O LEOPARDO (1963)
Giuseppe
Tomasi di Lampedusa não será um escritor muito conhecido para lá de uma obra
única que o notabilizou: o romance “Il Gattopardo” (O Leopardo), que se debruça
sobre a decadência da aristocracia siciliana durante a época do “Risorgimento”.
Nascido em
Palermo, a 23 de Dezembro de 1896, Giuseppe Tomasi di Lampedusa era filho único
(depois de uma irmã ter morrido, vítima de difteria) de Giulio Maria Tomasi,
Príncipe de Lampedusa, e Beatrice Mastrogiovanni Tasca de Cutò. Se o pai era
frio e distante, a mãe, pessoa de personalidade forte, teve enorme influência
na sua formação e futuro. Tomasi di Lampedusa estudou na sua mansão em Palermo,
com um tutor (que lhe ensinou literatura e inglês), com a mãe (que conversava
com ele em francês) e com a avó, que lhe costumava ler romances de Emilio
Salgari. Num pequeno teatro da residência, em Santa Margherita Belice, onde a
família passava férias, assistiu pela primeira vez a peças como “Hamlet”,
encenada por uma companhia itinerante.
No início
de 1911, cursou o liceu clássico em Roma e, posteriormente, em Palermo, mudando-se
definitivamente para Roma em 1915, onde se matriculou na faculdade de Direito.
Nesse mesmo ano, foi recrutado, lutando na batalha de Caporetto, tendo sido
capturado pelos austríacos. Prisioneiro de guerra na Hungria, estabeleceu um
plano de fuga, regressando a Itália a pé. Promovido a tenente, retornou à
Sicília, alternando períodos na ilha com viagens até casa de sua mãe, retomando
os estudos de literatura estrangeira.
Em Riga,
Letónia, casou-se em 1932 com Alexandra Wolff Stomersee, por alcunha "Licy",
uma estudante de psicanálise, de uma família nobre de origem alemã. Em 1934, o
pai faleceu e Giuseppe Tomasi di Lampedusa herdou o título de príncipe. Voltou
a ser convocado para o Exército em 1940, mas, como era o único responsável por
uma grande propriedade agrícola familiar, voltou rapidamente a casa e aos
negócios. Tomasi di Lampedusa, a sua mulher Licy e a mãe refugiaram-se em Capo
d'Orlando. Todos sobreviveram à guerra, mas o palácio em Palermo não, onde o
casal regressou em 1946, após a morte da mãe.
Em 1953,
integrou-se num grupo de jovens intelectuais, um dos quais era Gioacchino
Lanza, com quem estabeleceu uma grande amizade, chegando a adoptá-lo como filho
no ano seguinte.
Tomasi de
Lampedusa era visita regular de um primo poeta, Lucio Piccolo, com quem viajou
em 1954 até às termas de San Pellegrino, para participar numa cerimónia de
entrega de prémios literários, onde encontrou, entre outros, Eugenio Montale e
Maria Bellonci. Diz a lenda que foi no regresso dessa viagem que escreveu “Il
Gattopardo”, concluindo-o em 1956. O romance nunca seria publicado em vida do
escritor, sendo rejeitado por vários editores, o que desapontou muito Tomasi.
Em 1957,
foi-lhe diagnosticado cancro em fase avançada, vindo a falecer, em 23 de Julho,
em Roma. Foi sepultado no cemitério Capuccino, em Palermo. “Il Gattopardo” só
seria publicado dois anos depois da sua morte, quando Elena Croce o enviou a
Giorgio Bassani, da editora Feltrinelli.
Tomasi
também escreveu trabalhos menos conhecidos: "I Racconti" (publicado
em 1961); "Le Lezioni su Stendhal" (1959, publicado em forma de livro
em 1977); e "Invito alle Lettere Francesi del Cinquecento" (publicado
em 1970). Escreveu ainda "Alegria e a Lei", um trabalho literário comum.
É também autor de um pequeno número de ensaios.
Mas seria
efectivamente "Il Gattopardo" a criar-lhe um lugar nas letras
mundiais, sobretudo através de uma consideração do príncipe de Salina que muita
gente cita, se calhar sem saber a origem. Diz ele, referindo-se às
transformações sociais que a unificação de Itália impunha, com a queda de
influência política e económica da aristocracia e a subida ao poder da
burguesia: “É preciso que alguma coisa mude, para que tudo permaneça na mesma.”
"Il
Gattopardo" é um vasto mural sobre a vida de uma família nobre cujo brasão
contém uma imagem do leopardo que dá o título ao romance, onde sobressai a
personagem de Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina. Uma citação da obra:
"Nós éramos os leopardos, os leões; esses que nos substituíram são os
chacais, as hienas; e todos os leopardos, chacais e ovelhas continuarão a
acreditar no sal da terra."
A época
situa-se em meados do século XIX, mais precisamente em Maio de 1860, quando
Garibaldi inicia o movimento de unificação da Itália. Com os seus apoiantes,
invade a Sicília. D. Fabrizio (Burt Lancaster) é um aristocrata latifundiário
que tenta manter o antigo modo de vida, apesar dos tempos de mudança que se
anunciam. Ele percebe rapidamente que a aristocracia decadente tem os dias
contados e que o poder vai transitar para as mãos da burguesia endinheirada que
se avizinha, ameaçadora. Inteligente e astuto, D. Fabrizio percebe que tem de
agir. “Mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma”. Na mesma, não ficará.
Mas o que interessa é que não perca todas as regalias e privilégios de que
usufrui. Ele é pai de sete filhos e herdeiro de uma “patente” que durante
séculos "não havia sabido fazer nada mais que adicionar das próprias
despesas e subtrair das próprias dívidas".
Um dos
sobrinhos, Tancredi (Alain Delon) alista-se nas forças invasoras e apoia, por
convicção ou calculismo, os nacionalistas que tentam expulsar os austríacos.
"O cadáver de um jovem soldado do quinto batalhão de caçadores que tinha
sido ferido na luta de San Lorenzo" é descoberto nos jardins da sua casa
em Salina, nos arredores de Palermo. No plebiscito para saber o que a população
pretende para a Sicília, se a anexação ao continente italiano ou não, D.
Fabrizio vota sim, de forma ostensiva. Ele percebe que chegou o momento do tudo
ou nada e combina igualmente o casamento de Tancredi com Angélica (Claudia
Cardinali), filha de D. Calogero (Paolo Stoppa), um rico e influente
administrador de propriedades. É um negócio que irá resultar plenamente para
ambos os lados: D. Fabrizio cede o prestígio do nome da família, D. Calogero
entra com o capital e assegura a permanência dos privilégios.
O romance
e o filme iniciam-se por uma oração que termina de forma lapidar para o
significado da obra. Ouve-se o final da “Ave Maria”: "Nunc et in hora
mortis nostrae. Amen". D. Fabrizio sabe, através de confidências do padre
Pirrone (Romolo Valli), que a sua filha Concetta (Lucilla Morlacchi) está
apaixonada por Tancredi. Mas o casamento com Angelica Sedara impõe-se por
motivos óbvios. Em Donnafugata, no centro da Sicília, na sua casa senhorial,
durante um sumptuoso baile, regulam-se as contas do casamento “agora e na hora
da nossa morte”, pensa a aristocracia decadente, num estrebuchar de dignidade e
de lucidez.
O filme é
absolutamente deslumbrante de um ponto de vista plástico, denotando ele próprio
um curioso equilíbrio entre o gosto esteta de Visconti, proveniente de uma das
mais ilustres casas aristocráticas de Itália, e a análise marxista, com base na
luta de classes e na dialéctica engelseana que enformou todo o pensamento do
cineasta. A concepção do próprio filme revela assim esse compromisso entre
classes (ou esse sentido do suicídio de uma classe perante os “ventos da
História”) de que o romance é testemunho e que Visconti sublinha devidamente.
Há aqui uma curiosa derrapagem ideológica entre o romance e o filme: a obra de
Lampedusa chegou mesmo a ser acusada de estática e reaccionária, limitando-se a
descrever uma situação, sem a interpelar. Visconti dá uma interpretação aos
acontecimentos, como já vimos.
A obra,
que se estreou amputada de algumas sequências, corte imposto pelos produtores,
em virtude da sua longa duração (mas que agora circula na sua versão integral),
estrutura-se em diversas sequências que são magnificamente desenvolvidas pelo
cineasta. Desde a abertura, com a oração do dia, até ao baile com que fecha, “O
Leopardo” passa por momentos de conflito armado que apontam para a
superprodução, até outros de um intimismo discreto. Em tudo, Visconti revela
uma sensibilidade e apuro formal total, bem como uma direcção de actores
brilhante, conseguindo actuações invulgares de Burt Lancaster, Alain Delon ou
Claudia Cardinale, para só citar as mais flagrantes. Burt Lancaster
tornar-se-ia uma espécie de “alter-ego” do cineasta, a partir desta criação de Don
Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, que, tal como Visconti, se defronta num
íntimo conflito de interesses que é extraordinariamente bem desenvolvido, com
subtileza e perspicácia.
Amante da
pintura, do teatro e da ópera, o realizador nunca deixa de referenciar estas
paixões, quer na forma como enquadra as cenas de multidões, nas lutas nas ruas
de Palermo, quer nos retratos em interiores, onde a cor e a luz adquirem
importância decisiva. Também a tonalidade coral e melodramática das grandes
intrigas operáticas se sente a cada momento, transformando "Il
Gattopardo" numa obra-prima indiscutível da história do cinema.
O LEOPARDO
Título original: Il Gattopardo
Realização: Luchino
Visconti (Itália, França, 1963); Argumento: Suso Cecchi d'Amico, Pasquale Festa
Campanile, Enrico Medioli, Massimo Franciosa, Luchino Visconti, segundo romance
homónimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa; Produção: Goffredo Lombardo, Pietro
Notarianni; Música: Nino Rota e Di Giuseppe Verdi; Fotografia (Technirama,
Technicolor): Giuseppe Rotunno; Montagem: Mario Serandrei; Direcção artística:
Mario Garbuglia; Decoração: Laudomia Hercolani, Giorgio Pes; Guarda-roupa:
Marcel Escoffier e Piero Tosi; Maquilhagem: Maria Angelini, Alberto De Rossi,
Amalia Paoletti; Direcção de Produção: Giorgio Adriani, Enzo Provenzale;
Assistentes de realização: Albino Cocco, Brad Fuller, Francesco Massaro,
Rinaldo Ricci; Som: Mario Messina; Efeitos Especiais: Dino Galiano; Coreografia
do baile: Alberto Testa; Compnahias de produção: Titanus (Roma), Société
Nouvelle Pathé Cinéma, Société Générale de Cinématographie (S.G.C.) (Paris); Intérpretes: Burt Lancaster (Principe
Don Fabrizio Salina), Claudia Cardinale (Angelica Sedara / Bertiana), Alain
Delon (Tancredi Falconeri), Paolo Stoppa (Don Calogero Sedara), Rina Morelli
(Princesa Maria Stella Salina), Romolo Valli (Padre Pirrone), Terence Hill
(conde Cavriaghi), Pierre Clémenti (Francesco Paolo), Lucilla Morlacchi
(Concetta), Giuliano Gemma (General de Garibaldi), Ida Galli (Carolina),
Ottavia Piccolo (Caterina), Carlo Valenzano (Paolo), Ivo Garrani, Leslie
French, Serge Reggiani, Brook Fuller, Anna Maria Bottini, Lola Braccini, Marino
Masé, Howard Nelson Rubien, Marie Bell, Lou Castel, Tina Lattanzi, Marcella
Rovena, Rina De Liguoro, Valerio Ruggeri, Giovanni Melisenda, Giancarlo Lolli,
Vittorio Duse, Vanni Materassi, Giuseppe Stagnitti, Carmelo Artale, Olimpia
Cavalli, Anna Maria Surdo, Halina Zalewska, Winni Riva, Stelvio Rosi, Carlo Palmucci,
Dante Posani, Rosolino Bua, Sandra Christolini, Franco Gula, Maurizio Merli,
Augusto Pescarini, Paola Piscini, Amalia Troiani, etc. Duração: 187 minutos (205 versão integral); Distribuição em
Portugal: Costa do Castelo Filmes (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos;
Estreia em Portugal: 7 de Outubro de 1963.
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