quarta-feira, 8 de abril de 2015

O GENERAL DELLA ROVERE

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O GENERAL DELLA ROVERE (1959)


“Il Generale della Rovere” data de 1959 e apresenta-se como um regresso de Roberto Rossellini ao seu período mais profundamente neo-realista. De certa forma é um retorno à época em que realizou “Roma, Cidade Aberta”, “Libertação” ou “Alemanha, Ano Zero”, voltando aos tempos da ocupação alemã de Itália, à resistência e ao heróico movimento popular de oposição larvar ao nazismo e ao fascismo. Depois de “O Medo”, o cineasta tinha viajado pela Índia, onde realizou uma série documental para televisão, que foi muito mal recebida pela crítica e o público, bem assim como uma longa-metragem para cinema sobre o mesmo tema, “India, Matri Bhumi”. As reacções não foram brilhantes e desde há muito que Rossellini era olhado por alguma crítica como um cineasta “arrumado” a quem os produtores já não confiavam uma lira, porque a perderiam de certeza.
Mas Moris Ergas e a Zebra Film resolvem apostar neste projecto, com argumento do habitual Sergio Amidei, aqui com a colaboração de Diego Fabbri, retirado de um romance de Indro Montanelli, que por sua vez se inspira numa história real. Conta Renzo Rossellini, filho do cineasta, que “o produtor tinha colocado uma condição: o filme teria de estar pronto para ser apresentado no Festival de Veneza, em fins de Agosto, e estávamos em Maio. Organizámo-nos por forma a filmarmos de dia, montarmos e dobrarmos à noite, algo completamente louco. Era um desafio. E conseguimos”. O filme passou em Veneza e arrebatou o Leão de Ouro, juntamente como “A Grande Guerra”, de Mario Monicelli. Depois disso, foi premiado em São Francisco, para melhor realização e melhores actores, Vittorio De Sica e Hannes Messemer, ganhou o Nastro d´Argento para melhor realização de 1959 em Itália, e alcançaria ainda o prémio do Office Catholique International (OCIC), além de diversas outras recompensas. A carreira do cineasta estava relançada, afinal não estava completamente “arrumado” como muitos pretendiam, e, anos depois, faria parte da lista dos 1000 melhores filmes de todos os tempos, elegidos pelo “The New York Times”.


Estamos em Génova, 1943, e acompanhamos a actividade nada escrupulosa de
Emanuele Bardone, um vigarista bem-falante, que gasta em jogo tudo o que arranja, e arranja o que pode da forma mais humilhante: faz-se passar por um coronel do exército italiano e, de conluio com um oficial alemão colocado num lugar estratégico, vai extorquindo dinheiro a famílias de presos políticos, com promessas de conseguir a libertação para os encarcerados. Até ao dia em que vai ter com a mulher de um prisioneiro, afirmando que tem grandes notícias e esta lhe diz que o marido acaba de ser executado e o denuncia às autoridades. Preso, Bardone aceita colaborar com os nazis. O coronel Mueller, das SS, está interessado em ter um denunciante atrás das grades da prisão de San Vittore que lhe vá indicando quem é quem entre os presos, em particular que identifique um, Fabrizio, que se sabe ser o chefe da resistência local, que os alemães têm a certeza de se encontrar entre os presos, mas que ignoram quem é. O filme irá depois acompanhar a consciencialização de Bardone no seu convívio diário com os presos, com a coragem que eles demonstram, com a dignidade que ele surpreende, com o fervor patriótico que o redime.
Todo o filme é admiravelmente conduzido por Rossellini que, apesar de partir de um romance com uma estrutura dramática muito definida, apesar de jogar com um elenco de grandes vedetas (sobretudo Vittorio De Sica e Hannes Messemer, ambos notáveis, mas também Vittorio Caprioli, Sandra Milo, Giovanna Ralli, Anne Vernon, para só citar algumas), apesar de jogar com cenas de um pendor trágico assinalável, que facilmente poderiam cair num melodramatismo pungente, apesar de tudo isso consegue uma unidade de tom assinalável, uma quase neutralidade narrativa que funciona muito bem, uma invulgar isenção de efeitos emocionais fáceis. Veja-se a sequência final, que tentaremos não revelar, mas onde o olhar distante de Rossellini se exime a qualquer efeito, qualquer aproximação do rosto de De Sica, integrando-o num plano de conjunto que assume todo o significado pessoal e colectivo.
Mas a qualidade do trabalho de Rossellini é, nesta obra, admirável. Atente-se em todas as sequências passadas no interior da cadeia, onde, sem qualquer recurso especial, com uma certa frieza de olhar, nos transporta ao clima claustrofóbico da instituição, ao horror do isolamento, ao terror que as situações insuflam naqueles homens que, todavia, os não fazem perder a dignidade, mas que muito pelo contrário os elevam a um plano mais nobre. Todas as cenas de exterior, com as famílias padecendo um outro tipo de dor e de horror são igualmente brilhantemente conduzidas.


Entre muitos outros que poderiam justificar atenção especial, há ainda um aspecto a merecer referência: a forma como Rossellini nos apresenta as suas personagens. Emanuele Bardone é um vigarista sem escrúpulos que negoceia com os nazis e aldraba vítimas indefesas em situações traumáticas, é um jogador compulsivo, mas simultaneamente é um sedutor nato, que consegue inclusive transmitir alguma simpatia (essa, aliás, uma das razões do sucesso das suas trapaças). O coronel Mueller é igualmente um homem de contrastes, que tão depressa pode enviar para a tortura ou a morte um prisioneiro incómodo, como manifestar a simpatia por Bardone ou a “compreensão” por uma situação mais delicada. São personagens “humanas”, não estereotipadas, e, neste particular, mais inquietantes do que monstros de uma só perversidade que o espectador relega logo para o estatuto de “anormais”. Não, são tão normais como eu ou você, que, todavia, se comportam de forma brutal, o que torna muito mais resvaladiços os terrenos que todos nós pisamos.
Depois deste triunfo, Rossellini voltaria ao tema em “Era notte a Roma”, antes de se interessar por filmar no Brasil uma obra sobre “A Geografia da Fome”, do etnólogo brasileiro Josué de Castro (que nunca concretizará). Prosseguiria a carreira com dois filmes históricos, “Viva l’Ìtalia” (1960) e “Vanina Vanini” (1961), voltando-se depois para a televisão educativa, com obras de um estilo quase docudocumental, sobre grandes figuras e grandes temas da História, sendo de destacar, por exemplo, o belíssimo “La Prise du Pouvoir par Louis XIV” ou “Atti degli Apostoli”.

O GENERAL DELLA ROVERE
Título original: Il Generale della Rovere

Realização: Roberto Rossellini (Itália, França, 1959); Argumento: Sergio Amidei, Diego Fabbri, Indro Montanelli, Roberto Rossellini, segundo romance de Indro Montanelli; Produção: Moris Ergas; Música: Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Carlo Carlini; Montagem: Cesare Cavagna, Anna Maria Montanari; Design de produção: Piero Zuffi; Direcção artística: Piero Zuffi; Guarda-roupa: Piero Zuffi; Assistentes de realização: Tinto Brass, Ruggero Deodato, Renzo Rossellini; Companhias de produção: Zebra Film, Société Nouvelle des Établissements Gaumont (SNEG); Intérpretes: Vittorio De Sica (Victorio Emanuele Bardone / Grimaldi), Hannes Messemer (S.S. Colonel Mueller), Vittorio Caprioli (Aristide Bianchelli), Nando Angelini, Herbert Fischer (sargento), Mary Greco (Vera), Bernardo Menicacci, Lucia Modugno (a resiatente), Luciano Pigozzi, Kurt Polter (oficial alemão), Giuseppe Rosetti (Pietro Valeri), Kurt Selge (Schrantz), Linda Veras, Sandra Milo (Valeria), Giovanna Ralli (Olga), Anne Vernon (Clara Fassio), Ester Carloni, Armando Annuale, Gianni Baghino, Baronessa Bazzani, Clarissa Corner, Lina De Rossi, Ivo Garrani, Franco Interlenghi, Piero Pastore, Roberto Rossellini (homem no gabinete da Gestapo), etc. Duração: 132 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Data de estreia em Portugal: 31 de Janeiro de 1972 (Estúdio Apolo 70). 

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