STROMBOLI (1950)
Julgo
que o dever de um crítico não é exercer uma crítica ideológica. Ao crítico deve
pedir-se que informe, esclareça, estabeleça um diálogo com a obra e com o
leitor do texto/ espectador da obra criticada, e só em casos extremos de
malignidade de propósitos se deverá pronunciar quanto às intenções da obra em
questão. Um crítico deve assumir as suas opiniões políticas, religiosas,
estéticas, quando se confronta com uma obra de arte, mas não deve condenar a
obra em função de desajustes dessa natureza. Deve confrontar ideias, mas não se
pode erguer em juiz plenipotenciário que declara que isto é justo e está certo,
aquilo está errado e não vale. Cada autor tem a sua mundovisão, que tem de ser respeitada,
sobretudo se é realmente um autor que impõe respeito pela qualidade do que
cria.
Julgo
totalmente injusto, por exemplo falando dos cineastas italianos de entre os
anos 40 e 60 do século XX, criticar Visconti por ser comunista, Fellini por ser
religioso e anti clerical, ou mesmo Rossellini por ser católico. Acredito que
cada um deles julgava que a sua óptica era a mais justa para análise da
sociedade, dos seus problemas, ou, mais profundamente, até da própria condição
humana. Não será por aí que são grandes ou pequenos, autores a considerar ou
artesãos como milhares de outros. É pela força da sua personalidade e pela
grandeza da sua arte que se libertam da multidão e se tornam únicos.
Vem
isto a propósito de “Stromboli”, de Roberto Rossellini, que assume uma muito
discutível posição perante a situação do homem no mundo, perante a situação da
mulher, perante o papel da igreja, para lá de muitos outros aspectos polémicos.
Mas
antes, situemos a obra. Depois da sua trilogia da guerra, Rossellini roda dois
filmes de transição, um com Anna Magnani, “L'Amore”, incluindo duas médias
metragens, uma adaptando uma peça de Jean Cocteau, “La Voix Humaine”, outra “Le
Miracle”, sobre ideia de Fellini, e “La Macchina Ammazzacattivi”, com base em
Eduardo de Filippo e Fabrizio Sarazani. Estamos em 1948, e o cineasta recebe
uma carta de uma célebre actriz que tinha Hollywood aos pés, sobretudo depois
de “Casablanca”.
“Caro
M. Rossellini, Vi os seus filmes “Roma, Cidade Aberta” e “Païsa”, e gostei
muito deles. Se tiver necessidade de uma actriz sueca que fala muito bem
inglês, que não esqueceu o seu alemão, que não se faz compreender muito bem em
francês, e que em italiano nada mais sabe dizer senão “ti amo”, então eu estou
pronta a ir fazer um filme consigo”. Assinava, Ingrid Bergman.
Compreensivelmente,
Rossellini abandona o seu princípio de filmar com actores não profissionais (já
o havia feito com Anna Magnani, então sua companheira na vida real), e convida
Ingrid Bergman para interpretar “Stromboli, Terra di Dio”, cujas filmagens
decorreram na isolada ilha de Stromboli, encimada pelo ameaçador vulcão que,
nem por encomenda, entrou em erupção durante a rodagem. Era o primeiro título
de um novo ciclo. desta feita uma tetralogia, esta dedicada a Ingrid Bergman, e que, além de
“Stromboli” agrupa ainda “Europa 51” e “Viaggio in Italia”. Era igualmente o
início de um idílio que iria dar muito que falar. Rossellini e Ingrid eram
casados, a sua relação deu brado por todo o mundo, a actriz ficou grávida, as ligas
de decência insurgiram-se, a América ficou chocada, repudiaram os adúlteros, e
Ingrid Bergman ficou na lista negra de Hollywood.
Passemos
ao filme e deixemos de lado os “faits divers” que, todavia, tiveram influência
decisiva na carreira de ambos os intervenientes. “Stromboli” tem uma história
simples: no pós-guerra, Karin (Ingrid Bergman) e Antonio (Mario Vitale)
encontram-se num campo de refugiados, em Itália. Ela vem da Europa Central, ele
de uma ilha de Itália, para onde quer regressar, mas casado facilita as
burocracias. Por isso, pede em casamento Karin, que, depois de perceber que de
outra maneira não sai do campo tão cedo, aceita a proposta. Casados, rumam
ambos a Stromboli. Para Karin, o conceito de ilha não tem nada ver com
Stromboli, uma ilha vulcânica em erupção, quase deserta, miserável, sem
condições, onde a única actividade é a pesca, os costumes são primitivos, o
homem detém todos os direitos sobre a mulher, os preconceitos imperam, a
violência da natureza dita leis. O choque com a realidade que a espera é
enorme, tanto mais que Karin é uma mulher de passado letrado, sofisticado. Vai
tentando adaptar-se, mas com dificuldade. O padre que serve a comunidade é taxativo:
aqui a vida é assim, temos que suportá-la enquanto tal, aprender a viver com o
que temos e agradecer ao Senhor o que nos é dado.
Como
filosofia de vida, deixa algo a desejar, mas integra-se bem no espírito do
cinema de Rossellini, pobre e puritano. Com actores não profissionais (enfim…),
com o respeito pelas leis de Deus (enfim…, no que se refere aos outros, ele
movimenta os maiores escândalos), no maior recato da humildade (enfim…,
enquanto estiver em Stromboli e não regressar a Roma).
Há,
pois, um evidente desencontro entre o que se diz e o que se faz. Não será todavia
a maior crítica a exercer sobre a obra, mas sim sobre o espírito conformista,
retrogrado, estratificado, de que a mesma dá sobejas mostras. Tudo o que vemos
ao longo do filme merece a mais radical censura, desde as condições de vida da
população, das relações entre homens e mulheres, do moralismo hipócrita dos
habitantes, da violência extrema com que se enfrentam as leis da natureza. Existem
mesmo sequências brutais, como a morte de um coelho por um furão, ou a pesca do
atum, que hoje em dia dificilmente seriam filmadas ou, pelo menos, exibidas.
Mas Rossellini filma-as e mostra-as em nome de uma autenticidade que julgamos
aqui muito equívoca. Poderiam ainda servir como exemplo de comportamentos
errados, que necessitavam de ser corrigidos, criticados. Não é isso que
acontece. Rossellini põe os pescadores a rezar a Deus agradecendo a matança de
atum e coloca Karin, no fim do filme, olhando a natureza e reconciliando-se
aparentemente com a sua sorte.
Posto
isto, o filme é magnificamente realizado, de um ponto de vista técnico, ainda
que com reduzidos meios, e a interpretação de Ingrid Bergman é brilhante. Mas
percebe-se nesta obra toda a polémica que envolveu sempre o cinema de
Rossellini, com críticas acerbadas e defesas apaixonadas. Quase se pode pensar
que “Stromboli” é a resposta católica a “A Terra Treme”, de Visconti. E
comparações com “O Homem de Aran”, de Flaherty, parecem-me excessivas, se se
abstrair o lado documental, pois as intenções de ambas são bem diversas.
STROMBOLI
Título original: Stromboli
Realização: Roberto Rossellini (Itália,
EUA, 1950); Argumento: Roberto Rossellini, com colaboração de Art Cohn, Sergio
Amidei,Gian Paolo Callegari,Renzo Cesana, Félix Morlión; Produção: Roberto
Rossellini; Música: Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Otello Martelli;
Montagem: Jolanda Benvenuti, Roland Gross, Alfred L. Werker (este na versão
norte-americana); Assistentes de realização: Marcello Caracciolo Di Laurino;
Som: Eraldo Giordani, Terry Kellum; Companhias de produção: Berit Films, RKO
Radio Pictures; Intérpretes: Ingrid
Bergman (Karin), Mario Vitale (Antonio), Renzo Cesana (padre), Mario Sponzo
(homem no farol), Gaetano Famularo (homem com guitarra), Roberto Onorati, etc. Duração: 107 minutos; Sem distribuição
DVD em Portugal; Data de estreia em Portugal: 23 de Novembro de 1950.
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