OBSESSÃO (1943)
Primeira
longa-metragem de Luchino Visconti, “Ossessione” merece um enquadramento
especial.
Descendente de
uma das mais antigas e poderosas casas aristocráticas de Itália, que reunia os
Visconti e os Erba, conde de Modrone, Visconti teve uma infância com estudos,
viagens, cultura, muita música e arte, uma passagem pelo exército, até
ingressar na Companhia de Teatro d’Arte de Milão, financiada pelo pai. Uma
viagem a Paris, leva-o a frequentar os meios culturais, onde encontra Gide, Cocteau,
Diaghilev e Serge Lifar, Kurt Weill ou Coco Chanel. Alguns filmes marcam-no
para sempre. Uma relação amorosa com uma princesa austríaca, Irma
Windisch-Gratz, parece ter fracassado em função das suas cada vez mais vincadas
orientações homossexuais. Tenta o cinema, começa a esboçar argumentos,
aproxima-se de Jean Renoir, de quem se torna assistente, e cuja influência terá
sido decisiva, não só para a sua posterior carreira de cineasta, como para a
sua posição politica, a partir daí. Aproxima-se dos círculos comunistas, volta
a Itália e ao teatro, encena várias peças, algumas polémicas, passa pelos EUA e
por Hollywood, e de novo em Roma te como companheiros e amigos Giuseppe De
Santis, Umberto Barbaro, os irmãos Gianni, dario e Massino Puccini, Maruio Alicata,
etc. Em finais da década de 30, o governo de Mussolini dá grande incremento à
industria cinematográfica. Cria o Centro Sperimentale di Cinematografia (1935),
os estúdios da Cinecittà (1937), os “Cine Guf”, cineclubes dependentes do GUF
(Grupos Universitários Fascistas), e aparecem revistas como “Bianco e Nero” e
“Cinema”, que chegou a ser dirigida pelo filho de Mussolini, Vittorio. Mas,
apesar de toda esta actividade de criação de uma indústria para alimentar a
propaganda fascista, a verdade é que quase todos estes órgãos ficaram na mão de
opositores do regime, sobretudo de orientação comunista. Homens como Luigi
Chiarini, Carlo Lizzani, Luigi Comencini, Mario Monicelli, Renato Castellani,
Guido Aristarco, entre alguns mais, tomaram de assalto, por dentro, as
instituições e formaram uma vasta gama de artistas e técnicos que lançaram as
bases do neo-realismo, contrariando a tendência da produção mussoliniana, as
grandes obras de propaganda imperial e as “comédias de telefones brancos”.
Procurava-se ir ao encontro da realidade do dia-a-dia, nada brilhante, e assim
surgem as primeiras tentativas de um cinema comprometido com o desespero do
povo, sobretudo a partir da altura em que a Itália entra na II Guerra Mundial
ao lado de Hitler.
Visconti tenta
vários argumentos, muitos deles adaptados de obras literárias, mas a censura
vai impedindo a rodagem até que finalmente tem luz verde para rodar
“Ossessione” (nessa altura chamado “Palude”, qualquer coisa como “Pântano”), um
argumento que parte de um romance de James M. Cain ("The Postman Always
Rings Twice") que, todavia, não é mencionado no genérico para não levantar
suspeitas na censura. A escrita da obra ocupou Luchino Visconti, Mario Alicata,
Giuseppe De Santis, Gianni Puccini, além de Alberto Moravia, Antonio
Pietrangeli, estes dois últimos como conselheiros que não aparecem no genérico,
durante os finais de 1941 e o início de 1942. A Itália estava no auge do
fascismo e a guerra entrava no país. O filme estreou, mas provocou a ira das
autoridades. Vittorio Mussolini, depois de o ver, indignou-se: “Isto não é
Itália!”. O filme foi retirado de exibição, as cópias destruídas e queimado o
negativo. O que hoje resta de “Obsessão” parte da recuperação de uma cópia
salva e reencontrada em 1958. Nem sempre a qualidade fotográfica é a melhor,
mas, mesmo assim, apresenta-se em óptimas condições.
"The Postman Always Rings Twice", de James M.
Cain, mereceu várias adaptações. A primeira, anterior a Visconti, foi “Le
Dernier Tournant » (1939), de Pierre Chenal, adaptada por Charles Spaak e
Henri Torrès, com Fernand Gravey (Frank), Michel Simon (Nick Marino), e Corinne
Luchaire (Cora Marino). Nos anos 40, Tay Garnett dá-nos um "O Destino Bate
à Porta” (The Postman Always Rings Twice, 1946), com Lana Turner (Cora Smith),
John Garfield (Frank Chambers), e Cecil Kellaway (Nick Smith). O argumento era
da responsabilidade de Harry Ruskin e Niven Busch. “O Carteiro Toca Sempre Duas
Vezes” (1981) é a versão mais recente, assinada por Bob Rafelson, com argumento
de David Mamet, e interpretação de Jack Nicholson (Frank Chambers), Jessica
Lange (Cora Papadakis) e John Colicos (Nick Papadakis).
Existem ainda uma
versão húngara de György Fehér, “Szenvedély” (1998), interpretadas por Ildikó
Bánsági, Djoko Rosic, János Derzsi, respectivamente “a mulher”, “o marido” e “o
homem”. Este célebre romance de James M. Cain parece estar destinado a versões
apócrifas, pois, entre muitas outras obras que colheram influência, ainda se
pode falar de “Jerichow” (2008), do alemão Christian Petzold, que a escreveu
igualmente, tendo como actores Benno Fürmann (Thomas), Nina Hoss (Laura), e
Hilmi Sözer (Ali Özkan). A história muda de cenário, mas é a mesma.
Mudança de
cenário também a efectuou Luchino Visconti, em 1943. Mas curiosamente conseguiu
manter a tonalidade do filme negro americano, agora colando-a á realidade
social italiana desse início da década de 40. A Itália estava em guerra, mas
dela não há vestígio no filme. Há sim uma cinzenta e dilacerante imagem de um
país podre se sem aparente saída. Esse o drama desta obra que reúne um trio de
personagens numa estação de serviço numa poeirenta estrada transalpina, ali
para os lados de Ferrara e Ancona, nas margens do rio Pó.
O romance de
James M. Cain passa-se durante a época da Grande Depressão na América, o que
estabelece curiosos paralelismos com a situação italiana desta época. Em
períodos de carência económica grave agudizam-se os conflitos emocionais e é o
que acontece nesta versão de Visconti que consegue criar um sufocante clima
suburbano onde se instala um irrespirável conflito de sentimentos, de uma
sensualidade obsessiva e de uma opressiva ganância.
Gino Costa é um
vagabundo que viaja pelas estradas á boleia e que encalha num bar de estrada
que serve uma bomba de gasolina. A estação de serviço é pertença de Guiseppe
Bragana, um velho gordo e repressivo, casado com Giovanna, bastante mais nova
que ele, exalando frustrações sexuais e lúbricos apetites. Gino e Giovanna
olham-se e apetecem-se. Gino quer levar dali a mulher, mas esta está agarrada à
situação económica que a sustenta. Não partirão, sem antes se abater a tragédia
sobre o trio amoroso. Gino sente o peso da consciência, Giovanna a necessidade
de assegurar fins de sobrevivência. Giovanna é a imagem da “femme fatal” que
enfeitiça um macho e o leva à perdição. Mas nem tudo nela é calculismo, existe
um verdadeiro amor, a necessidade de afecto, a volúpia do desejo satisfeito.
Tudo isso é muito bem dado pela câmara de Visconti, que se mostra
verdadeiramente maduro na arte de narrar por imagens, criando uma curiosa
aproximação muito “aristocrata” do mundo rural. A sua sensibilidade apurada
mostra-se em cada enquadramento, mas simultaneamente nuca atraiçoa a realidade
social e humana das suas personagens e dos seus dramas.
Pode dizer-se que
o neo-realismo tem aqui o seu primeiro grande filme, mas deve sublinhar-se
igualmente que o olhar de Visconti não tem peso que o de De Sica ou Fellini.
São olhares totalmente diversos. Visconti antecipa já o grande melodrama que
será uma constante da sua filmografia, ainda que sempre ligado a uma
perspectiva marxista, sobretudo sendo um olhar de um representante de uma
classe que se sabe decadente e moribunda (antecipando “Sentimento”, “O
Leopardo” e tudo o mais).
O início do filme
é desde logo fulgurante: a chegada de Gino à estação de gasolina, depois de
descer de um camião onde viajava adormecido, mostra-o maltrapilho, de andar
arrastado, um vagabundo sem fito, visto de costas, um homem sem rosto. O seu
rosto só aparecerá quando se cruza com Giovanna e se ilumina. Toda a
intencionalidade da “mise-en-scéne” de Visconti se revela, a cada nova
sequência, mantendo o clima, criando cumplicidades, oferecendo pistas ao
espectador para lá daquelas que as palavras vão dando. Deve dizer-se que para
conseguir este esplendido resultado, muito contribui a fotografia, a preto e
branco, de Domenico Scala e Aldo Tonti, e ainda o trabalho de Gianni Di Venanzo,
ainda como operador de câmara, ele que se irá revelar um dos melhores
directores de fotografia europeus alguns anos depois. Os cenários são cuidados
e rigorosos, e as personagens muito bem defendidos por um bom elenco, com
destaque para Massimo Girotti (Gino Costa), Clara Calamai (Giovanna Bragana),
Juan de Landa (Giuseppe Bragana), Dhia Cristiani (Anita), Elio Marcuzzo (o espanhol,
personagem criada por Visconti e que não existe no romance), Vittorio Duse
(agente da polícia), entre outros. Refira-se que o aparecimento da ambígua
personagem do “espanhol” irá desencadear duas aproximações muito interessantes.
Por um lado, o “espanhol” é a figura “positiva” segundo os cânones da estética
marxista, o homem solidário e justo; por outro lado, a sua presença justifica
uma tal ambiguidade que pode falar-se de uma homossexualidade latente. Dois
temas que acompanharão a obra do cineasta.
OBSESSÃO
Título original: Ossessione
Realização: Luchino Visconti
(Itália, 1943); Argumento: Luchino Visconti, Mario Alicata, Giuseppe De Santis, Gianni
Puccini, Alberto Moravia, Antonio Pietrangeli, James M. Cain, segundo seu
romance ("The Postman Always Rings Twice") (os três últimos não
creditados); Produção: Libero Solaroli; Música: Giuseppe Rosati; Fotografia
(p/b): Domenico Scala, Aldo Tonti, e ainda Gianni Di Venanzo (operador, não
creditado); Montagem: Mario Serandrei; Direcção artística: Gino Franzi;
Decoração: Gino Franzi; Guarda-roupa: Maria De Matteis; Assistentes de
realização: Giuseppe De Santis, Antonio Pietrangeli; Departamento de arte:
Italo Tomassi; Som: Tommaso Barberini, Arrigo Usigli; Companhia de produção:
Industrie Cinematografiche Italiane (ICI); Intérpretes:
Clara Calamai (Giovanna Bragana), Massimo Girotti (Gino Costa), Juan de Landa
(Giuseppe Bragana), Dhia Cristiani (Anita), Elio Marcuzzo (Lo spagnolo), Vittorio
Duse (agente da polícia), Michele Riccardini (Don Remigio), Michele Sakara
(criança), etc. Duração: 140
minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Classificação
etária: M/ 12 anos.
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