quarta-feira, 8 de abril de 2015

O LEOPARDO


O LEOPARDO (1963)


Giuseppe Tomasi di Lampedusa não será um escritor muito conhecido para lá de uma obra única que o notabilizou: o romance “Il Gattopardo” (O Leopardo), que se debruça sobre a decadência da aristocracia siciliana durante a época do “Risorgimento”.
Nascido em Palermo, a 23 de Dezembro de 1896, Giuseppe Tomasi di Lampedusa era filho único (depois de uma irmã ter morrido, vítima de difteria) de Giulio Maria Tomasi, Príncipe de Lampedusa, e Beatrice Mastrogiovanni Tasca de Cutò. Se o pai era frio e distante, a mãe, pessoa de personalidade forte, teve enorme influência na sua formação e futuro. Tomasi di Lampedusa estudou na sua mansão em Palermo, com um tutor (que lhe ensinou literatura e inglês), com a mãe (que conversava com ele em francês) e com a avó, que lhe costumava ler romances de Emilio Salgari. Num pequeno teatro da residência, em Santa Margherita Belice, onde a família passava férias, assistiu pela primeira vez a peças como “Hamlet”, encenada por uma companhia itinerante.
No início de 1911, cursou o liceu clássico em Roma e, posteriormente, em Palermo, mudando-se definitivamente para Roma em 1915, onde se matriculou na faculdade de Direito. Nesse mesmo ano, foi recrutado, lutando na batalha de Caporetto, tendo sido capturado pelos austríacos. Prisioneiro de guerra na Hungria, estabeleceu um plano de fuga, regressando a Itália a pé. Promovido a tenente, retornou à Sicília, alternando períodos na ilha com viagens até casa de sua mãe, retomando os estudos de literatura estrangeira.
Em Riga, Letónia, casou-se em 1932 com Alexandra Wolff Stomersee, por alcunha "Licy", uma estudante de psicanálise, de uma família nobre de origem alemã. Em 1934, o pai faleceu e Giuseppe Tomasi di Lampedusa herdou o título de príncipe. Voltou a ser convocado para o Exército em 1940, mas, como era o único responsável por uma grande propriedade agrícola familiar, voltou rapidamente a casa e aos negócios. Tomasi di Lampedusa, a sua mulher Licy e a mãe refugiaram-se em Capo d'Orlando. Todos sobreviveram à guerra, mas o palácio em Palermo não, onde o casal regressou em 1946, após a morte da mãe.
Em 1953, integrou-se num grupo de jovens intelectuais, um dos quais era Gioacchino Lanza, com quem estabeleceu uma grande amizade, chegando a adoptá-lo como filho no ano seguinte.


Tomasi de Lampedusa era visita regular de um primo poeta, Lucio Piccolo, com quem viajou em 1954 até às termas de San Pellegrino, para participar numa cerimónia de entrega de prémios literários, onde encontrou, entre outros, Eugenio Montale e Maria Bellonci. Diz a lenda que foi no regresso dessa viagem que escreveu “Il Gattopardo”, concluindo-o em 1956. O romance nunca seria publicado em vida do escritor, sendo rejeitado por vários editores, o que desapontou muito Tomasi.
Em 1957, foi-lhe diagnosticado cancro em fase avançada, vindo a falecer, em 23 de Julho, em Roma. Foi sepultado no cemitério Capuccino, em Palermo. “Il Gattopardo” só seria publicado dois anos depois da sua morte, quando Elena Croce o enviou a Giorgio Bassani, da editora Feltrinelli.
Tomasi também escreveu trabalhos menos conhecidos: "I Racconti" (publicado em 1961); "Le Lezioni su Stendhal" (1959, publicado em forma de livro em 1977); e "Invito alle Lettere Francesi del Cinquecento" (publicado em 1970). Escreveu ainda "Alegria e a Lei", um trabalho literário comum. É também autor de um pequeno número de ensaios.
Mas seria efectivamente "Il Gattopardo" a criar-lhe um lugar nas letras mundiais, sobretudo através de uma consideração do príncipe de Salina que muita gente cita, se calhar sem saber a origem. Diz ele, referindo-se às transformações sociais que a unificação de Itália impunha, com a queda de influência política e económica da aristocracia e a subida ao poder da burguesia: “É preciso que alguma coisa mude, para que tudo permaneça na mesma.”


"Il Gattopardo" é um vasto mural sobre a vida de uma família nobre cujo brasão contém uma imagem do leopardo que dá o título ao romance, onde sobressai a personagem de Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina. Uma citação da obra: "Nós éramos os leopardos, os leões; esses que nos substituíram são os chacais, as hienas; e todos os leopardos, chacais e ovelhas continuarão a acreditar no sal da terra."
A época situa-se em meados do século XIX, mais precisamente em Maio de 1860, quando Garibaldi inicia o movimento de unificação da Itália. Com os seus apoiantes, invade a Sicília. D. Fabrizio (Burt Lancaster) é um aristocrata latifundiário que tenta manter o antigo modo de vida, apesar dos tempos de mudança que se anunciam. Ele percebe rapidamente que a aristocracia decadente tem os dias contados e que o poder vai transitar para as mãos da burguesia endinheirada que se avizinha, ameaçadora. Inteligente e astuto, D. Fabrizio percebe que tem de agir. “Mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma”. Na mesma, não ficará. Mas o que interessa é que não perca todas as regalias e privilégios de que usufrui. Ele é pai de sete filhos e herdeiro de uma “patente” que durante séculos "não havia sabido fazer nada mais que adicionar das próprias despesas e subtrair das próprias dívidas".
Um dos sobrinhos, Tancredi (Alain Delon) alista-se nas forças invasoras e apoia, por convicção ou calculismo, os nacionalistas que tentam expulsar os austríacos. "O cadáver de um jovem soldado do quinto batalhão de caçadores que tinha sido ferido na luta de San Lorenzo" é descoberto nos jardins da sua casa em Salina, nos arredores de Palermo. No plebiscito para saber o que a população pretende para a Sicília, se a anexação ao continente italiano ou não, D. Fabrizio vota sim, de forma ostensiva. Ele percebe que chegou o momento do tudo ou nada e combina igualmente o casamento de Tancredi com Angélica (Claudia Cardinali), filha de D. Calogero (Paolo Stoppa), um rico e influente administrador de propriedades. É um negócio que irá resultar plenamente para ambos os lados: D. Fabrizio cede o prestígio do nome da família, D. Calogero entra com o capital e assegura a permanência dos privilégios.


O romance e o filme iniciam-se por uma oração que termina de forma lapidar para o significado da obra. Ouve-se o final da “Ave Maria”: "Nunc et in hora mortis nostrae. Amen". D. Fabrizio sabe, através de confidências do padre Pirrone (Romolo Valli), que a sua filha Concetta (Lucilla Morlacchi) está apaixonada por Tancredi. Mas o casamento com Angelica Sedara impõe-se por motivos óbvios. Em Donnafugata, no centro da Sicília, na sua casa senhorial, durante um sumptuoso baile, regulam-se as contas do casamento “agora e na hora da nossa morte”, pensa a aristocracia decadente, num estrebuchar de dignidade e de lucidez.
O filme é absolutamente deslumbrante de um ponto de vista plástico, denotando ele próprio um curioso equilíbrio entre o gosto esteta de Visconti, proveniente de uma das mais ilustres casas aristocráticas de Itália, e a análise marxista, com base na luta de classes e na dialéctica engelseana que enformou todo o pensamento do cineasta. A concepção do próprio filme revela assim esse compromisso entre classes (ou esse sentido do suicídio de uma classe perante os “ventos da História”) de que o romance é testemunho e que Visconti sublinha devidamente. Há aqui uma curiosa derrapagem ideológica entre o romance e o filme: a obra de Lampedusa chegou mesmo a ser acusada de estática e reaccionária, limitando-se a descrever uma situação, sem a interpelar. Visconti dá uma interpretação aos acontecimentos, como já vimos.
A obra, que se estreou amputada de algumas sequências, corte imposto pelos produtores, em virtude da sua longa duração (mas que agora circula na sua versão integral), estrutura-se em diversas sequências que são magnificamente desenvolvidas pelo cineasta. Desde a abertura, com a oração do dia, até ao baile com que fecha, “O Leopardo” passa por momentos de conflito armado que apontam para a superprodução, até outros de um intimismo discreto. Em tudo, Visconti revela uma sensibilidade e apuro formal total, bem como uma direcção de actores brilhante, conseguindo actuações invulgares de Burt Lancaster, Alain Delon ou Claudia Cardinale, para só citar as mais flagrantes. Burt Lancaster tornar-se-ia uma espécie de “alter-ego” do cineasta, a partir desta criação de Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, que, tal como Visconti, se defronta num íntimo conflito de interesses que é extraordinariamente bem desenvolvido, com subtileza e perspicácia.
Amante da pintura, do teatro e da ópera, o realizador nunca deixa de referenciar estas paixões, quer na forma como enquadra as cenas de multidões, nas lutas nas ruas de Palermo, quer nos retratos em interiores, onde a cor e a luz adquirem importância decisiva. Também a tonalidade coral e melodramática das grandes intrigas operáticas se sente a cada momento, transformando "Il Gattopardo" numa obra-prima indiscutível da história do cinema.

O LEOPARDO
Título original: Il Gattopardo

Realização: Luchino Visconti (Itália, França, 1963); Argumento: Suso Cecchi d'Amico, Pasquale Festa Campanile, Enrico Medioli, Massimo Franciosa, Luchino Visconti, segundo romance homónimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa; Produção: Goffredo Lombardo, Pietro Notarianni; Música: Nino Rota e Di Giuseppe Verdi; Fotografia (Technirama, Technicolor): Giuseppe Rotunno; Montagem: Mario Serandrei; Direcção artística: Mario Garbuglia; Decoração: Laudomia Hercolani, Giorgio Pes; Guarda-roupa: Marcel Escoffier e Piero Tosi; Maquilhagem: Maria Angelini, Alberto De Rossi, Amalia Paoletti; Direcção de Produção: Giorgio Adriani, Enzo Provenzale; Assistentes de realização: Albino Cocco, Brad Fuller, Francesco Massaro, Rinaldo Ricci; Som: Mario Messina; Efeitos Especiais: Dino Galiano; Coreografia do baile: Alberto Testa; Compnahias de produção: Titanus (Roma), Société Nouvelle Pathé Cinéma, Société Générale de Cinématographie (S.G.C.) (Paris); Intérpretes: Burt Lancaster (Principe Don Fabrizio Salina), Claudia Cardinale (Angelica Sedara / Bertiana), Alain Delon (Tancredi Falconeri), Paolo Stoppa (Don Calogero Sedara), Rina Morelli (Princesa Maria Stella Salina), Romolo Valli (Padre Pirrone), Terence Hill (conde Cavriaghi), Pierre Clémenti (Francesco Paolo), Lucilla Morlacchi (Concetta), Giuliano Gemma (General de Garibaldi), Ida Galli (Carolina), Ottavia Piccolo (Caterina), Carlo Valenzano (Paolo), Ivo Garrani, Leslie French, Serge Reggiani, Brook Fuller, Anna Maria Bottini, Lola Braccini, Marino Masé, Howard Nelson Rubien, Marie Bell, Lou Castel, Tina Lattanzi, Marcella Rovena, Rina De Liguoro, Valerio Ruggeri, Giovanni Melisenda, Giancarlo Lolli, Vittorio Duse, Vanni Materassi, Giuseppe Stagnitti, Carmelo Artale, Olimpia Cavalli, Anna Maria Surdo, Halina Zalewska, Winni Riva, Stelvio Rosi, Carlo Palmucci, Dante Posani, Rosolino Bua, Sandra Christolini, Franco Gula, Maurizio Merli, Augusto Pescarini, Paola Piscini, Amalia Troiani, etc. Duração: 187 minutos (205 versão integral); Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 7 de Outubro de 1963.

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