descobrir em Veneza a beleza ideal no rosto etéreo de um adolescente. Mas, em Tadzio, irá Aschenbach encontrar não só um corpo para amar (que nunca possuirá), mas sobretudo um rosto que lhe recordará a adolescência que nunca teve. Tadzio é a vida perdida, o amor recusado, a alegria não cumprida. Aschenbach, perto da morte, irá amar sobretudo essa imagem de um passado perdido. Há muito do próprio Visconti nesta obra crepuscular, onde o cineasta se pode sentir retratado na figura de Tadzio, enquanto jovem, com uma mãe distante, passando férias de luxo em praias de elite, e também enquanto Gustav Von Aschenbach, como criador, abeirando-se da morte e olhando nostálgico a beleza que se distancia e o continua a seduzir.


A reconstituição de Veneza 1911 é obra de um autor incomparável. A densidade que se desprende de cada imagem restitui-nos uma Veneza de clima insuperável. Visconti limitou-se a percorrer-lhe as veias com as câmaras. Os salões do hotel, as ruas da cidade, as salas da estação de caminhos-de-ferro, as praças com as gôndolas acostadas, os cantores satíricos que, de mesa em mesa, transmitem a doença, a praia nostálgica, tudo se descobre com uma existência física inultrapassável. No mais ínfimo pormenor se reconhece a mão de um mestre que não aceita uma falha, um improviso.
Aqui se descobre a maturidade de um autor. Assim se confirma o talento plástico de Visconti.
Senhor de uma noção perfeita do tempo de cada plano ("Morte em Veneza" sustenta a duração de alguns planos num registo normalmente "insustentável"), Visconti encontrou em Dirk Bogarde o actor admirável, e em Silvana Mangano a silhueta diáfana que o papel requeria.



MORTE EM VENEZA
Título original: Morte a Venezia

Realização: Luchino Visconti (Itália, França, 1971); Argumento: Luchino Visconti, Nicola Badalucco, segundo romance de Thomas Mann; Produção: Robert Gordon Edwards, Mario Gallo, Luchino Visconti; Música: Gustav Mahler             ; Fotografia (cor): Pasqualino De Santis; Montagem: Ruggero Mastroianni; Direcção artística: Ferdinando Scarfiotti; Guarda-roupa: Piero Tosi; Maquilhagem:  Maria Teresa Corridoni, Gilda De Guilmi, Mario Di Salvio, Mauro Gavazzi, Goffredo Rocchetti, Luciano Vito; Direcção de  produção: Anna Davini, Egidio Quarantotto; Assistentes de realização: Albino Cocco, Paolo Pietrangeli;  Departamento de arte: Nedo Azzini; Som: Giuseppe Muratori, Vittorio Trentino; Companhias de produção: Alfa Cinematografica; Intérpretes: Dirk Bogarde (Gustav von Aschenbach), Romolo Valli (director de hotel), Mark Burns (Alfred), Nora Ricci (governanta), Marisa Berenson (Frau von Aschenbach), Carole André (Esmeralda), Björn Andrésen (Tadzio), Silvana Mangano (Tadzio), Leslie French, Franco Fabrizi, Antonio Appicella, Sergio Garfagnoli, Ciro Cristofoletti, Luigi Battaglia, Dominique Darel, Masha Predit, Eva Axén, Marcello Bonini Olas, Bruno Boschetti, Nicoletta Elmi, Mirella Pamphili, Marco Tulli, etc. Duração: 130 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Warner Brothers; Classificação etária: M/12 anos; Data de estreia em Portugal: 14 de Setembro de 1971. 

Sem comentários:

Enviar um comentário