quarta-feira, 8 de abril de 2015

STROMBOLI


STROMBOLI (1950)

Julgo que o dever de um crítico não é exercer uma crítica ideológica. Ao crítico deve pedir-se que informe, esclareça, estabeleça um diálogo com a obra e com o leitor do texto/ espectador da obra criticada, e só em casos extremos de malignidade de propósitos se deverá pronunciar quanto às intenções da obra em questão. Um crítico deve assumir as suas opiniões políticas, religiosas, estéticas, quando se confronta com uma obra de arte, mas não deve condenar a obra em função de desajustes dessa natureza. Deve confrontar ideias, mas não se pode erguer em juiz plenipotenciário que declara que isto é justo e está certo, aquilo está errado e não vale. Cada autor tem a sua mundovisão, que tem de ser respeitada, sobretudo se é realmente um autor que impõe respeito pela qualidade do que cria.
Julgo totalmente injusto, por exemplo falando dos cineastas italianos de entre os anos 40 e 60 do século XX, criticar Visconti por ser comunista, Fellini por ser religioso e anti clerical, ou mesmo Rossellini por ser católico. Acredito que cada um deles julgava que a sua óptica era a mais justa para análise da sociedade, dos seus problemas, ou, mais profundamente, até da própria condição humana. Não será por aí que são grandes ou pequenos, autores a considerar ou artesãos como milhares de outros. É pela força da sua personalidade e pela grandeza da sua arte que se libertam da multidão e se tornam únicos.
Vem isto a propósito de “Stromboli”, de Roberto Rossellini, que assume uma muito discutível posição perante a situação do homem no mundo, perante a situação da mulher, perante o papel da igreja, para lá de muitos outros aspectos polémicos.
Mas antes, situemos a obra. Depois da sua trilogia da guerra, Rossellini roda dois filmes de transição, um com Anna Magnani, “L'Amore”, incluindo duas médias metragens, uma adaptando uma peça de Jean Cocteau, “La Voix Humaine”, outra “Le Miracle”, sobre ideia de Fellini, e “La Macchina Ammazzacattivi”, com base em Eduardo de Filippo e Fabrizio Sarazani. Estamos em 1948, e o cineasta recebe uma carta de uma célebre actriz que tinha Hollywood aos pés, sobretudo depois de “Casablanca”.
“Caro M. Rossellini, Vi os seus filmes “Roma, Cidade Aberta” e “Païsa”, e gostei muito deles. Se tiver necessidade de uma actriz sueca que fala muito bem inglês, que não esqueceu o seu alemão, que não se faz compreender muito bem em francês, e que em italiano nada mais sabe dizer senão “ti amo”, então eu estou pronta a ir fazer um filme consigo”. Assinava, Ingrid Bergman.


Compreensivelmente, Rossellini abandona o seu princípio de filmar com actores não profissionais (já o havia feito com Anna Magnani, então sua companheira na vida real), e convida Ingrid Bergman para interpretar “Stromboli, Terra di Dio”, cujas filmagens decorreram na isolada ilha de Stromboli, encimada pelo ameaçador vulcão que, nem por encomenda, entrou em erupção durante a rodagem. Era o primeiro título de um novo ciclo. desta feita uma tetralogia, esta dedicada a Ingrid Bergman, e que, além de “Stromboli” agrupa ainda “Europa 51” e “Viaggio in Italia”. Era igualmente o início de um idílio que iria dar muito que falar. Rossellini e Ingrid eram casados, a sua relação deu brado por todo o mundo, a actriz ficou grávida, as ligas de decência insurgiram-se, a América ficou chocada, repudiaram os adúlteros, e Ingrid Bergman ficou na lista negra de Hollywood.


Passemos ao filme e deixemos de lado os “faits divers” que, todavia, tiveram influência decisiva na carreira de ambos os intervenientes. “Stromboli” tem uma história simples: no pós-guerra, Karin (Ingrid Bergman) e Antonio (Mario Vitale) encontram-se num campo de refugiados, em Itália. Ela vem da Europa Central, ele de uma ilha de Itália, para onde quer regressar, mas casado facilita as burocracias. Por isso, pede em casamento Karin, que, depois de perceber que de outra maneira não sai do campo tão cedo, aceita a proposta. Casados, rumam ambos a Stromboli. Para Karin, o conceito de ilha não tem nada ver com Stromboli, uma ilha vulcânica em erupção, quase deserta, miserável, sem condições, onde a única actividade é a pesca, os costumes são primitivos, o homem detém todos os direitos sobre a mulher, os preconceitos imperam, a violência da natureza dita leis. O choque com a realidade que a espera é enorme, tanto mais que Karin é uma mulher de passado letrado, sofisticado. Vai tentando adaptar-se, mas com dificuldade. O padre que serve a comunidade é taxativo: aqui a vida é assim, temos que suportá-la enquanto tal, aprender a viver com o que temos e agradecer ao Senhor o que nos é dado. 
Como filosofia de vida, deixa algo a desejar, mas integra-se bem no espírito do cinema de Rossellini, pobre e puritano. Com actores não profissionais (enfim…), com o respeito pelas leis de Deus (enfim…, no que se refere aos outros, ele movimenta os maiores escândalos), no maior recato da humildade (enfim…, enquanto estiver em Stromboli e não regressar a Roma).


Há, pois, um evidente desencontro entre o que se diz e o que se faz. Não será todavia a maior crítica a exercer sobre a obra, mas sim sobre o espírito conformista, retrogrado, estratificado, de que a mesma dá sobejas mostras. Tudo o que vemos ao longo do filme merece a mais radical censura, desde as condições de vida da população, das relações entre homens e mulheres, do moralismo hipócrita dos habitantes, da violência extrema com que se enfrentam as leis da natureza. Existem mesmo sequências brutais, como a morte de um coelho por um furão, ou a pesca do atum, que hoje em dia dificilmente seriam filmadas ou, pelo menos, exibidas. Mas Rossellini filma-as e mostra-as em nome de uma autenticidade que julgamos aqui muito equívoca. Poderiam ainda servir como exemplo de comportamentos errados, que necessitavam de ser corrigidos, criticados. Não é isso que acontece. Rossellini põe os pescadores a rezar a Deus agradecendo a matança de atum e coloca Karin, no fim do filme, olhando a natureza e reconciliando-se aparentemente com a sua sorte.
Posto isto, o filme é magnificamente realizado, de um ponto de vista técnico, ainda que com reduzidos meios, e a interpretação de Ingrid Bergman é brilhante. Mas percebe-se nesta obra toda a polémica que envolveu sempre o cinema de Rossellini, com críticas acerbadas e defesas apaixonadas. Quase se pode pensar que “Stromboli” é a resposta católica a “A Terra Treme”, de Visconti. E comparações com “O Homem de Aran”, de Flaherty, parecem-me excessivas, se se abstrair o lado documental, pois as intenções de ambas são bem diversas.


STROMBOLI
Título original: Stromboli
Realização: Roberto Rossellini (Itália, EUA, 1950); Argumento: Roberto Rossellini, com colaboração de Art Cohn, Sergio Amidei,Gian Paolo Callegari,Renzo Cesana, Félix Morlión; Produção: Roberto Rossellini; Música: Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Otello Martelli; Montagem: Jolanda Benvenuti, Roland Gross, Alfred L. Werker (este na versão norte-americana); Assistentes de realização: Marcello Caracciolo Di Laurino; Som: Eraldo Giordani, Terry Kellum; Companhias de produção: Berit Films, RKO Radio Pictures; Intérpretes: Ingrid Bergman (Karin), Mario Vitale (Antonio), Renzo Cesana (padre), Mario Sponzo (homem no farol), Gaetano Famularo (homem com guitarra), Roberto Onorati, etc. Duração: 107 minutos; Sem distribuição DVD em Portugal; Data de estreia em Portugal: 23 de Novembro de 1950.

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