quarta-feira, 8 de abril de 2015

OBSESSÃO



OBSESSÃO (1943) 

Primeira longa-metragem de Luchino Visconti, “Ossessione” merece um enquadramento especial.
Descendente de uma das mais antigas e poderosas casas aristocráticas de Itália, que reunia os Visconti e os Erba, conde de Modrone, Visconti teve uma infância com estudos, viagens, cultura, muita música e arte, uma passagem pelo exército, até ingressar na Companhia de Teatro d’Arte de Milão, financiada pelo pai. Uma viagem a Paris, leva-o a frequentar os meios culturais, onde encontra Gide, Cocteau, Diaghilev e Serge Lifar, Kurt Weill ou Coco Chanel. Alguns filmes marcam-no para sempre. Uma relação amorosa com uma princesa austríaca, Irma Windisch-Gratz, parece ter fracassado em função das suas cada vez mais vincadas orientações homossexuais. Tenta o cinema, começa a esboçar argumentos, aproxima-se de Jean Renoir, de quem se torna assistente, e cuja influência terá sido decisiva, não só para a sua posterior carreira de cineasta, como para a sua posição politica, a partir daí. Aproxima-se dos círculos comunistas, volta a Itália e ao teatro, encena várias peças, algumas polémicas, passa pelos EUA e por Hollywood, e de novo em Roma te como companheiros e amigos Giuseppe De Santis, Umberto Barbaro, os irmãos Gianni, dario e Massino Puccini, Maruio Alicata, etc. Em finais da década de 30, o governo de Mussolini dá grande incremento à industria cinematográfica. Cria o Centro Sperimentale di Cinematografia (1935), os estúdios da Cinecittà (1937), os “Cine Guf”, cineclubes dependentes do GUF (Grupos Universitários Fascistas), e aparecem revistas como “Bianco e Nero” e “Cinema”, que chegou a ser dirigida pelo filho de Mussolini, Vittorio. Mas, apesar de toda esta actividade de criação de uma indústria para alimentar a propaganda fascista, a verdade é que quase todos estes órgãos ficaram na mão de opositores do regime, sobretudo de orientação comunista. Homens como Luigi Chiarini, Carlo Lizzani, Luigi Comencini, Mario Monicelli, Renato Castellani, Guido Aristarco, entre alguns mais, tomaram de assalto, por dentro, as instituições e formaram uma vasta gama de artistas e técnicos que lançaram as bases do neo-realismo, contrariando a tendência da produção mussoliniana, as grandes obras de propaganda imperial e as “comédias de telefones brancos”. Procurava-se ir ao encontro da realidade do dia-a-dia, nada brilhante, e assim surgem as primeiras tentativas de um cinema comprometido com o desespero do povo, sobretudo a partir da altura em que a Itália entra na II Guerra Mundial ao lado de Hitler.


Visconti tenta vários argumentos, muitos deles adaptados de obras literárias, mas a censura vai impedindo a rodagem até que finalmente tem luz verde para rodar “Ossessione” (nessa altura chamado “Palude”, qualquer coisa como “Pântano”), um argumento que parte de um romance de James M. Cain ("The Postman Always Rings Twice") que, todavia, não é mencionado no genérico para não levantar suspeitas na censura. A escrita da obra ocupou Luchino Visconti, Mario Alicata, Giuseppe De Santis, Gianni Puccini, além de Alberto Moravia, Antonio Pietrangeli, estes dois últimos como conselheiros que não aparecem no genérico, durante os finais de 1941 e o início de 1942. A Itália estava no auge do fascismo e a guerra entrava no país. O filme estreou, mas provocou a ira das autoridades. Vittorio Mussolini, depois de o ver, indignou-se: “Isto não é Itália!”. O filme foi retirado de exibição, as cópias destruídas e queimado o negativo. O que hoje resta de “Obsessão” parte da recuperação de uma cópia salva e reencontrada em 1958. Nem sempre a qualidade fotográfica é a melhor, mas, mesmo assim, apresenta-se em óptimas condições.
"The Postman Always Rings Twice", de James M. Cain, mereceu várias adaptações. A primeira, anterior a Visconti, foi “Le Dernier Tournant » (1939), de Pierre Chenal, adaptada por Charles Spaak e Henri Torrès, com Fernand Gravey (Frank), Michel Simon (Nick Marino), e Corinne Luchaire (Cora Marino). Nos anos 40, Tay Garnett dá-nos um "O Destino Bate à Porta” (The Postman Always Rings Twice, 1946), com Lana Turner (Cora Smith), John Garfield (Frank Chambers), e Cecil Kellaway (Nick Smith). O argumento era da responsabilidade de Harry Ruskin e Niven Busch. “O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes” (1981) é a versão mais recente, assinada por Bob Rafelson, com argumento de David Mamet, e interpretação de Jack Nicholson (Frank Chambers), Jessica Lange (Cora Papadakis) e John Colicos (Nick Papadakis).


Existem ainda uma versão húngara de György Fehér, “Szenvedély” (1998), interpretadas por Ildikó Bánsági, Djoko Rosic, János Derzsi, respectivamente “a mulher”, “o marido” e “o homem”. Este célebre romance de James M. Cain parece estar destinado a versões apócrifas, pois, entre muitas outras obras que colheram influência, ainda se pode falar de “Jerichow” (2008), do alemão Christian Petzold, que a escreveu igualmente, tendo como actores Benno Fürmann (Thomas), Nina Hoss (Laura), e Hilmi Sözer (Ali Özkan). A história muda de cenário, mas é a mesma.
Mudança de cenário também a efectuou Luchino Visconti, em 1943. Mas curiosamente conseguiu manter a tonalidade do filme negro americano, agora colando-a á realidade social italiana desse início da década de 40. A Itália estava em guerra, mas dela não há vestígio no filme. Há sim uma cinzenta e dilacerante imagem de um país podre se sem aparente saída. Esse o drama desta obra que reúne um trio de personagens numa estação de serviço numa poeirenta estrada transalpina, ali para os lados de Ferrara e Ancona, nas margens do rio Pó.
O romance de James M. Cain passa-se durante a época da Grande Depressão na América, o que estabelece curiosos paralelismos com a situação italiana desta época. Em períodos de carência económica grave agudizam-se os conflitos emocionais e é o que acontece nesta versão de Visconti que consegue criar um sufocante clima suburbano onde se instala um irrespirável conflito de sentimentos, de uma sensualidade obsessiva e de uma opressiva ganância.
Gino Costa é um vagabundo que viaja pelas estradas á boleia e que encalha num bar de estrada que serve uma bomba de gasolina. A estação de serviço é pertença de Guiseppe Bragana, um velho gordo e repressivo, casado com Giovanna, bastante mais nova que ele, exalando frustrações sexuais e lúbricos apetites. Gino e Giovanna olham-se e apetecem-se. Gino quer levar dali a mulher, mas esta está agarrada à situação económica que a sustenta. Não partirão, sem antes se abater a tragédia sobre o trio amoroso. Gino sente o peso da consciência, Giovanna a necessidade de assegurar fins de sobrevivência. Giovanna é a imagem da “femme fatal” que enfeitiça um macho e o leva à perdição. Mas nem tudo nela é calculismo, existe um verdadeiro amor, a necessidade de afecto, a volúpia do desejo satisfeito. Tudo isso é muito bem dado pela câmara de Visconti, que se mostra verdadeiramente maduro na arte de narrar por imagens, criando uma curiosa aproximação muito “aristocrata” do mundo rural. A sua sensibilidade apurada mostra-se em cada enquadramento, mas simultaneamente nuca atraiçoa a realidade social e humana das suas personagens e dos seus dramas.

Pode dizer-se que o neo-realismo tem aqui o seu primeiro grande filme, mas deve sublinhar-se igualmente que o olhar de Visconti não tem peso que o de De Sica ou Fellini. São olhares totalmente diversos. Visconti antecipa já o grande melodrama que será uma constante da sua filmografia, ainda que sempre ligado a uma perspectiva marxista, sobretudo sendo um olhar de um representante de uma classe que se sabe decadente e moribunda (antecipando “Sentimento”, “O Leopardo” e tudo o mais).
O início do filme é desde logo fulgurante: a chegada de Gino à estação de gasolina, depois de descer de um camião onde viajava adormecido, mostra-o maltrapilho, de andar arrastado, um vagabundo sem fito, visto de costas, um homem sem rosto. O seu rosto só aparecerá quando se cruza com Giovanna e se ilumina. Toda a intencionalidade da “mise-en-scéne” de Visconti se revela, a cada nova sequência, mantendo o clima, criando cumplicidades, oferecendo pistas ao espectador para lá daquelas que as palavras vão dando. Deve dizer-se que para conseguir este esplendido resultado, muito contribui a fotografia, a preto e branco, de Domenico Scala e Aldo Tonti, e ainda o trabalho de Gianni Di Venanzo, ainda como operador de câmara, ele que se irá revelar um dos melhores directores de fotografia europeus alguns anos depois. Os cenários são cuidados e rigorosos, e as personagens muito bem defendidos por um bom elenco, com destaque para Massimo Girotti (Gino Costa), Clara Calamai (Giovanna Bragana), Juan de Landa (Giuseppe Bragana), Dhia Cristiani (Anita), Elio Marcuzzo (o espanhol, personagem criada por Visconti e que não existe no romance), Vittorio Duse (agente da polícia), entre outros. Refira-se que o aparecimento da ambígua personagem do “espanhol” irá desencadear duas aproximações muito interessantes. Por um lado, o “espanhol” é a figura “positiva” segundo os cânones da estética marxista, o homem solidário e justo; por outro lado, a sua presença justifica uma tal ambiguidade que pode falar-se de uma homossexualidade latente. Dois temas que acompanharão a obra do cineasta.


OBSESSÃO
Título original: Ossessione

Realização: Luchino Visconti (Itália, 1943); Argumento: Luchino Visconti, Mario Alicata, Giuseppe De Santis, Gianni Puccini, Alberto Moravia, Antonio Pietrangeli, James M. Cain, segundo seu romance ("The Postman Always Rings Twice") (os três últimos não creditados); Produção: Libero Solaroli; Música: Giuseppe Rosati; Fotografia (p/b): Domenico Scala, Aldo Tonti, e ainda Gianni Di Venanzo (operador, não creditado); Montagem: Mario Serandrei; Direcção artística: Gino Franzi; Decoração: Gino Franzi; Guarda-roupa: Maria De Matteis; Assistentes de realização: Giuseppe De Santis, Antonio Pietrangeli; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Tommaso Barberini, Arrigo Usigli; Companhia de produção: Industrie Cinematografiche Italiane (ICI); Intérpretes: Clara Calamai (Giovanna Bragana), Massimo Girotti (Gino Costa), Juan de Landa (Giuseppe Bragana), Dhia Cristiani (Anita), Elio Marcuzzo (Lo spagnolo), Vittorio Duse (agente da polícia), Michele Riccardini (Don Remigio), Michele Sakara (criança), etc. Duração: 140 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Classificação etária: M/ 12 anos. 

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